sábado, 29 de fevereiro de 2020



29 DE FEVEREIRO DE 2020
LYA LUFT

Não vou falar naquilo

Tanto assunto neste mundo vasto, vastíssimo, e vou procurar alguma coisa bem comum, bem cotidiana, porque há um assunto em que não quero falar. Vou conseguir?

Começo pela volta da praia, ou da serra (muito mais gente busca a praia no verão), para ver como nos adaptamos. Estranhamente, demoramos mais a nos acostumar de novo em casa do que no lugar escolhido para férias. Porque lá, diferente da vida comum, tudo é novidade, e nas coisas daqui esbarramos com certo tédio. A mesma sala, a mesma cama, a mesma comida, os mesmos programas de TV, e, se não formos meio ignorantes, até os mesmos livros na prateleira. E como livro anda caro, acabamos lendo na internet, o que também eu eventualmente faço.

A volta, o retorno, depois daqueles dias sonhados um ano inteiro. Meu irmão pequeno e eu, em outubro, clareando céus e paisagens quando havia estações distintas, já dizíamos senti "cheiro da praia". Devia ser meio fantasia, meio memória da maresia, das comidas de lá, das gentes e bichos... ele andava na carretinha puxada por um cabrito, eu já montava a cavalo com meu pai muitas vezes, adorando aqueles rumores, aquele cheiro meio selvagem.

O ano inteiro sonhávamos com a praia. O ano inteiro nos preparávamos, de alma e pensamento, para aquele mês, às vezes dois - , aí a gente começava a se entediar um pouco, porque o ser humano é isso mesmo, novelo de complicações, enredo de chatices.

Vai daí que além da volta das férias, porque as aulas estão começando, temos o cansaço do calor. Muitas pessoas adoram, eu desgosto um pouco, porque calor só em praia e piscina, lugares onde geralmente hoje não estou. Detesto a preguiça que o calor me causa, maior ainda do que minha já natural preguiça desde sempre (essa guria nasceu cansada, diziam em casa). Desmarcamos uma viagem à Itália nos próximos dias, não vou dizer por que motivo, e acho que ficamos um pouco mais tristes. Meu novo livro, As Coisas Humanas, deve sair pela Record em fim de abril, mas vamos ver se se farão grandes reuniões - minha ilusão de sempre, em geral correta, gracias, leitores amados - ou se vai ser adiado também. De momento nada sabemos, além das notícias que ocupam quase todos os espaços, inclusive de esportes e economia... sobre o assunto que não abordarei.

Então, começo das aulas. Lembro com que alegre expectativa, nos tempos de escola ou universidade, esperávamos por essa hora. Que novos colegas, que professores, que matérias, que interesses, que entusiasmos ou... que tédios também? Mas haveria sempre a biblioteca quando o resto estava meio sem graça.

Esta é uma época de retornos, recomeços, reencontros... ou fins. O namorico da praia, a amizade da serra, os aromas, os ruídos, as pessoas... o retorno troca o cenário, mas os bastidores são os mesmos: nossa alma alegre ou melancólica, nossa realidade boa ou péssima, ou razoável, mas quem quer o razoável? E como nós em parte construímos nossa vida, mãos à obra.

Consegui uma coluna inteira sem falar... no coronavírus. Ou nas entrelinhas ele esteve aqui o tempo todo?

LYA LUFT

29 DE FEVEREIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Amigos imaginários


Foi das boas surpresas cinematográficas deste verão: Jojo Rabbit. O filme (que ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado) é lúdico, divertido, inteligente e ousado: dá para imaginar um garotinho que tenha Hitler como amigo imaginário?

Pequena ainda, eu me fechava no quarto e cantava para plateias que só eu enxergava, mas um amigo imaginário, nunca tive. Uma pena, pois toda criança tem múltiplas razões para providenciar um cúmplice secreto e invisível que concorde com o plano de assaltar a geladeira de madrugada e que ajude a enfrentar os monstros embaixo da cama. Crianças têm medo e não gostam de se sentir sozinhas.

Hoje, crescidos, ainda temos amigos imaginários, e acho que é por medo também. Sabe aqueles milhares de nomes que te seguem no Facebook e no Instagram? Não custa lembrar: são amigos só na sua cabeça.

Não temos mais idade para fazer xixi na cama, mas ainda ficamos apavorados só de pensar na solidão, o bicho-papão de 10 entre 10 adultos. Em vez de aceitar que ela é parte de nós e que não é tão medonha assim, preferimos disfarçá-la através de uma socialização de faz de conta. Fotografo meu congrio com batatas, posto nas redes, 42 pessoas curtem, e já não estou almoçando sozinho.

