segunda-feira, 31 de agosto de 2020



31 DE AGOSTO DE 2020
DAVID COIMBRA

Como é bom se ofender!

Certa vez, um grupo de vegetarianas fez uma manifestação durante a sessão de autógrafos de um livro que eu estava lançando. Verdade! Já contei esse episódio, mas sempre que lembro parece tão irreal que quase duvido de que aconteceu.

Mas aconteceu. É que, em algumas crônicas, eu gozava da devoção das vegetarianas ao, digamos, "movimento". Um dia, citei um trecho de um texto de Alexandre Dumas Pai, que escreveu o seguinte:

"Não posso deixar de dizer que a salada não é absolutamente uma alimentação natural para o homem, por mais onívoro que seja este. Só os ruminantes nasceram para pastar folhas. A prova é que nosso estômago não digere a salada, uma vez que secreta apenas ácidos e que as folhas só se diluem por meio de alcalinos?".

Dumas Pai era um gourmet, escreveu um livro sobre gastronomia, por isso discorria com tanta ênfase sobre a salada. Eu, pessoalmente, nada tenho contra quem se entrega à dieta vegana, ou qualquer outra semelhante. Pouco se me dá o que as pessoas comem. Mas me divertia brincando com as vegetarianas.

Algumas reclamavam das crônicas, outras entendiam que era brincadeira e achavam engraçado. Tudo bem, nunca dei muita importância a esse "debate". Era só gozação mesmo.

Aí, nessa noite, eu estava autografando os livros no mezanino de uma livraria e, de repente, elas saltaram detrás de pilares e estantes, abriram faixas e cartazes e começaram a gritar palavras de protesto. Primeiro, levei um susto, não entendia bem o que estava se passando. Depois, achei curioso e até gostei, encarei com bom humor. Mas elas não paravam, então começou a ficar chato. A certa altura, o editor, o Ivan Pinheiro Machado, pediu que elas se acalmassem, e aos poucos elas foram se aquietando, e a noite seguiu seu curso.

Não fiquei chateado ou brabo, considerei a manifestação delas espirituosa, mas, nos dias seguintes, observando a repercussão do caso, vi que havia pessoas levando aquilo a sério e que algumas estavam realmente irritadas comigo. O que me deixou perplexo. Como alguém poderia se ofender com uma piada acerca de seus hábitos alimentares?

Hoje, olhando aquela noite em retrospectiva, vejo-a como um prenúncio do que vinha acontecendo na sociedade brasileira. As pessoas estavam se tornando mais suscetíveis. Elas aprenderam, rapidamente, a se ofender.

Porque isso, esse sentimento de ofensa, se ensina e se aprende. Tem sempre um fundo egoico, óbvio. Quanto maior o ego, maior a possibilidade do sujeito se sentir ofendido, sobretudo se o ego for grande, e a autoestima, pequena. Neste caso, a pessoa vive se sentindo diminuída pelos outros.

Mas os MOTIVOS da ofensa são culturais. São ensinados. No passado recente, brincar com a masculinidade de um homem ou com a castidade de uma mulher era razão para briga com consequências graves. Nos anos 70, se você queria insultar um jovem, chamava-o de maconheiro. Mas eram ofensas de fundo pessoal. Agora, as pessoas podem se sentir ofendidas em grupo, elas têm meios para se mobilizar e para atacar o suposto ofensor. Isso dá poder ao ofendido. Encontrar algo para se ofender acaba se tornando recompensador, o ofendido tem uma sensação de grandeza e de pertencimento que não teria, se não houvesse o presumido ato de agressão. É preciso encontrar uma agressão, portanto, para crescer sobre os ombros do agressor.

São muitas as suscetibilidades que nos cercam, no século 21. É necessário ter cuidado ao caminhar, para não pisar numa. E despertar a ira dessa geração de ofendidos.

DAVID COIMBRA
 
31 DE AGOSTO DE 2020
ARTIGOS

ENSINO HÍBRIDO, LEGADO PARA O PÓS-PANDEMIA

De uma hora para a outra, professores tiveram que replanejar as rotinas de suas aulas, relacionando-se remotamente com os estudantes. Difícil encontrar ocasião em que o segmento da educação precisou aprender tanto e em tão pouco tempo.

Na base de quase todas as aprendizagens que a covid-19 nos impôs, aparece com protagonismo o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Ao longo das duas últimas décadas, esse tema, ainda que cada vez mais presente na vida em sociedade, recebeu resistências de muitos professores e gestores, tanto pelo fato de ser difícil a apropriação de tais recursos, quanto por ser oneroso para as escolas disponibilizar parques tecnológicos permanentemente atualizados. A pandemia, contudo, não deixou escolha: se práticas de ensino remoto não fossem implementadas como alternativa às aulas presenciais suspensas, a função social de escolas e universidades deixaria de acontecer durante tempo indeterminado.

A necessidade de isolamento social, contudo, repercutiu de maneiras distintas nas redes pública e privada, acabando por sublinhar ainda mais as desigualdades sociais em nosso país. Dispor de computador e internet para a realização de estudos é uma realidade para poucos estudantes brasileiros. Na rede privada, a infraestrutura de acesso dos estudantes ao ensino remoto não foi propriamente uma barreira a vencer. Ao contrário: escolas com recursos tecnológicos deficitários puderam se beneficiar do acesso das famílias à internet e aos seus próprios computadores, retirando das instituições de ensino a responsabilidade por eventuais sobrecargas às suas redes de dados. Isso significou certa "igualdade de condições" entre as escolas privadas.

Descobrimos na prática do isolamento social que é possível deixar a leitura de textos e as listas de exercícios para fora do tempo da presencialidade coletiva. E mais: que as tecnologias educacionais se mostram eficientes para apoiar tarefas repetitivas dos professores. Boas escolas serão mais facilmente reconhecidas após a pandemia, não mais pela estrutura física ou pelo parque tecnológico de que dispõem, mas pela forma como integrarão as novas tecnologias, garantindo a melhor efetividade dos momentos presenciais. O ensino híbrido agora nos possibilita a reinvenção da sala de aula.

CEO do Elefante Letrado monica@elefanteletrado.com.br - MÔNICA TIMM DE CARVALHO


31 DE AGOSTO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

UNIVERSIDADE PÚBLICA MAIS JUSTA

A delicada situação fiscal brasileira, com reflexo em maiores dificuldades para o financiamento da educação, faz com que mereça atenção especial e um debate profundo a ideia levantada na semana passada pelo vice-presidente da República sobre o Ensino Superior. Hamilton Mourão defende que a sociedade avalie "sem preconceitos" e "seriamente" a possibilidade de estudantes oriundos de famílias em melhor situação financeira pagarem para cursar universidades públicas. Estes recursos poderiam ajudar a custear mais bolsas para que jovens de estratos inferiores consigam frequentar faculdades particulares.

O Brasil é um dos raros países do mundo a manter este modelo que privilegia alunos de maior renda e acaba penalizando os que têm menos recursos financeiros. Estudantes oriundos de lares com mais posses tendem a ficar com boa parte das vagas gratuitas, especialmente nos cursos mais concorridos e com perspectiva de melhor remuneração ao longo da vida profissional. Estes, em regra, passaram os Ensinos Fundamental e Médio em escolas privadas, que usualmente contam com uma melhor qualidade de ensino na comparação com os colégios públicos. As condições para competir pelo acesso são assimétricas, contribuindo para a manutenção da gritante desigualdade social brasileira.

