03 de outubro de 2012 |
N° 17211
MARTHA MEDEIROS
O selinho
De repente, em função de dois
acontecimentos recentes (a morte da esfuziante Hebe Camargo e o ataque
inesperado de uma eleitora ao candidato José Serra, em São Paulo), o selinho
ganhou um protagonismo até então inédito. Já não era sem tempo. Com tanta gente
cultuando o beijo profundo e apaixonado, aquele de fazer as órbitas revirarem
dentro dos olhos, o selinho vem a público reclamar: eu também existo.
O selinho é inocente, já nasceu
absolvido pela sociedade. Mas não custa ficar atento. Lembro de um namorado, lá
no início dos anos 80, que era muito moderninho, tinha várias amigas descoladas
que faziam teatro, e ao encontrá-las na noite salpicava seus selinhos na maior
pureza – curiosamente, só nas bonitas. Hum. No começo, eu fingia que achava
muito natural. Depois, abri o jogo, falei que sentia ciúme.
Ele então veio com aquele
discurso paz e amor, típico da era de Aquarius, sobre cultivar a harmonia entre
os seres, abrir-se para as revelações místicas, libertar a mente, let the
sunshine in e outras embromações, e foi então que fiz de conta que seu papo
lisérgico havia me convencido – ora, eu também cumprimentaria meus amigos com
selinhos. Só os bonitos, claro. Foi então que ele repentinamente teve a sua
revelação mística e parou de vez com a distribuição de bitocas. Dali por
diante, foram longos anos de harmonia e salutar caretice.
A importância que dou ao selinho
vem de um episódio distante da minha biografia. Na saída do colégio, ao final
de uma manhã, um rápido roçar de lábios ganhou o título honroso de “meu
primeiro beijo”. Um selinho, um só, e foi o que bastou para que eu voltasse
para a casa levitando por vários quarteirões.
Passei a tarde me olhando no
espelho para ver se eu estava diferente, se alguém notaria minha transformação
de menina para mulher – eu devia ter o que, uns 14? Do primeiro beijo pra valer
não lembro nada, mas esse selinho continua mantendo seu lugar no pódio entre os
momentos mais adoráveis e femininos da minha adolescência. Diante disso, como
não levar essa modalidade de carinho a sério?
A foto de Silvio Santos dando o
último selinho na Hebe, dentro do caixão, é uma imagem terna e eterna. As redes
sociais já se mobilizaram para fazer do dia 29 de setembro o Dia do Selinho,
que não vai pegar, claro, a não ser que vire feriado, a única coisa que
respeitamos. Tudo continuará como antes. O selinho será para sempre um gesto de
afeto assexuado.
É uma beliscadinha oral, um
atrevimentozinho entre amigos, uma brincadeirinha entre adultos, uma
provocaçãozinha, um beijo no diminutivo: singelinho, rapidinho, malandrinho.
Mas por mais que se esforce em
parecer casual, terá para sempre seus significados secretos. O selinho será
para sempre um gesto de amor assexuado.
Lindo dia pra você.
Aproveite a quarta-feira
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