Enquanto isso, a Maria, uma das que curtiu seu peixe com batatas, está compartilhando um texto sobre política e recebendo dezenas de aprovações em forma de likes, e o João, que também curtiu seu congrio, está postando a foto da afilhada que hoje faz 15 anos. Todos com o celular na mão buscando a confirmação de que não estão sós.

É uma cachaça, eu sei, também posto. Mas temos que falar sobre isso. Ficar tanto tempo no celular, ao contrário do que parece, é a maneira mais rápida de sucumbir à solidão, pois não se está com ninguém, nem consigo próprio. Desperdiçamos um tempo que poderia ser dedicado à introspecção, à leitura, à música - à nossa insubstituível companhia.

Tem muita coisa interessante na timeline de pessoas interessantes, e muita bobagem na timeline dos bobos. Sabendo fazer uma filtragem, as redes se tornam proveitosas fontes de informação. Se, além disso, elas forem usadas para dar o pontapé inicial numa relação de amizade, profissional, romântica ou sexual, ótimo - a internet ajuda a adiantar o serviço. Mas, se a ideia é apenas colecionar milhares de seguidores, adicionar o amigo do amigo do amigo de algum conhecido, sem jamais transformar isso em alguma experiência de troca real, aí é só um exercício de ilusão para amenizar carências infantis. Serão sempre amigos imaginários que, caso você conhecesse mesmo, talvez não merecessem se sentar com você à mesa para compartilhar seu peixe com batatas.

MARTHA MEDEIROS


29 DE FEVEREIRO DE 2020
CARPINEJAR

Pergunte

De um vez por todas, mulher não gosta de apanhar, não gosta de sofrer, não gosta de ser humilhada. Ela não pede um tapa, não quer um tapa, tapa não é pretendido nem dentro do sexo.

Que os trogloditas entendam que ela não tem uma queda por tipos assustadores, que não fica seduzida por selvagens e grossos, que não prefere os toscos e brutos, que não espera alguém que mande e dite as regras.

Isso não é o politicamente correto, é a verdade.

Ter pegada não é agarrar. Ter firmeza não é imobilizar. Apartar não é empurrar. Dar segurança não é oprimir.

Se ela viveu um relacionamento abusivo, não desejava tal experiência, não é masoquista para procurar o pior dos mundos sentimentais, foi ludibriada e enganada. Caiu na cilada de quem se mostrou muito diferente no início do romance, de quem mentiu respeito e romantismo para agradar e encantar nos primeiros meses de convivência, até firmar o namoro, e depois impôs o seu ciúme, as suas acusações e sua grosseria sistemáticos, que já existiam de longa data nas histórias pregressas e só não eram visíveis para os desconhecidos.

Nenhum homem começa o envolvimento gritando, ofendendo, maltratando. Se acontecesse, todas logo fugiriam e não apostariam a sua vida em cenário de visível perigo. Ninguém iria sonhar com um filho com um sujeito truculento, para criar sozinha e viver sob constantes ameaças e brigas na Justiça.

A questão é que os pretendentes tóxicos têm uma aparência inofensiva e, às vezes, doce. Fingem ser o que não são: dedicados, amorosos e atentos na atração. A farsa costuma enganar perfeitamente qualquer um. A vítima não é a culpada. Não há como duvidar de que ele não é assim. Só o tempo desfaz as máscaras.

Não coloque esse despropósito na conta feminina, que ela escolheu errado e tem dedo podre. Não determine o comportamento dela como doentio, ansiando pela submissão, desenvolvendo a dependência com prazer, escravizando-se por livre e espontânea vontade, e assim isentando o autor dos maus-tratos, aquele que é unicamente responsável e exerceu a dominação pela violência psicológica, física e emocional.

Não fale por ela, simplesmente pergunte.
CARPINEJAR


29 DE FEVEREIRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

Censurando livros não lidos

Conta velho documento russo que um obscuro administrador da uma região periférica do império desejava agradar ao czar Alexandre III. A região tinha problemas enormes de devastação de florestas, doenças crônicas, baixo nível da educação e ínfimos salários de professores. Em vez de elaborar respostas para tais questões, o governador obscuro da região ignota decidiu que proibiria os contos do grande e popular Nikolai Gogol.