Hoje, o quadro verificado nos Ensinos Fundamental e Médio acaba sendo invertido no nível superior. Os mais ricos ocupam mais espaços nas universidades públicas, como no caso das federais, em geral mais reconhecidas que as privadas, e assim se eterniza uma situação que perpetua a baixa mobilidade, algo nefasto que só poderá ser contornado de forma sustentável por meio da educação. Um estudo do Banco Mundial publicado em 2017 analisou o problema no país e, da mesma forma, sugeriu que os alunos de renda média e alta de alguma forma pagassem pelo curso em universidades públicas, mesmo que depois de formados, com algum tipo de crédito. O trabalho verificou que 65% dos estudantes das instituições públicas de nível superior pertenciam à faixa dos 40% da população com condições financeiras mais favoráveis. A conclusão foi de que "as despesas com universidades federais equivalem a um subsídio regressivo à parcela mais rica da população brasileira".

Uma das ideias do Banco Mundial, se adotada a cobrança, seria que o governo estendesse o Programa de Financiamento Estudantil (Fies) às universidades federais. Outros modelos poderiam ser analisados e debatidos, como a possibilidade de não haver mudança no nível de dispêndio escolar das famílias. Alunos que pagam escolas privadas seguiriam desembolsando os mesmos valores de seu Ensino Médio no nível superior, por exemplo. Com isso, se evitaria saltos abruptos nos orçamentos domiciliares, inviabilizando o acesso , por exemplo, a cursos reconhecidamente mais caros, como Medicina.

O fato incontestável é que, apesar da existência de políticas afirmativas, como as cotas, ainda é viável e necessário tornar o Ensino Superior mais justo, com contrapartidas de quem pode mais. Ao mesmo tempo, seria possível canalizar mais recursos públicos para os anos iniciais da educação pública, uma forma mais eficiente para de fato transformar o Brasil em um país onde o aprendizado possa ser, na prática, uma saída para reduzir a desigualdade e ter uma melhor distribuição de renda no futuro.

OPINIÃO DA RBS

31 DE AGOSTO DE 2020
+ ECONOMIA - Fábio Astrauskas, CEO da Siegen Consultoria e professor do Insper

RESPOSTAS CAPITAIS: "Não é possível viver em ambiente tão desigual"

CEO da Siegen Consultoria, Fábio Astrauskas avalia que a retomada econômica depende, em parte, de uma reforma tributária com taxação de grandes fortunas. Na entrevista a seguir, o economista, que também é professor do Insper, analisa o cenário para os negócios e demonstra preocupação com o alto nível de desigualdade social, evidenciado no país pela pandemia de coronavírus.

Como descreve o momento da economia no país?

Medidas de auxílio emergencial e proteção de empregos funcionaram razoavelmente bem, apesar das críticas, e estão sendo prorrogadas. Enquanto isso, o Judiciário atuou para que credores e devedores conversassem sem entrar em litígio, mas é algo que está acabando. Então, precisamos criar regra mais clara para tratar do assunto. Em relação ao distanciamento social, estamos retornando à normalidade, mas em nível muito alto da pandemia, ao contrário de outros países. Isso gera insegurança para o consumo. Ou seja, temos efeito mais prolongado na economia. Em 2021, provavelmente teremos de lidar com o teto de gastos. Mas vai ser muito difícil mantê-lo com uma política de benefícios desenhada agora. Teremos a necessidade de fazer reforma tributária para melhorar a capacidade de arrecadação do Estado.

O IBGE divulga amanhã o resultado do PIB do segundo trimestre. Qual é sua projeção?

O PIB do segundo trimestre vai refletir o centro da pandemia, os piores meses, de abril a junho. É bastante provável que o tombo fique perto de 10%. O impacto do coronavírus se deu de maneira desigual na economia. O setor de serviços foi mais afetado.

Tensão recente atingiu o Ministério da Economia, com a debandada de secretários. A situação preocupa?

Preocupa em dois cenários. Um é o especulativo, em bolsa de valores e câmbio. Do ponto de vista de médio e longo prazos, o que estamos vendo é um debate entre a filosofia liberal, do ministro (Paulo) Guedes, e um viés mais assistencialista, por parte do presidente (Jair) Bolsonaro. O motivo pode até não ser tão nobre, mas me parece ser correto o pensamento que o Bolsonaro traduziu de que "não é possível tirar dos pobres para dar aos paupérrimos". Dá para pensar: "Ah, tem fundo eleitoreiro". Não importa. Vamos tirar isso da mesa e entender que é muito complicado criar um programa de transferência de renda. Só que é preciso tomar algumas atitudes para evitar a desigualdade brutal que vemos no Brasil. Falava-se do Renda Brasil com a retirada do Farmácia Popular, por exemplo. Não parece o melhor caminho.

Qual seria a saída?

A discussão vai ter de passar em algum momento pela tributação de grandes fortunas se quisermos respeitar teto de gastos e fazer política distributiva de renda. Sem isso, vamos ter de abandonar uma das duas coisas. Os países têm pensado em impostos sobre grandes fortunas. Por incrível que pareça, até grandes milionários têm pensado nisso. Estão percebendo o quão danosa a desigualdade pode ser para a sociedade e para o capitalismo. Isso tem de ser discutido com seriedade. Não é uma briga de empresário contra trabalhador, de rico contra pobre, de esquerda contra direita. É uma discussão simples. Não é possível viver em um ambiente tão desigual.

MARTA SFREDO

31 DE AGOSTO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO

O moralista


Enquanto boa parte das pessoas ainda se chocava com o contraste entre a persona pública e a vida-louca privada da deputada federal e cantora gospel Flordelis, acusada de planejar a morte do marido com a ajuda de seis filhos e uma neta, os gaiatos do Twitter andavam engajados em um debate um pouco menos grave: afinal, a cabeleira da pastora é peruca, implante ou chapinha?

Muita gente perfeitamente honesta e sensata usa, usou ou ainda vai usar uma peruca. Em meio a todo moralismo postiço que veio à tona nos últimos dias, porém, os cabelos tão lisos quanto artificiais da deputada tornaram-se um emblema do embuste autoconfiante. Flordelis estava tão acostumada a seduzir os interlocutores com sua performance piedosa e abnegada, que não apenas sentiu-se à vontade para derramar lágrimas reptílicas durante o velório do marido como, nos meses seguintes, continuou postando mensagens de amor para o falecido em suas redes sociais. De boas.

Flagrar um moralista de cuecas (ou peruca) desperta o perverso prazer da reafirmação do óbvio: ninguém é tão bonzinho assim, muito menos quem costuma usar sua suposta superioridade moral como plataforma de autopromoção. Flordelis era aquele tipo de crente que fala alto e aponta o dedo para os "pecados" alheios. O fato de que por trás da fachada de "defensora da família" escondia-se o caráter de uma assassina leva ao limite extremo uma contradição entre essência e aparência muito comum em personalidades desse tipo.

Apoiado em convicções religiosas distorcidas e em certo desprezo pela natureza humana como ela se apresenta na realidade (múltipla, caótica, indomável), o moralista cobra adesão cega à narrativa mesquinha (e delirante) que divide o mundo entre anjos e demônios, santos e pecadores, nós e eles. Alguns mostram-se tão talentosos na arte de cobrar, apontar e ameaçar que acabam transformando essa habilidade em meio de sustento e/ou enriquecimento. Para esses, a dissociação entre prática e discurso torna-se uma segunda natureza. Flordelis nos lembra como um moralista pode ser contraditório, ou até mesmo criminoso, sem jamais ser afetado pela culpa ou pela consciência das próprias contradições.

CLÁUDIA LAITANO

domingo, 30 de agosto de 2020



Diamonds by Rihanna (written by Sia) | Cover by One Voice Children's Choi



Ci Vuole Un Fiore - Sergio Endrigo

sábado, 29 de agosto de 2020


29 DE AGOSTO DE 2020
LYA LUFT

A casa da alma

Tenho lido e comentado, no meu Instagram lya.luft, trechos breves de livros meus como As Coisas Humanas e A Casa Inventada. Na Casa, pequena obra de ficção, invento uma personagem, Penelope, que tem como amiga, alter ego ou como companheira seu reflexo no espelho, a que chama Pandora.

