27
de outubro de 2012 | N° 17235
CLÁUDIA
LAITANO
Nós, os
alienados
Eu
deveria ter uns 11 ou 12 anos quando o acaso – sempre ele – me jogou para
dentro do trem da história sem apito prévio. Eram os anos 70, e até as pedras
da Praça da Alfândega sabiam que pessoas eram torturadas e mortas pela ditadura
militar no Brasil. As pedras sabiam, mas eu ainda não.
Talvez
essa breve era da inocência tivesse durado mais algum tempo se em uma viagem da
escola eu não tivesse sentado ao lado de uma colega, com quem nunca havia
conversado antes, que sabia tudo o que se podia saber aos 12 anos sobre
ditadura, presos políticos, tortura. Tinha visto fotos, tinha ouvido conversas.
Enquanto
Geisel propunha uma abertura “lenta, gradual e segura”, a descoberta daquilo
que, afinal, eles estavam abrindo para mim foi súbita, inesperada e
vertiginosa. Havia alguma condescendência naqueles tempos pré-internet em
relação à capacidade de engajamento das meninas de 12 anos, mas segundo o
vocabulário da época minha inaceitável ignorância política tinha nome:
alienação.
No
limite, todos somos alienados em relação a alguma coisa: política, ciência,
cultura, economia, esportes, religião... A lista de assuntos sobre os quais
escolhemos não saber nada é infinita. Segundo a cartilha marxista clássica,
porém, alienado é o sujeito que não controla sua atividade essencial (o
trabalho), pois a mercadoria que produz existe independentemente do seu poder e
de seus interesses. Por extensão, alienadas são as pessoas indiferentes aos
problemas políticos e sociais do lugar e da época em que vivem.
Em
tempos de superabundância e descentralização da informação, o termo “alienado”
ganhou um ar ligeiramente retrô. Ainda será possível ignorar um assunto de
interesse público tão redondamente quanto eu ignorava a tortura?
É
possível, mas em boa parte dos casos talvez se trate de uma “alienação
eletiva”, ou seja, já não é tão fácil culpar os outros (“o sistema”, “a mídia”,
“os interésses”...) pela nossa ignorância ou preguiça. Jovens e adultos,
operários e seus patrões, a dona de casa e o jogador de futebol, todos
escolhemos as causas nas quais não queremos nos engajar, os problemas que não
queremos resolver, os pepinos que preferimos varrer para debaixo do tapete.
Na
semana passada, quando o último capítulo de Avenida Brasil mobilizou a atenção
e o coração de milhões de brasileiros, muitos sacaram da gaveta o velho
xingamento de passeata para pespegar nos fãs de Carminha e Tufão. Devagar com o
andor. Pode-se, obviamente, gostar ou não de novelas, mas o curioso (assustador
seria o termo mais correto) nesses comentários é a dificuldade para compreender
e aceitar a ancestral necessidade humana de contar e ouvir histórias – e de
fugir da realidade de vez em quando também.
Não
é a arte, mesmo uma arte popular ou o mero entretenimento, que aliena as
pessoas do que elas deveriam saber/fazer/ser, mas as diferentes escolhas que
realizamos todos os dias na vida real: em casa, no trabalho, no espaço público
e agora nas redes sociais também. Assistindo novela ou um jogo de futebol,
jogando videogame ou namorando, não somos alienados ou politizados. Somos
apenas humanos.
Aliás,
já ouviu falar dos índios guaranis-kaiowás?
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