Motivos para barrar um autor já falecido e consagrado? Não faltavam. Era aclamado como russo, porém seu nascimento ocorrera em terras ucranianas, algo suficiente e suspeito. Depois, não era um defensor da Igreja Ortodoxa ou da autoridade do czar. Seus textos eram de um realismo cru e os temas, quase nunca muito elevados. O conto O Capote, por exemplo, era quase banal ao tornar um humilde funcionário alvo de literatura. O pior de tudo? Nosso governador, membro do exército cossaco, soube que a obra O Inspetor Geral era, claramente, voltada contra autoridades, logo, contra ele!

Tudo isso foi informado ao militar-governador, pois, para ser sincero, o político jamais lera qualquer obra de literatura, como se depreendia do seu baixo domínio da gramática russa. Como ele poderia odiar e proibir se jamais lera? Fácil, seu adjunto especial para escolas imperiais elaborara uma lista que proibia Gogol e muitos outros autores. O secretário lera ou era um especialista? Ainda menos. Estava lá por fidelidade partidária e por ser homem de confiança da elite do Cáucaso. Quase ágrafo como seu chefe, o burocrata tinha sido informado por um especialista encarregado de expurgar as bibliotecas russas das influências nefastas. O secretário, que nada lia e era de uma burrice ebúrnea, informou ao governador, que também desconhecia a complexidade dos fluxos literários, e ambos, dotados de furor e relatórios de terceiros que teriam observado as obras, publicaram um decreto oficial e imperativo: as escolas só deveriam ler obras previamente aprovadas pelo comitê dos bons costumes do Cáucaso superior.

A ideia dos iletrados era agradar e parecerem pessoas de bem. O nível da confusão começou a crescer. Em festa de inauguração de uma nova ponte que homenageava o príncipe Nicolau, um jornalista francês perguntou ao governador o que ele achava de ruim na obra de Gogol. Silêncio constrangedor. O governador jamais abrira um livro do autor proibido. O irritante jornalista insistiu: qual o problema do texto O Capote? Para escapar da impertinência, o político falou das modas estrangeiras de roupas e que o estrangeirismo era inadmissível em um país de bons costumes eslavos.

Para sair do encontro desagradável, o governador indicou seu secretário de educação, que, mais imaginativo, falou da perniciosa influência do Ocidente nos capotes russos. Como dois enforcados que se enredam em cordas cada vez mais extensas, cada nova frase trazia ao mundo (o jornal deu manchete) o completo desconhecimento daquelas autoridades provincianas. A assinatura da proibição ostentava, em bom e claro cirílico, o nome de ambos.

O conhecimento do que estavam proibindo era um mistério. A oposição aproveitou para fazer uma peça satírica, O Casaco, com um governador de ficção como crítico literário. Foi um sucesso estrondoso. A censura czarista nada podia fazer porque nenhum nome era identificado e nenhum valor cristão ou a família Romanov eram alvo. Só um governador iletrado e seu assistente. Dizem que, em São Petersburgo, Alexandre III leu e gostou do texto. A censura popularizou Gogol, que recebia novas edições no império. O caso dos confins virara fenômeno nacional.

Um dia, afastados ambos do cargo e, por motivos de corrupção, enviados à distante Sibéria, os dois lamentavam todo o ocorrido. Em noite geladas, com o vento fustigando seus surrados capotes, um olhava para o outro e comentava, entre arrependimento e dor: "A gente poderia, ao menos, ter lido um conto desse cara". Porém, ambos já não se lembravam do nome censurado e o presídio não dispunha de biblioteca.

O império seguiu mais alguns anos solapado pelas suas contradições estruturais e pelos seus burocratas ignorantes. Quando os dois nomes bizarros já tinham sido esquecidos, o vento bolchevique varreu a vastidão daquele mundo e, lutando contra a opressão da nobreza, dos proprietários de terras e de burocratas ignorantes, levou ao poder um novo Estado, com novos burocratas, igualmente censores e que desconfiavam de Gogol por não louvar Lenin.

O tempo varreu as ditaduras monárquicas e soviéticas para baixo do tapete da história, matou czares e derrubou a Nomenklatura e, ainda brilhando no horizonte, o nome genial de Nikolai Gogol continua reluzindo para todos aqueles que, em lugar de seguirem censores imbecis, decidem beber da boa e clássica literatura.

Ler é para quem não tem medo. É preciso ler muito para ter alguma esperança de que, um dia, o bom povo russo seja governado por gente alfabetizada. A história é eslava. Nunca a imaginem em climas mais quentes.