Para quem não lembra, Pandora foi mandada por seu pai, Zeus, rei do Olimpo na mitologia grega, para um possível marido, levando como dote uma caixinha, e a ordem: “Não abra!”.

Como eu também faria, a moça abriu a caixa e dela saíram voando os males do mundo.

Não sei se faz parte da lenda, mas em algum lugar li que bem no fundo da caixinha ficou escondida uma pálida Esperança. Por isso gosto da Pandora do espelho da minha personagem, que quer construir ou inventar a sua casa.

A casa da vida, a casa da alma. Com múltiplas e difíceis escolhas à frente: operários, materiais, prazos, formas. Em última análise seria uma aventura. Primeiro a porta, fascinante e ameaçadora: o que haverá por trás dela? Depois abre-se um corredor, com espelhos nas  paredes... com portas que dão para quartos e salas, porão e, finalmente, nos fundos, o jardim secreto, onde tudo acaba.

Antes se passa pela sala da família, onde perduram falas, gestos, rostos ou máscaras, afetos e rancores, falsidade e amor. Palavras como plumas ou punhais... segredos nunca revelados.

Depois, o quarto das crianças, que desenham nas paredes seus sonhos e medos e projetos. O quarto do casal de que pouco se sabe: paixões e segredos, perfídias e ternuras, filhos e traições, lágrimas no escuro.

Finalmente, depois do porão das aflições onde ecoam soluços, mas a gente diz “é o vento”..., vem o pátio de sol e sombras, com três árvores ao fundo, um muro meio arruinado e encostada nele uma precária escadinha que parece não levar a lugar algum.

Essa será talvez a hora mais interessante. Atenção: na construção da casa da vida, não somos inteiramente responsáveis nem donos de nossas escolhas: pois não somos nem engenheiros nem arquitetos. Somos amadores.

LYA LUFT


29 DE AGOSTO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Nunca é "só" uma piadinha

Eu devia ter 10 anos. Estava lendo um gibi quando deparei com o seguinte desenho numa tirinha: garota linda e loira, com uma camiseta de mangas curtas, chega perto do rapaz de que ela é a fim, abraça a si mesma e diz: "que frio!". Ele então se aproxima dela e a envolve nos braços para esquentá-la - oba, começou o namoro. Uma outra garota, morena, gordinha, usando óculos de grau, olha a cena de longe, gosta da ideia e resolve tentar o mesmo truque de paquera. Se aproxima do garoto de que é a fim, abraça a si mesma e diz: "que frio!". O guri olha para ela com desprezo, joga um casaco e se afasta. Quá quá quá.

Na hora pensei: vai ser este o meu destino, afinal, não sou linda nem loira. Outras meninas devem ter pensado o mesmo: as de cabelo crespo, as narigudas, as pretas, as estrábicas, as dentuças, todas encantadoras a seu modo, mas que não correspondiam ao padrão linda e loira. Alguém morreu por causa disso? Era só uma brincadeira, ora. Eu sei, eu sei, tanto que virei a página e continuei lendo o gibi.

Virei a página? Mentira.

Anos depois, quando eu tinha idade para namorar, continuei me considerando fora do padrão e não apostava um níquel no meu poder de encantamento. Quando um garoto me tirava pra dançar, eu era aquela que olhava pra trás, achando que ele estava falando com alguém às minhas costas. Uma vez, um cara gatíssimo chegou em mim numa festa e ficou conversando um tempo. Achei aquilo o máximo: ele, na verdade, estava querendo informações sobre uma amiga minha (linda e loira), mas ninguém estava escutando, parecia que ele estava a fim de mim, que felicidade! E uma vez o guri que eu gostava deixou um cartão embaixo da porta do meu edifício, e não tive a menor dúvida de que era coisa das minhas amigas, uma delas estava se fazendo passar por ele, claro.

Claro que não, mas eu enxergava alguma coisa na minha frente que não fosse a rejeição prometida?

Don´t cry for me, Brasil. A promessa não vingou e minha vida amorosa vai muito bem, obrigada, mas, às vezes, é preciso trazer à tona essas histórias, pois tem gente que reclama de que as mulheres não estão deixando nada passar batido, nem mesmo uma piadinha. É chato, concordo, mas não tem outro jeito. O mundo mudou, e tem que mudar mais. Nunca é "só" uma piadinha, há sempre uma mensagem embutida que pode causar um estrago na autoestima de alguém, e sem autoestima as pessoas ou se acovardam, ou ficam muito agressivas, e nada disso é bom. Queremos uma sociedade saudável, leve, moderna? Eu quero.

Por isso, venho lembrar que temos mil defeitos, mas ser nem linda nem loira não é um deles, é apenas uma contingência, o que importa é a gente ser segura, ter a cabeça boa e levar nós mesmas o nosso casaco quando estiver frio, porque é isso que nos torna envolventes e merecedoras dos abraços mais calientes - quando der pra abraçar de novo, lógico.

MARTHA MEDEIROS


29 DE AGOSTO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Os sem-máscara

Eles surgem em número cada vez maior, principalmente nos finais de semana. Não que não deem o ar da sua graça também nos dias úteis. Basta apenas que o sol se mostre, despudorado, assim que nasce a manhã.

Nos parques, nas praças, nas ruas, eles sentam ao sol, cuia em uma mão, celular na outra. A conversa está tão boa que, distraídos, às vezes sorvem o celular e sorriem para a cuia, apontada para uma selfie. Carentes de contato humano, sentam próximos uns dos outros, bem próximos mesmo, ombro tocando ombro. Nada como aproveitar as alegrias do convívio.

Eles caminham pelas ruas, destemidos. Fazia tempo, foi um longo e úmido inverno. Agora, indiferentes a recomendações e conselhos, aproveitam o prazer do vento nos seus rostos nus. Tem maior atentado à moral e aos bons costumes que esse, nos dias de hoje?

Eles, os sem-máscara, sem distanciamento e - porque vem junto no pacote - sem consideração pelos outros, acham que o mundo ainda é aquele velho lugar que conheceram. Que o vírus é invenção da China, coisa de comunista. E que basta usar vermífugo e remédio para lúpus que tudo, tudo passa. Bem, nem todos pensam assim. Mas quem desistiu da máscara merece ser colocado no mesmo saco.

Qual o problema em usar?

Ah, é que dói a minha orelha. Meu filho, minha filha, tem modelos de todos os jeitos. Impossível que um com a tira mais larguinha, ou mais elástica, ou que amarre atrás da cabeça, impossível que não exista alternativa para a tua orelha. Deixa de frescura, bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, é que me dá agonia, não consigo respirar direito. Meu querido, minha querida, e por isso tu vais te arriscar a contaminar geral, perdigotando na cara alheia? Conheço muita gente, muita mesmo, que teve contato com a doença sem sintomas. Meu filho só soube porque o exame sorológico acusou anticorpos. Para sorte dos outros, ele não pisa fora da porta sem máscara. Deixa de ser egoísta, bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, eu gosto de mostrar o meu rostinho lindo para os outros. Meu cidadão, minha cidadã, manda selfies, manda nudes, manda brasa no Instagram, mas bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, eu sei que, no tocante a isso daí, essa questão é só para criar pânico, para falir o comércio, para acabar com a nossa indústria, coisa de alarmista, não passa de uma gripezinha, um resfriadinho, quem tem histórico de atleta não sente nada e quem pegar é bundão. Meu correligionário, minha correligionária, vírus não tem a ver com política. Cada um acredita no que quiser - é o ônus da democracia, na boa definição do Ciro Gomes - , mas a saúde pública não tem dois lados. Estamos todos na mesma. Custa botar logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos?

O pior é que alguns países que já davam a conta por liquidada viram, aparentemente do nada, o surgimento de novos casos. Nova Zelândia e Espanha, por exemplo. De Hong Kong - que tem pela China a mesma ojeriza que o inesquecível Weintraub - veio a notícia de um possível caso confirmado e acompanhado de reinfecção. A coisa não é brincadeira, é feia e vem se debruçando. Bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Meu consagrado, minha consagrada: custa pensar um pouquinho nos outros?

CLAUDIA TAJES


29 DE AGOSTO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O francês La Fontaine (1621-1695) recriou muitas das fábulas de Esopo (620 a.C. 564 a.C.). A ideia era humanizar animais e, nos diálogos dos bichos, criar uma sabedoria moral para os humanos. A fábula 18 do livro 9 trata do milhafre (ave de rapina parecida com o falcão) e do rouxinol. O pequeno pássaro foi agarrado pelo predador. Na tentativa desesperada de sobreviver, a ave suplica ao algoz que a liberte, pois poderia cantar ou falar do famoso rei Tereus da mitologia. 

O grande pássaro sorri e diz que um estômago com fome não possui orelhas. Moral? Diante das necessidades básicas, escasseia a chance de sensibilidade ou de disposição para ouvir músicas... ou argumentos. A fome expulsa o diálogo e coloca o imperativo imediato no palco. Não me fale de Bach se estou desesperado. Não cante uma ária ou dialogue comigo se meu corpo gritar por comida! Um ser faminto só entende da busca do alimento. Essa é a lição dura e direta de La Fontaine.

Tendemos a dar razão a ditados populares e moral das narrativas Parecem sábios e eternos. "Devagar se vai ao longe", "de grão em grão, a galinha enche o papo" etc. Vamos passar por cima da tradição e duvidar. Toda moral indica a persistência e o método, ou a vida sem o verniz das utopias. Mas... será?

No caso da fábula, temos o contrário. A fome e o desespero multiplicam orelhas e tornam o angustiado excessivamente atento ao burburinho do mundo. Gente com medo escuta discursos variados, teorias conspiratórias e promessas vazias de redenção de um messias qualquer. A felicidade, esta sim, costuma produzir ouvidos de mercador. 

Quem, apaixonado, pensa nos desafios do mercado de câmbio? Quem analisa a corrupção se estiver perfeitamente satisfeito? A fome aguça as orelhas, imensamente. Todo barulho é uma solução. Cada murmúrio vira plano salvífico. Qualquer idiota se torna estadista se eu não tiver algo a perder. Países em crise, historicamente, apelaram mais a soluções radicais do que países estáveis. A votação para Hitler ocorreu em meio a fome e desemprego, com o orgulho nacional ferido. 

O Führer foi ouvido por causa da fome e da crise. Talvez, fosse apenas mais um palhaço de taverna em época próspera. O apoio de muitos chineses às tropas de Mao na China era a memória da violência japonesa na guerra, da fome nos campos e da corrupção dos nacionalistas. A China de 2000, em plena prosperidade, forneceria a mesma atenção dada ao líder comunista de 1949? Não existe "se" em história. Sou tentado a achar que prosperidade torna o ouvido muito seletivo; crise eleva a audição ao posto de órgão mais sensível.

Na lógica histórica, deveria ser sempre o contrário. Um império próspero e pujante como o romano do século 1, tolera bem personagens como Calígula ou um ano difícil como 68/69 d.C (com quatro imperadores). A falta de grandes estadistas no colapso da águia romana foi muito mais sentida. Carro bom em estrada ótima: a qualidade do motorista é menos significativa do que em terreno acidentado sob chuva.

O adolescente carente vê, no sorriso fugidio de cada moça que passa, a promessa de redenção. Os governos republicanos recentes foram esvaziando o sentido racional da política como gestão do bem comum. Em 1985, uma parte expressiva da população tinha esgotado a crença em soluções de arbítrio. Inflação alta, incompetência administrativa, desemprego e casos de corrupção tinham levado ao apoio enorme à campanha das "Diretas Já". Raiou a Nova República. Cantamos Coração de Estudante. Acabou assumindo Sarney, líder da ditadura. A inflação piorou. 

O desemprego disparou. A corrupção permaneceu. Era preciso restaurar o voto popular! Ocorreu o desejo da sociedade. Collor assumiu. Inflação, corrupção e crise de novo. Quando Fernando Henrique Cardoso passou o poder para Luiz Inácio Lula da Silva, era um fato raro. Tratava-se de um presidente civil eleito pelo voto direto passando o poder para outro presidente civil eleito pelo voto direto. Não ocorria desde 1961. Isso seria repetido na transmissão Lula-Dilma. Normalidade constitucional ser excepcional é uma mostra de que há algo de "podre no reino da Dinamarca". 

Os estômagos ficaram mais famintos. Os ouvidos se multiplicaram. Os milhafres voam cada vez mais baixo em busca de presas fáceis. Rouxinóis, desesperados, começam a pensar em apoiar o partido das águias e falcões. Estarrecedor! Cegueira galopante! Pessoas protestando para pedir um regime que... proíbe protestos. Jovens desejando o que nunca experimentaram. Bandos de pardais e rouxinóis indo para lá e para cá e dizendo "salve a ave de rapina"! Qual a lógica? O mascote da Sadia, o simpático Lequetreque, é um frango. Tem lógica e, aliás, muito superior a La Fontaine ou Esopo. É preciso ter esperança em algum rouxinol que cante e acredite em outras aves canoras.

LEANDRO KARNAL

29 DE AGOSTO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

CABALA


Kabbalah, em hebraico transliterado, significa um misticismo judaico originário da Antiguidade, que floresceu na Europa a partir do século XII e teve seu marco literário na obra Séfer ha-Zohar, O Livro do Esplendor, de Moisés de Leon, um rabino místico ibérico, por volta de 1280-86. Kabbalah é, nesse cenário, o ensinamento esotérico que transmite uma forma de interpretação dos textos sagrados do judaísmo, decifrando as relações entre um deus eterno e infinito, Ein Sof, e o universo mortal e finito da criação. A cabala considera haver um conhecimento criptografado nas letras e números das escrituras, plenas de simbologias. O saber secreto é transmitido por tradição, com o sentido de dar e receber, contido na raiz semítica qbl (para decorar, digamos "que beleza!"), que significa receber.

O crítico literário Harold Bloom (1930-2019), em Cabala e Crítica (1975 e 1991), examina, com o estudo dessa tradição, a formação e a transmissão da cultura poética, "em relações de transferência e desvio" da memória literária. Falando dos poetas e da renovação da poesia, diz Bloom: "Quando se conhece tanto o precursor quanto o posterior, se conhece a história", uma chave para compreendermos como se formam tramas. Ao tomar emprestado da mística judaica um modo de interpretar a gênese da autoria poética, Bloom inspira-nos a ler na cabala roteiros para elucidar casos de nossa própria história, nossas transferências e desvios.

A partir do Renascimento, nos séculos XV e XVI, a cabala propagou-se por meio da Tradição Hermética - a Alquimia - e gerou também uma cabala cristã. Como era conhecimento oculto, cultivado por cultores que buscavam fins impublicáveis, a palavra cabala adquiriu conotação política, consagrada, ao que parece, a partir de 1668, quando designou um grupo de ministros do rei inglês Carlos II (1630-1685), mancomunados para promover a guerra; formou-se, então, um acrônimo com as iniciais de seus nomes (Clifford, Arlington, Buckingham, Ashley e Lauderdale), a palavra CABAL. Assim essa palavra aparece na crônica de Machado de Assis de 21 de julho de 1895: "A cabala é legítima, natural, verdadeira seleção de espertos e ativos"; é uma alusão a conluios, conspirações e tramoias de políticos.