LEANDRO KARNAL


29 DE FEVEREIRO DE 2020
ARTIGO

SATURNO EM CHAMAS

QUEM CURSOU MEDICINA NO SÉCULO 20 FOI ENSINADO A PENSAR QUE HAVIA UMA BARREIRA IMPERMEÁVEL ENTRE O CÉREBRO E O SISTEMA IMUNOLÓGICO. NO SÉCULO 21, FICA EVIDENTE QUE ELES ESTÃO PROFUNDAMENTE INTERCONECTADOS
A noção da melancolia na filosofia e nas artes medicinais da Antiguidade e da Idade Média baseava-se na Teoria dos Humores, que atribuía comportamentos e doenças ao equilíbrio dos elementos sangue, linfa, bile amarela e bile negra. A teoria perdurou entre o século 4 a.C. e o século 17 e permanece em termos, conceitos e equívocos. 

Da mitologia e da astrologia, a imagem de Cronos/Saturno - o deus e o planeta - impôs sua influência sombria. De Aristóteles (que ligava melancolia e genialidade) a Walter Benjamin, Freud, Shakespeare e Albrecht Dürer, muitos filósofos, pensadores, literatos e outros artistas debruçaram-se sobre o tema, não raro pelo peso da vivência pessoal. Do Renascimento ao Romantismo, das ligações da melancolia à criatividade até o reconhecimento da depressão como doença de importante repercussão na saúde pública, fez-se longo caminho. Ainda causa maior drama quando negada como enfermidade real e atribuída apenas a um estado de desânimo, de sujeição à falta de vontade.

A psicanalista e filósofa búlgaro-francesa Julia Kristeva questiona: "De onde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?".

O século 20 viu a evolução da psicologia e da psiquiatria até a chegada de alternativas medicamentosas à extensa classificação de doenças a partir de suas apresentações clínicas. Passou-se a falar muito em doença mental, sem conhecer suas causas e o tratamento mais adequado. O estigma persiste, mas vai sendo substituído por uma maior aceitação social. Também assistimos a uma mudança de posicionamento frente às práticas de internação e suporte dos doentes, com uma evolução considerável, embora ainda acirrem-se debates em grupos antagônicos que se aproximam e se assemelham em seu anacronismo dogmático. A realidade socioeconômica também não favorece.

A circunstancial presença de um reumatologista, clínico que lida com doenças inflamatórias e autoimunes, num hospital psiquiátrico pode provocar estranhamento, mas me oportunizou a convivência com muitos pacientes e a constatação de que os serviços de saúde física e mental seguem segregados, refletindo um preconceito filosófico contrário à conexão entre mente e corpo.

Não deverá ser assim por muito tempo. É o que diz Edward Bullmore, neuropsiquiatria britânico, professor da Universidade de Cambridge, autor de The Inflamed Mind. Em recente entrevista para o The Guardian, o autor entusiasma-e com esse novo marco científico: o vínculo entre depressão e inflamação. Sugere a origem dos transtornos mentais no sistema imunológico e tratamentos específicos na ruptura de ciclos viciosos de estresse, inflamação e depressão.

O cérebro descortina-se célere como nova fronteira para o entendimento da inflamação. Quem cursou Medicina no século 20 foi ensinado a pensar que havia uma barreira impermeável entre o cérebro e o sistema imunológico. No século 21, fica evidente que eles estão profundamente interconectados.

Para os reumatologistas, essa revolução já começou com o advento dos medicamentos imunobiológicos, tornando possível o controle de artrites de forma antes apenas idealizada. O mesmo vale para muitos casos de câncer, com perspectivas animadoras. Entre doenças neuropsiquiátricas, avanços no tratamento da esclerose múltipla têm apontado direções. Novos medicamentos são projetados para proteger pacientes contra danos cerebrais causados por seus próprios sistemas imunológicos. Espera-se que o direcionamento da inflamação cerebral possa levar a avanços na prevenção e no tratamento de depressão, demência e psicose. Medicamentos já vêm sendo testados como possíveis tratamentos imunológicos para a esquizofrenia.

O horizonte parece ser bem mais amplo, afirma o doutor Bullmore. Investe-se em testes de medicamentos anti-inflamatórios para a doença de Alzheimer e o Parkinson. Mas isso não se dá somente em relação a fármacos. Revisa-se também o papel de dieta, obesidade, estresse, microbioma intestinal, doenças gengivais (que, além de porta de entrada para infecções, parecem estar associadas a uma aceleração do déficit cognitivo à medida que ficamos mais velhos) e outros fatores de risco na inflamação de baixo grau que pode ser controlada sem medicamentos. Inúmeros estudos também avaliam os efeitos anti-inflamatórios de intervenções psicológicas, meditação ou atenção plena, ou programas de gerenciamento de estilo de vida, dietas ou regimes de exercícios.