Na interpretação da cabala mística, tem especial valor a simbologia dos números. Examinemos, para demonstrar, um número qualquer, por exemplo, 89. Eis um número primo, aquele que se divide apenas por si mesmo e pelo número 1, no caso, o número um com que se racha algo em família, por ele e com ele mesmo, um amigão que até parece primo. Multiplicado por mil, esse 89 alude à questão mais vigorosa da internet e da política brasileira recente, mas também a um fetiche do número, capaz de fazer rugir a um monstro animador de emas e gado vacum. A cabala aqui nos fornece também a prova cabal do que temos em tela, trambiqueiros de oitava categoria, fazendo-se de paladinos messiânicos. Resta saber onde entram os chocolates (que beleza!), como sairemos desta, e, também, cabala que não cala, aquele secreto por que, que ora todos perguntam.

FRANCISCO MARSHALL


29 DE AGOSTO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

LIBEROU GERAL

Todo mundo na rua, na praia, nos bares e botequins e nas lojas, para não falar das festas, cada vez menos clandestinas. A máscara virou adereço pendurado na orelha ou enganchado no queixo, tão inútil quanto o revólver eletrônico para medir a temperatura da testa, na entrada dos shoppings.

Num país desigual como o nosso, sabíamos que não seria fácil chegar aos níveis de isolamento social de 70% ou mais, atingidos na China, na Alemanha, na Austrália e outros países que lidaram melhor com a epidemia.

Como mantê-lo em habitações precárias, com cinco ou seis pessoas em um ou dois cômodos? Como segurar as crianças dentro de casa nessas condições? O que fazer com a pobreza de famílias em que os recursos para a alimentação duram menos de uma semana?

Claro, que era preciso manter os serviços essenciais em funcionamento, mas não levamos em conta de que são prestados por moradores das periferias das cidades, dependentes de trens, ônibus, lotações e metrôs. Contingente numeroso que trabalha em supermercados, padarias e farmácias, policiais, porteiros de prédios, entregadores, motoristas, lixeiros e muitos outros, além do exército de técnicas de enfermagem, enfermeiras e pessoal de limpeza que arrisca a vida nos hospitais. São tantos em movimento, que os transportes coletivos se tornaram o principal ambiente de disseminação do coronavírus, nas cidades maiores.

Com as escolas fechadas e a possibilidade de trabalhar pela internet, grande número de famílias que vive em condições melhores levou o confinamento a sério. Passados cinco meses, no entanto, muitos se cansaram, sentem o peso da ansiedade e dos quadros depressivos causados pela insegurança financeira, pela ausência dos familiares e a falta de convívio com os amigos.

Neste momento, boa parte da população brasileira decretou por conta própria o fim da epidemia. Não encontro outra explicação para as aglomerações que a televisão mostra nas cidades grandes e pequenas. Existiria alguma racionalidade nesse comportamento social, prezada leitora? Em que os números da epidemia de agosto nos tranquilizam, comparados com aqueles que nos assustavam tanto, em junho?

O aguardado pico da curva, que seria seguido de queda abrupta do número de infectados, infelizmente não aconteceu. Ao pico, seguiu-se um platô que se estabilizou ao redor de inaceitáveis mil mortes diárias, número macabro que um dia cai, mas no outro sobe. Dois longos meses nesse patamar terrível, sem dar sinais de trégua.

Não conseguimos convencer parte significativa da população de que o vírus é transmitido quando uma pessoa se aproxima da outra, dado científico comprovado desde os primórdios da epidemia. Conquista civilizatória da cultura ocidental, a ciência nunca foi combatida com tanta ferocidade pelo senso comum e pelo pensamento místico, cegos a qualquer evidência que se contraponha a eles.

A crença em remédios milagrosos que, tomados no início dos sintomas, curariam os doentes, passou a ser defendida por demagogos e até por médicos formados, apesar da ausência de comprovação de eficácia, em todos os estudos clínicos já publicados nas revistas de primeira linha. A crença numa vacina que estaria prestes a nos garantir proteção definitiva ganha cada vez mais espaço na mídia, na argumentação de políticos populistas e no imaginário popular. A dura realidade, prezado leitor, é a de que nenhum medicamento demonstrou atividade antiviral, em qualquer fase da doença ou antes dela se instalar. Mesmo que a vacina venha a proteger todos os que a receberem, não estará disponível em tempo hábil para impedir as mortes que se acumularão até o fim do ano e nos primeiros meses de 2021.

Sem antivirais nem vacinas disponíveis nesta hora, o que nos restaria para evitar tantas mortes? Ouvir o que diz a ciência: cuidar da higiene das mãos, usar máscaras protetoras e guardar distância uns dos outros sempre que sairmos de casa.

Se tomarmos esses cuidados e as autoridades de saúde tiverem bom senso e vontade política para testar o maior número possível de pessoas nas ruas, para identificar rapidamente as que estão infectadas e as que mantiveram contato com elas, ainda será possível reduzir o número de infectados e de mortos. Caso contrário, na base do liberou geral, a tragédia brasileira persistirá por vários meses.

DRAUZIO VARELLA


29 DE AGOSTO DE 2020
MONJA COEN

INSPIRAÇÃO

Inspiração seria uma piração interna? Pirar, sair do eixo de equilíbrio ou, talvez sair do marasmo, da depressão - quem sabe seja a força que impulsiona à vida? Inspirar e expirar são o respirar.

Sem respirar não vivemos mais do que alguns minutos. Podemos ficar sem comer, sem beber por dias, mas não podemos viver sem respirar.

Ao nascer, quando saímos do útero, mudamos do mundo aquoso para o mundo de ar, vento, atmosfera. O ar entra pelas narinas e boca do bebê e quando sai toca as cordas vocais, que faz um som, um choro - a vida.

Não é um choro de dor, de tristeza, como acreditava Platão. Segundo o filósofo grego, a alma lamentava haver nascido humana e chorava. Hoje sabemos que é apenas um ato mecânico: ar batendo nas cordas vocais. Inspiração e expiração.

Ao morrer, dizemos que foi a última expiração - a partir dela não haverá outra inspiração. Dentro e fora - ar, transparente, invisível e precioso soprando - vai!

Entretanto, inspirar também tem outro sentido. Talvez o que dê sentido, propósito. O que nos inspira é o que nos faz ser. Intersendo, coexistindo, interligados e tudo, incessantemente se movimentando.

O que nos inspira a levantar pela manhã? Seria apenas a vontade de ir ao banheiro ou de comer, tomar café, suco, chimarrão? Ou será que há algo mais?

Recebi da Associação Palas Athena de Estudos Filosóficos, sediada em São Paulo, um texto inspirador que compartilho, de autoria de um grande ativista social dos Estados Unidos:

"Embora eu possa não estar aqui com vocês, exorto-os a responder ao chamado mais elevado do seu coração, e a defender aquilo que realmente acredita. Na minha vida, fiz tudo o que pude para demonstrar que o caminho da paz, o caminho do amor e da não violência é o caminho de maior excelência. Agora é a sua vez de fazer o sino da liberdade ecoar por todo o planeta. Quando os historiadores pegarem suas canetas para escrever a história do século 21, faça com que eles digam que foi a sua geração que finalmente fez suprimir o pesado fardo do ódio, e que a paz enfim triunfou sobre a violência, a agressão e a guerra. Então vos digo: andem com o vento, irmãos e irmãs, e permitam que o espírito da paz e o poder do amor eterno sejam os seus guias."

O autor é John Robert Lewis (21/2/1940-17/7/2020), líder do movimento por direitos civis e político norte-americano. Ele era negro e defendia a equidade, a inclusão de homens e mulheres de todas as etnias, na sociedade.

Então, assim inspirada, eu pergunto: você anda com o vento? Voa e atravessa, passa pelos buracos das fechaduras e as frestas das janelas? Você permite que a paz e o amor sejam seus guias? Permite que conduzam e apontem a você o caminho? Você defende o que acredita através da não violência, do amor, da paz, da compreensão? É tempo de despertar.