O termo inflamm-aging, que serve para designar o estado inflamatório crônico que acompanha o envelhecimento, torna-se cada vez mais condizente. Ao mesmo tempo em que nos faz lembrar a nossa condição frente à passagem do tempo, adverte para a necessidade de lutar-se preventivamente contra os fatores que aceleram os processos inflamatórios.

Na mesma linha, essa nova abordagem da inflamação e do cérebro se soma a argumentos que têm o potencial de transformar nosso pensamento sobre as doenças. A barreira entre mente e corpo, por tanto tempo alicerçada como dogma, parece estar com os dias contados.

Dentre lembranças, a da mãe de um paciente tentando compreender e justificar o que acontecia com o filho:

- É de um momento para outro, doutor. Está muito bem, até faceiro e falante e, de repente, é como se lhe riscassem fósforos, pequenas labaredas que em nada alumiam, provocam cinzas e escuridão.

Não se subestime jamais a capacidade intuitiva de uma mãe. Saturno pode estar em chamas. Que o deus do tempo não se apresse em devorar seus filhos.

FERNANDO NEUBARTH | MÉDICO E ESCRITOR

29 DE FEVEREIRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

Sociedade e mercado, a fábula



Sociedade era mais do que uma dama, uma família, em verdade, uma aldeia, que era um conjunto de famílias. Na aldeia Sociedade, havia de tudo, inclusive uns primos que se moviam pela ambição de riquezas e que atendiam, curiosamente, todos pelo mesmo nome: Mercado. Sociedade sabia o que queria - sobreviver em paz -, e por isso cedo criou regras que interessavam a ela, Sociedade, visando à harmonia social e ecológica. Afinal, Sociedade era o corpo maior, em que estava contido não apenas o clube dos ambiciosos, o Mercado, mas também outros clubes, dos anciãos e das crianças, dos poetas, de professoras, desportistas, gentes dos museus e orquestras, dos órgãos assistenciais, da segurança pública, isso tudo, e muito mais, eram partes da Sociedade. Mercado era não mais do que uma pequena parcela de Sociedade, porém muito vaidosa e ambiciosa.

Houve uma era, ó Lector, em que a aldeia Sociedade foi tomada de assalto, atacada e devorada. Foi uma época de desequilíbrio, quando Mercado agrediu com violência, querendo para si todos os bens e valores da Sociedade. Cada vez mais rico e poderoso, capaz de comprar, seduzir, manipular e corromper, Mercado chegou ao trono e avançou ditando para todos regras que favoreciam apenas a ele, ou a eles, membros de um clube pródigo, chamado Oligarquia Plutocrática, em que Mercado brindava seu sucesso com malignas gargalhadas. Ao ardiloso Mercado, não interessavam as razões de Sociedade; achava todas ociosas. Valia apenas o que a ele saciava, Mercado. E assim seguia a vida.

Para seduzir o povo de Sociedade, Mercado comprou todas as tipografias e os teatros e, ademais, logrou camuflar-se com o aspecto de uma ancestral muito antiga, chamada Realidade. Mercado parecia ter realizado seu sonho, confundir-se com a Realidade, e persuadir aos demais de que ele, Mercado, era a Realidade. Nisso, Mercado engoliu a Sociedade como o Lobo Mau engoliu a Vovozinha. A documentação da época é impressionante. Nos noticiosos, anunciavam-se diariamente números do corpo de Mercado, suas cotações e humores, e se falava das vontades do Mercado como se fossem os quereres de um senhor muito forte, primo-irmão do Leviatã de Hobbes, porém com cara de anjo necessário.

Convertidas em vermes na barriga do Mercado, as partes, clubes e classes da Sociedade apenas ruminavam, e muitas, ingênuas, no fundo da caverna das entranhas do Mercado, acreditavam que era mesmo a Realidade. Abandonou-se o interesse da mamãe Sociedade (onde foi parar?); interessava apenas a felicidade do Mercado. Para exaurir a Sociedade devorada, Mercado tratou de secar-lhe as veias e artérias, chamadas Esfera Pública e Espaço Público. Mercado tinha ojeriza a toda a família Pública e queria devorá-la, como voraz canibal. Escola Pública, Saúde Pública, Cultura Pública, Praça Pública ou até Mercado Público pareciam ser presas apetitosas a Mercado, para serem abocanhadas e ampliar o vigor de Sua Alteza Leviatã-Mercado. (continua)

marshall@ufrgs.br | Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS

FRANCISCO MARSHALL

29 DE FEVEREIRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

Trump e as crianças ilegais


Vejam no que dá entregar a Presidência da República a um boçal
As imagens das crianças separadas dos pais em abrigos do governo chocaram a sociedade americana e o mundo civilizado. Impossível não lembrar dos campos de concentração nazistas.

The New England Journal of Medicine é a revista de maior circulação entre os médicos. Em suas páginas, são publicados os estudos com potencial para mudar o modo de compreender e tratar as doenças.

Como é uma revista técnica, fiquei surpreso com o conteúdo de dois artigos sobre os filhos de imigrantes ilegais aprisionados nos Estados Unidos. O primeiro foi escrito pela pediatra Fiana Danaher, do Mass General Pediatric Hospital, em Boston, sob o título "O sofrimento das crianças", no qual ressalta que a Academia Americana de Pediatria, a Associação Médica Americana e centenas de outras organizações repudiaram, com veemência, o isolamento forçado das crianças.

Com a política atual de tolerância zero, 20% a 25% dos ilegais já deportados deixam filhos nascidos em território americano. Segundo a pediatra, a perda dos cuidados paternos provoca mudanças na fisiologia do organismo infantil, que causarão enfermidades físicas e mentais pelo resto da vida.

Como o custo médio de cada criança abrigada é de U$ 800 por dia, importância suficiente para hospedar a família em hotel de luxo, a doutora Colleen Kraft, presidente da Academia de Pediatria, afirma que "o governo Trump sancionou medidas para maltratar crianças, às custas dos impostos de milhões de americanos". Fiana Danaher encerra com a frase: "Se permitirmos que crianças já traumatizadas sofram tratamento tão brutal, estaremos todos com as mãos sujas".

O segundo artigo, de Charles Czeisler, especialista em fisiologia do sono, na Universidade Harvard, vem com o título "Abrigando crianças imigrantes - A desumanidade da iluminação permanente". Czeisler diz que, apesar de o presidente ter voltado atrás, ainda há 1,1 mil crianças mantidas em abrigos como o da cidade de McAllen, no Texas, no interior do qual passam 22 a 23 horas por dia trancadas em celas com cerca de 20 ocupantes. As janelas são escuras e as luzes ficam acesas dia e noite.

Segundo ele, maus tratos como esses terão repercussões duradouras, uma vez que é fundamental para a saúde e o desenvolvimento permitir que a criança durma no escuro da noite e tenha a retina exposta à luz do sol, pela manhã. Enquanto as crianças lutam com os estresses físico e psicológico do encarceramento e se recuperam do trauma da separação das famílias, o mínimo que podemos fazer é deixá-las dormir.

A claridade no período noturno interfere com a arquitetura do sono e rompe o ciclo circadiano, responsável pelo conjunto de reações fisiológicas que se alternam no organismo, em sincronia com as 24 horas do movimento de rotação da Terra. Estudos mostram que recém-nascidos mantidos em UTIs com luzes acesas, permanecem internados 15 dias a mais.

Deficiências de sono durante duas semanas são suficientes para desregular o ritmo circadiano a ponto de induzir pré-diabetes, reflexo da incapacidade das células beta do pâncreas em produzir a insulina necessária para lidar com a glicose das refeições.

Durante o desenvolvimento, a exposição noturna à luz tem consequências ainda mais graves, porque a necessidade de sono é maior. O bebê de 0 a três meses precisa dormir 14 a 17 horas por dia; dos quatro aos 11 meses, são necessárias 12 a 15 horas; de um a dois anos, 11 a 14; dos três aos cinco, 10 a 13; dos seis aos 13 anos, nove a 11; e dos 14 aos 17 anos, oito a 10 horas de sono.

Crianças de dois anos que dormem menos de 12 horas diárias duplicam o risco de chegar obesas na pré-escola. Adolescentes com menos de seis horas e meia de sono por dia, aumentam em 150% o risco de hipertensão arterial e em 250% o de desenvolver transtornos do sono, além de apresentar agravamento dos quadros de asma e estatura mais baixa, resultado da redução dos níveis de hormônio do crescimento.

O especialista termina dizendo: "Enquanto as crianças lutam com os estresses físico e psicológico do encarceramento e se recuperam do trauma da separação das famílias, o mínimo que podemos fazer é deixá-las dormir".

É inacreditável, leitor, que esses fatos ocorram num país de valores democráticos como os Estados Unidos. Olha o que dá entregar a Presidência da República a um boçal.