Livremo-nos do vírus da guerra, do ódio, da segregação racial, do abuso de vulneráveis. Acordemos para o amor incondicional. Mãos em prece

MONJA COEN


29 DE AGOSTO DE 2020
J.J. CAMARGO

A FRÁGIL BLINDAGEM DA AUTOESTIMA

A capacidade de adaptação dos animais é determinante da qualidade de vida, e, para muitos deles, ao longo dos séculos, foi determinante para a sua sobrevivência. O homem, que além do instinto comum às outras espécies, ainda tem a inteligência, aprendeu a arte da dissimulação de modo a ser poupado, por pudor ou escrúpulo, de limitações físicas ou emocionais que revelem alguma fragilidade.

A propósito, qualquer condição que gere no portador a sensação de inferioridade em relação aos seus pares deve significar o direito à ajuda, dentro do moderno conceito global de saúde.

Até 2% da população branca nos EUA têm hiperidrose, ou seja, a tendência a suar desproporcionalmente. Mãos, pés e axilas são os locais mais afetados. Existem vários tratamentos alternativos, inconstantes, caros e fugazes, e há a simpatectomia torácica, um procedimento ambulatorial definitivo, feito por vídeo, em que se secciona uma cadeia de glândulas que cursam junto à parede interna do tórax, e que são responsáveis pela regulação do suor em diferentes regiões do corpo. Cerca de 50% dos pacientes operados referem um período de suor compensatório nas costas e na barriga, às vezes nas pernas, que desaparece depois de algumas semanas. Nos pacientes com sobrepeso, esse para-efeito pode persistir e, em função disso, esses indivíduos são incluídos nas contraindicações. O índice de satisfação dos pacientes, aferido pela afirmação de que repetiriam o procedimento é, em todas as séries, maior do que 95%.

A maioria dos pacientes tem entre 15 e 20 anos, porque é nessa fase da vida que aumentam as chances de interações físicas da juventude, o que implica em constrangimento pela descoberta da disparidade. Como era de se prever, há um perfil comum nessa população: são jovens tímidos, retraídos, envoltos por uma blindagem de antipatia protetora, de quem não tem a menor intenção de distribuir apertos de mãos suadas ou de oferecer abraços calorosos com axilas empapadas.

Mas voltando ao início desta crônica: que maravilhosa a capacidade de sobrevivência dos humanos!

Sem nenhuma exceção, todos os pacientes com hiperidrose acabam desenvolvendo alguma estratégica de dissimulação para que os outros não percebam seu problema. E, muitas vezes, a própria família desconhece a extensão do sofrimento, que se pode avaliar pela pressa com que eles querem ser operados, depois que descobrem que há solução. Mas, antes disso, cada um convive do jeito que dá, com muita criatividade e uma dose enorme de irresignação. Uma psiquiatra me pediu que lhe secasse as mãos, porque estava cansada do falso carinho de beijar a quem preferia não fazê-lo. Uma garotinha de 15 anos tinha sido banida de uma escola de música porque, mesmo com o cuidado de ter sempre uma toalhinha à mão, o sal do suor emperrava o piano. Enquanto o Gilmar, reconhecendo que suas mãos geladas e úmidas eram apêndices anti-eróticos nas preliminares, não abria mão de sexo no chuveiro.

O Serginho, na adolescência, apanhava do padrasto porque não conseguia terminar as provas, pois com a sudorese agravada pela ansiedade borrava tudo. Contou-me esta história quando veio consultar com 21 anos, decidido a ser operado o mais rápido possível "porque precisava começar a viver!". Quando comentei "que sorte teu padrasto ter mudado de ideia", ele respondeu com desconsolo: "Aquela anta não mudaria nunca. Ele só fez o favor de morrer!".

Aquela frieza era a expressão pura de um ódio construído pela contínua desconsideração do sofrimento. Conversem com sofredores crônicos, e descobrirão que poucas vinganças têm igual solidez.

J.J. CAMARGO


29 DE AGOSTO DE 2020
DAVID COIMBRA

A música mais bonita do mundo

Decidi fazer minha playlist. Você sabe o que é playlist? É uma lista de músicas. Você baixa por um aplicativo e bota para tocar no jantar com os amigos ou numa viagem de carro. Aliás, se você for fazer playlist de viagem de carro, tem de começar com uma chamada Don?t Dream it?s Over, de uma banda da Austrália, a Crowded House. Tem versão em italiano e em espanhol. Você ouve essa música e se imagina rodando por uma estrada vazia ao pôr do sol. Eu, aqui, me imagino dirigindo com uma única mão, levando o cigarro aceso na outra, fitando o horizonte com o olhar do caubói que teve de partir, apesar das súplicas da amada.

Mas, como a minha playlist não é de viagem, resolvi começar com outra música. Lembrei de algo que me aconteceu quando cobria a Olimpíada de Londres. Nós tínhamos terminado o trabalho e marcamos de nos encontrar, eu, o Piangers e o Tulio Milman, em um pub. Cheguei antes, finquei os cotovelos no balcão e pedi uma pint. Estava ali, meio desligado, nem sentia os meus pés no chão, quando os músicos do bar começaram a tocar uma melodia que reconheci nos primeiros acordes. Era Waiting on a Friend, dos Stones. Quer dizer: Mick Jagger esperando por um amigo. No caso, Keith Richards. Em Londres. Os caras estavam cantando para mim! Quando o Piangers e o Túlio chegaram, eu me sentia um espírito livre, uma pedra rolante. Desde aquele dia, tenho apreço especial por essa música. Coloquei na minha playlist.

Aí o aplicativo, esperto que é, sugeriu outras músicas correlatas, entre elas My Love, do Paul McCartney. Ah, ouvi essa da boca do próprio McCartney em seu primeiro show em Porto Alegre, no Beira-Rio. Ele anunciou, em português britânico:

"Essa canção eu fiz para a minha gatchinha".

Falava de Linda McCartney, que morreu no fim dos anos 1990. Concluí que Paul a amava muito mesmo, porque, afinal, ele já tinha outra mulher, e não hesitava em ressaltar que aquele clássico do pop internacional era em homenagem a Linda. O jeito que ele cantou foi de fato emocionante. Vi pessoas chorando ao meu redor e eu mesmo, romântico que sou, senti uma melancolia doce me tirar um oh do peito.

Foi um show histórico. O melhor que vi. Era uma noite amena, o ar estava perfumado e fino. Saímos do estádio felizes, flutuando, olhando com benevolência uns para os outros, como se a trilha sonora do mundo fosse sempre uma balada dos Beatles.

Minha playlist, porém, não poderia se restringir aos britânicos. Quem sabe Como Vai Você?, do Antônio Marcos, só que cantada pelo Rei, que, segundo o meu amigo Nelson Guahnon, é a música mais bonita do mundo? Por que não? Acrescentei.

Qual será, a propósito, a música mais bonita do mundo? Uma que parece ter sido composta no Olimpo é Ária na Corda Sol, de Bach. Se bem que a Sonata ao Luar, de Beethoven é igualmente divina. Essas duas não tinham nada a ver com as anteriores, mas as relacionei.

Talvez as músicas mais bonitas do mundo só possam ser escolhidas por categoria. Cada uma das que escolhi, assim, seria a mais linda de seu nicho. Tango, por exemplo. O mais belo tango que existe é Por una Cabeza, de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. Cada vez que vejo Al Pacino bailando este tango com a jovem Gabrielle Anwar, em Perfume de Mulher, meu Deus, chega a me vir uma bola de emoção na garganta. Não me debulho todo porque sou do IAPI.

Essa Gabrielle Anwar é inglesa, como Paul e Mick, e tem uma beleza ingênua e dourada que faz a gente ficar pensando e pensando... Ela foi a irmã do rei Henrique VIII na ótima série The Tudors.