DRAUZIO VARELLA


29 DE FEVEREIRO DE 2020
MONJA COEN

Pós Carnaval

Dizem que o Brasil só começa a funcionar após o Carnaval. E você? Está funcionando? O que seria funcionar? Trabalhar, estudar, brincar, dançar, cantar, passear, ser?

Vida é movimento e transformação. O Carnaval acabou. Passou. Houve alegrias e tristezas. Expectativas.

Houve quem estivesse filmando uma cena em grande alegria e záz! Celular roubado das próprias mãos. Correria.

Alguns conseguiram recuperar. Outros não. Alegria foi embora. O sorriso desapareceu da face. Aflição. Raiva. Tristeza. Tudo em milésimos de segundos. Transitoriedade. Vazio de identidade fixa e permanente.

Fiz dois retiros. Um durante o Carnaval. Silenciando a mente, aquietando o corpo.

Os primeiros dias são sempre difíceis. Sem celular, sem TV, sem jornais, sem notícias.

Na Quarta-feira de Cinzas, vim para Porto Alegre, pois na quinta dei início a outro retiro - o pós-Carnaval, em São Leopoldo. Neste sábado, encerramos esse encontro de meditação organizado pela Monja Kokai Sensei do Zen Vale dos Sinos. Sentar e ouvir, ver, sentir, perceber que nada tem uma autoidentidade substancial independente e separada.

Antes do Carnaval, fui convidada a abrir o desfile da Mangueira, no Rio. Não pude ir. Estava em Zazen - sentada em meditação com um grupo na Comunidade Zen Budista de São Paulo. No Vila Zen, em Viamão, outras 50 pessoas se sentaram, com a Monja Shoden Sensei. Por todo o Brasil, grupos budistas organizaram retiros de silêncio em meditação.

Não fui ao Rio, mas estive junto com os 20 religiosos, de espiritualidades diferentes, que caminharam pela avenida antes de a Mangueira entrar. Respeito ao samba-enredo de Jesus de Nazaré.

Alguns dias antes, em São Paulo, fui convidada a um musical sobre Sidarta Gautama - o Buda histórico. Atores, cantores e bailarinos yoguis encenaram um espetáculo único e belíssimo - ensinamentos sagrados revelados não por monges e monjas, leigos ou leigas budistas, mas por artistas. Roupas coloridas, cenário simples. O grupo viaja o mundo. Já passaram por 17 países.

A figura de Buda bebê, jovem, adulto, idoso, morto. E o contínuo de sua vida em seus discípulos e discípulas.

Arte popular dá vida a seres sábios e sagrados da antiguidade. De repente lá estão eles, bem à nossa frente. Como se manifestariam hoje?

Uma senhora indígena sugeriu - a quem se fantasiasse de índio/a - que não esquecessem do sangue, dos buracos de bala no corpo ou da corda no pescoço dos jovens suicidas... Há tanto sofrimento no mundo.

O voto superior de um discípulo ou discípula de Buda é de se dedicar a que todos os seres despertem para a Sabedoria Perfeita. Que todos os seres alcancem a consciência iluminada universal. Não é uma prática centrada em si, na sua própria salvação. É a prática de facilitar o despertar da humanidade.

Pós Carnaval, a folia acabou. A vida continua fluindo. Podemos refletir e facilitar para que toda a humanidade, todos os seres conscientes possam ter suficiência, ternura, sabedoria e compaixão ilimitadas. Quando percebemos o vazio, a transitoriedade, não nos afastamos da realidade dos que sofrem e precisam de apoio.

Por isso renovo meus votos:

"Seres são inumeráveis, faço o voto de salvá-los. Apegos são inexauríveis, faço o voto de extingui-los. Portais do Darma são ilimitados, faço o voto de aprendê-los. O Caminho de Buda é insuperável, faço o voto de me tornar esse caminho".

Mãos em prece

MONJA COEN


29 DE FEVEREIRO DE 2020
J.J. CAMARGO

AS ÂNCORAS E O QUE SOMOS SEM ELAS

Ninguém tem toda a fé que o mais religioso apregoa, nem descrê tão completamente quanto o mais incréu alardeia. "Mas, afinal, o senhor crê em Deus ou não? Pergunto isso porque tenho dúvidas se me entregaria a um ateu!"

Havia muita ansiedade pela minha resposta, e então, querendo entender melhor a priorização desta certeza, retribui perguntando:

- O senhor não confia que Deus, impressionado com o tamanho da sua fé, guiará minhas mãos na melhor direção possível, considerando que é a sua vida que estará em jogo?