Mas, voltando aos tangos, fico cogitando se El Día que me Quieras, outro de Gardel e Le Pera, não ombreia com Por una Cabeza. Em todo caso, listei ambos. Com um detalhe, que, sei, vai arrepiar os puristas: preferi El Día que me Quieras interpretado por Roberto Carlos. Sério. Você acha um escândalo? Ouça o Rei cantando Gardel e depois venha me falar.

Tenho de colocar uma gaúcha. Pra te Lembrar, do Nei, é tão linda... E Desgarrados, do Mário Barbará? Cristo! Está me dando uma aflição. Não escolherei apenas uma, e sim as cem músicas mais bonitas do mundo. Será a minha playlist, uma playlist invencível, a melhor playlist. O próximo jantar com os amigos será inesquecível.

DAVID COIMBRA



29 DE AGOSTO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

Expointer da superação

Merece apoio e aplausos o esforço empreendido pela Secretaria Estadual da Agricultura e demais entidades do agronegócio para não deixar simplesmente um vazio no calendário com a impossibilidade de realizar a Expointer de forma presencial neste ano. A feira que se consolidou como um patrimônio emocional do Rio Grande do Sul, vitrine da genética animal de ponta, das mais avançadas tecnologias no maquinário agrícola e palco de discussões sobre temas relacionados ao campo será desta vez essencialmente virtual, pela impossibilidade de comparecimento do público que a cada edição lota as dependências do Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio.

Com o compreensível e necessário cancelamento da mostra no formato tradicional, para evitar aglomerações e transmissões do novo coronavírus, entra em cena a proposta da Expointer Digital, como vem sendo chamada, reunindo em um portal a maior parte das atrações da feira. É a forma possível para de algum modo realizar a mostra e amenizar o impacto econômico de um puro e simples ato de desistência em um ano inusitado e sacudido pela pandemia. Neste sábado, data que marca os 50 anos do Parque Assis Brasil, está programada uma live com a participação do governador Eduardo Leite e de organizadores, com lançamento virtual do evento, que começa com a venda de máquinas, carro-chefe dos negócios da exposição.

Apesar da seca que atingiu as lavouras do Estado na última safra, há bons motivos para acreditar em um satisfatório volume de vendas. Contribuem para esta expectativa os juros baixos e os bons preços dos principais grãos, como soja e arroz, o momento também favorável para o leite, o crescimento das exportações de carnes e a certeza de que no longo prazo o Brasil e o Rio Grande do Sul permanecerão como celeiro confiável de alimentos para o mundo em um cenário de crescimento da demanda global.

Estrelas da Expointer desde os seus primórdios no Parque do Menino Deus, na Capital, os animais que formam a elite genética das cabanhas do Estado e de outras regiões do país também terão a sua vez, com os julgamentos das raças e provas que poderão ser acompanhados pelo público de forma virtual, de 26 de setembro a 4 de outubro, uma vez que em Esteio será permitido o acesso apenas dos criadores e profissionais envolvidos. As delícias da agricultura familiar, consolidadas nos últimos anos como um forte atrativo, não serão esquecidas e possivelmente poderão ser vendidas por meio de um aplicativo com entrega a domicílio ou por um drive-thru, a ser montado nas dependências do parque.

Ao longo das suas 42 edições, a Expointer se solidificou como um emblema do vigor do agronegócio gaúcho, um segmento acostumado a enfrentar adversidades e superar obstáculos. A 43ª, por força das circunstâncias, será diferente, mas nem por isso deixará de reconhecer o resultado do trabalho de sol a sol dos produtores dos mais longínquos rincões do Estado e, como sempre, permitir que se mire um futuro promissor, a despeito de qualquer contratempo.

OPINIÃO DA RBS



29 DE AGOSTO DE 2020

O PRAZER DAS PALAVRAS


Item


Ganhei da minha mulher um relógio chinês que registra quantos passos eu dei, quantos minutos dormi, quantas vezes meu coração anda batendo por minuto e muito mais. Gosto muito dele, mas sonho com um modelo, no futuro, que possa também computar o número de caracteres que escrevo por dia. Quando isso acontecer, muita gente vai ficar surpresa ao perceber que nunca escreveu tanto em sua vida. Há um discurso apocalíptico - e tolo - de que os ícones e emojis estão aos poucos substituindo a linguagem. Nada mais falso. Uma contagem de quantas vezes acionei cada tecla do celular ou do computador chegará a cifras amazônicas; se impressa, uma cópia de todas as minhas mensagens enviadas por e-mail ou pelas mídias sociais num só dia pode encher facilmente várias folhas de tamanho A4.

Nunca foi tão fácil interagir com outras pessoas, comentar notícias, compartilhar momentos importantes de nossa vida e, principalmente, deixar registrada nossa valiosa opinião sobre tudo (o erudito renascentista Pico della Mirandola, que era capaz de dissertar sobre omni re scibili, "todas as coisas conhecidas", era fichinha perto de qualquer "especialista" de hoje). Por outro lado, nunca ficaram tão expostas as deficiências individuais no manejo do próprio idioma - e, sabendo disso, há por aí muitos envergonhados que procuram escrever o mínimo possível.

Falo nisso porque recebi a primeira consulta pelo áudio do WhatsApp. Georgina S. (não sei como conseguiu o meu número) se desmanchou em desculpas por invadir minha linha privada: "Eu tentei fazer a pergunta por e- mail, mas não tive coragem de enviar para o senhor porque texto parecia cheio de erros. Falando acho que eles não aparecem". Ela estava com a razão: apesar do leve sotaque castelhano, não havia reparo algum na sua fala. Ela começou ganhando pontos comigo por sua gentileza e porque estava lendo Machado de Assis, mais especificamente o Brás Cubas. Ao encontrar a frase "Meu tio cônego morreu nesse intervalo; item, dois primos", chegou a pensar que alguma palavra tinha sido suprimida inadvertidamente, mas como se tratava de uma edição especial - "muito bonita e muito cara", disse ela -, resolveu perguntar.

Não, Georgina, não há nenhuma palavra faltando. Machado de Assis escreve este romance no final do séc. 19, exatamente quando o termo item, como uma sucuri que muda de pele, está abandonando o seu significado antigo para envergar um outro, novinho em folha. Na origem, item é um advérbio latino que significa "também, da mesma forma". Era muito usado em enumerações legais e na redação de testamentos, para relacionar os itens arrolados.

No séc. 18, o padre Manuel Bernardes fala do pitoresco testamento de um burguês desiludido com a família: "E, para acabar meu testamento, escreva Vossa Mercê: Mando aos demônios a minha alma; mando aos demônios a alma de minha mulher; item, mando aos demônios as almas de meus filhos; mando-lhes também a alma de meu confessor". No rol dos bens testados, o termo era usado como forma de evitar repetições: "um baú de marchetaria; item, de madeira de lei; item, de sola com reforços de bronze". Na frase de Machado, é exatamente este o seu significado: os primos também morreram. Ora, por ser usado sempre em enumerações, o termo virou substantivo e passou naturalmente a designar uma unidade que faz parte de um conjunto ou de uma lista.

O próprio Machado, mais ou menos ao mesmo tempo em que publicava seu Brás Cubas, descreve sua reação imaginária ao ler, num jornal mineiro, a composição de uma lista distrital de candidatos: "Rasguei afinal a folha, e perdi os dois itens". Do outro lado do Atlântico, exatamente na mesma época, Eça de Queirós, o outro gigante de nossa língua, faz um inventário dos gastos de uma cocotte: "Um largo envelope atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o Vilaça - que percorria os itens, espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo". Hoje ninguém estranha quando falamos em itens de vestuário, nos itens de um catálogo, nos itens de viagem; est­e novo significado foi se consolidando e suplantou o anterior, que se tornou uma curiosidade filológica.

Aproveito para reiterar meu convite aos aficionados por Cultura Clássica: não deixem de dar uma passada pelo meu podcast sobre Mitologia Grega em noitesgregas.com.br. Nesta semana, continuo a falar sobre os amores de Afrodite.

CLÁUDIO MORENO


29 DE AGOSTO DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO - MARCIO PIMENTA Fotógrafo

"Queria saber por que eles estavam sofrendo mais do que os outros"

De todas as vítimas das crueldades praticadas pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI), os yazidis são os mais odiados. São monoteístas e pré-cristãos, consideram que Deus é representado por sete espíritos - um deles chama-se Melek Taus, o mesmo nome que o Alcorão, o livro sagrado do Islã, dá a Satanás. Daí o ódio dos fanáticos que ocuparam, por anos, parte do Iraque e da Síria, estuprando mulheres e escravizando homens.

Apesar de todo o sofrimento, essa minoria étnica é ainda pouco conhecida mundo afora. Sensibilizado pela luta desse povo, o fotógrafo paulista Marcio Pimenta (detalhe), radicado há três anos em Porto Alegre, decidiu jogar luzes sobre o drama. Encantado com a resiliência dos yazidis, ele documentou as bravas mulheres desse povo. O resultado está no livro fotográfico Yazidis, que está lançando pela Editora Artisan. À coluna, ele conta os bastidores da obra.

Por que você decidiu fazer um livro sobre os yazidis?

No Iraque, conheci uma jovem que trabalhava com uma ONG de apoio aos refugiados yazidis em Erbil, capital do Curdistão, onde eu estava hospedado. Eles não eram objeto de meu trabalho naquela primeira viagem, mas, nos passeios para conhecê- los, havia uma garotinha de uns cinco anos que ficava grudada em mim. Criou aquele carinho, e comecei a me interessar mais pela história do povo deles. De fato, eu nunca tinha ouvido falar dos yazidis. Mas ficou aquele carinho, uma curiosidade sobre eles. Fiz apenas algumas fotos, mas sem pretensão de publicá-las.

O seu foco era o front da luta contra o Estado Islâmico. Como foi mudar a perspectiva para o drama dos yazidis?

Eu queria fazer o que todos estavam fazendo (registrar a guerra entre os peshmergas, tropa curda, contra o EI). Quando voltei para o Brasil, com a experiência de ter vivido o conflito, comecei a pesquisar mais sobre o povo yazidi. Queria saber por que estavam sofrendo mais do que os outros. Aquilo gerou uma imensa empatia. Decidi voltar para guerra não mais para a linha de frente. Falei: "Vou me dedicar agora ao povo yazidi".

O que mais chamou atenção ao fotografá-los?

Foi a capacidade deles de adaptação à nova realidade. O que mais me sensibilizou é que, pela religião deles, uma mulher yazidi que tem uma relação sexual com um homem não yazidi perde sua condição, deixa de ser yazidi. Eles eram muito rigorosos com essa lei. Quando houve o genocídio, e as mulheres foram sequestradas e violentadas, tecnicamente deixaram de ser yazidi. Só que foram tantas, milhares, que ficaram com medo de que a própria etnia acabasse sumindo por não haver mais mulheres na comunidade. Então, eles criaram o rebatismo: as mulheres que conseguiram a liberdade voltavam para uma fonte, como se fossem crianças, para serem novamente batizadas e ganharem de novo a condição de yazidi. Era quase um ritual de purificação. Isso para mim demonstrou a capacidade transformadora deles. Tiveram de romper com o próprio preconceito. Falei: "Nossa, essa história precisa ser contada, de como se dá a resiliência". De como, muitas vezes, a gente precisa romper com convicções, dogmas que temos, para que possamos avançar. Porque, se eles não mudassem, iam sumir.

No Brasil, os yazidis são ainda pouco conhecidos. O seu livro contribui para dar visibilidade a um povo praticamente invisível. Era esse também o objetivo?

Exatamente. Eles receberam muita atenção em 2014, quando houve a tentativa de genocídio. Os Estados Unidos, o governo Barack Obama, ordenou um ataque aéreo para diminuir o impacto (da perseguição). Ali o mundo ficou sabendo que existia uma etnia chamada yazidi. Depois, teve o Nobel em 2018 para a Nádia Murad. Eles conseguiram se organizar e buscar direitos, reconhecimento internacional. Mas tem uma luz muito menor sobre eles do que em outros povos.

Como conseguiu despertar a confiança especialmente das mulheres, sendo homem, para fotografá-las?

Houve uma coincidência. Antes de eu voltar, precisava estabelecer contato com eles. Eu precisava ir no centro em Lalish, onde havia o batismo. Precisava de permissão. Entrei em contato com a fundação Yazda, contei das minhas intenções, e eles foram superabertos. Quando cheguei lá (Erbil) e me apresentei, conheci a diretora, descobri que ela, que não é yazidi, tinha passado seis meses no Rio de Janeiro. Sabia um pouco de português. Isso criou empatia. Ela autorizou que eu fotografasse e disse que o principal motivo que estava permitindo que eu, homem, os fotografasse era porque estavam passando por lá muitos jornalistas que tiravam foto e iam embora. Não se preocupavam realmente em dar destaque ao povo yazidi. Para eles, eram apenas mais um sujeito da guerra. Ela disse: "Você foi o primeiro que afirmou ?vou ai para fotografar vocês?". Tive toda permissão, conversei muito com as mulheres.

O livro está dividido em três partes: front, convívio social e depois os retratos. Por quê?

Dividi assim para dar primeiro o contexto da guerra, localizar onde esse povo está. Queria que as pessoas entendessem onde estão, antes de falar das mulheres. Comecei com front, depois de convívio social e finalmente com imagens do batismo.

RODRIGO LOPES


29 DE AGOSTO DE 2020
CAMPO E LAVOURA

Marcas do que ficou

NO CAMINHO DA CONQUISTA

O outdoor (foto) às margens da BR-116 indica a expectativa em meio à Expointer de 2000. O Rio Grande do Sul se preparava para buscar o status de livre de aftosa sem vacinação. Na semana em que antecede o início da feira, fiscais estaduais agropecuários que já estavam no parque Assis Brasil em Esteio, foram acionados para uma ocorrência no Interior. Era o que se confirmaria como foco da doença em Joia. O surto não só impediu a progressão do status como levou à necessidade de rifle sanitário, em episódio que ainda suscita lembranças dolorosas. Em 2001, novos focos foram registrados. Vinte anos depois, o Estado tenta dar novamente esse passo. E pode chegar à feira de 2021 com o certificado da Organização Mundial de Saúde Animal em mãos.

PEÕES EM ALOJAMENTOS

Prática comum, a permanência dos peões junto aos animais em exposições, nos pavilhões da feira virou alvo de polêmica. E em 2008, o Ministério Público do Trabalho proibiu as acomodações nesses locais. Um ano depois, foi erguido um alojamento, dentro do parque, para que eles pudessem ficar durante o período da exposição. Essa estrutura é anualmente locada e instalada para receber esses profissionais que têm a tarefa de acompanhar de perto o plantel levado para os juglamentos em Esteio.

5O ANOS DO PARQUE

A transferência para o parque Assis Brasil, em Esteio (leia mais nas páginas 16 e 17), em 1970, marca nova fase da exposição até então realizada no Menino Deus, na Capital. Alçou a feira a um novo patamar e, dois anos depois, virou Expointer. Em sua história, teve episódios marcantes, da política à sanidade. Veja alguns deles.

IMINÊNCIA DE BOICOTE

A invasão de uma propriedade em Hulha Negra e a retomada das vistorias para desapropriação fizeram produtores decidir por boicote à participação na Expointer em 1999. O impasse só terminou a dois dias do início, quando o governo federal acenou com suspensão das vistorias e divulgação de novos índices de lotação pecuária. A tensão se refletiu na inauguração: teve vaias, aplausos e protestos na cerimônia (foto abaixo).

GISELE LOEBLEIN