Ele ficou um longo tempo em silêncio constrangido, até admitir: - Pois é, não tinha pensado nisso, mas talvez uma fezinha extra ajudasse!

Pronto, ficamos resolvidos. Não me importava mais a crença ou a falta dela. Não se pode desperdiçar com penduricalhos o afeto de um tipo dono dessa transparência.

Solidificada a relação, admitimos que, honestamente, ninguém tem toda a fé que o mais religioso apregoa, nem descrê tão completamente quanto o mais incréu alardeia. E concluímos que essas posições mais radicais, com a arrogância da certeza absoluta, são uma exclusividade da saúde perfeita. Qualquer ameaça, por sutil que seja, desencadeia um estímulo sacro que nos põe ajoelhados e de mãos postas, tornando-nos irreconhecíveis.

A possibilidade sempre assombrosa da morte tem este poder de exaurir nossas reservas de coragem e galhardia. Desnudos de qualquer brio fantasioso, nos socorremos de todas as âncoras afetivas disponíveis. E, nesse sentidos a fé religiosa é inexcedível como consolo para os devotos e como provocação para os infiéis, porque esses sempre se sentem diminuídos diante de uma fé inabalável. Mesmo os que não creem, mas trabalham com o sofrimento alheio, são envolvidos pelo manto da esperança que emana da fé, e que por ser assim, quase se apalpa, ainda que não se explique.

Por isso, o ser humano em crise com a descoberta de sua fragilidade depende das tais estacas de sustentação e, assim, nada como a religião, por ser uma entidade ao alcance de todos, sem discriminações, nem teste de aptidão dos candidatos, e a custo zero. Uma espécie de pronto-socorro da alma. Mesmo aos não religiosos, a atividade médica ensina a diferença da resignação diante do sofrimento. E marcadamente, na sofreguidão da perda, o papel que a crença na vida depois da morte desempenha como consolo na aridez espiritual do luto. De qualquer modo, discutir crença religiosa segue sendo uma tarefa ingrata, pois nada atrapalha mais a relação entre pessoas com níveis diferentes de fé do que a radicalização, esta geradora de conflitos milenares, responsáveis por mais mortes, ao longo da história, do que todas as epidemias reunidas.

Aos ocidentais, choca que em outras civilizações preservem-se ritos com algumas punições grotescas, ainda que tenhamos de admitir que o preceito de amputar a mão de quem rouba seja um indiscutível estímulo ao trabalho honesto.

Aos agnósticos, sempre chateou a figura de um Deus que transferiu para a Igreja o papel de modelador do comportamento social, através do castigo ao pecado, porque a gente queria tanto que Ele fosse só um grande queridão.

Talvez por isso, tenham me impressionado tanto as tétricas figuras do Juízo Final, que Aldo Locatelli pintou, com maestria, no teto da Catedral de São Pelegrino, situada a duas quadras da casa dos meus avós, em Caxias do Sul, onde rezei com medo em férias da minha infância, quando eu ainda nem sabia o que era o pecado.

J.J. CAMARGO



29 DE FEVEREIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Será que ele voltará?

Ouvi dizer que o trema pode estar voltando. Linguistas de Portugal e do Brasil teriam chegado à conclusão de que a reforma da última flor do Lácio não deu certo, e agora querem voltar atrás. Será verdade? Duvido que reconheçam o erro. Não é do feitio daqueles senhores provectos da Academia.

Você, que está preocupado com o coronavírus e a alta do dólar, pode achar que essa é uma discussão parnasiana, que só interessa a alguns poucos preciosistas da gramática. Não é assim. A língua não apenas expressa o que o homem pensa; ela pode mudar a forma do homem pensar.

Heidegger dizia que só é possível filosofar em alemão e em grego. Caetano, sabedor dessa frase, ironizou: "Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção". Algum despeito do Caetano, porque a sentença de Heidegger tem sua lógica: o alemão e o grego são apropriados para a filosofia por serem flexíveis, perdulários em sufixos e prefixos e capazes de unir palavras em matrimônios quase perfeitos, ainda que improváveis.

Aliás, um parêntese: Heidegger teve não um matrimônio, mas um relacionamento improvável com a filósofa Hannah Arendt. Ele já era um professor reconhecido, ela ainda era uma jovem aluna de 18 anos. Ele era nazista, ela era judia. Mas se gostavam e se respeitavam. Bonito. Fecha parênteses.

Voltando ao alemão e ao grego, essas línguas têm a propriedade de definir sentimentos e pensamentos ainda não descritos porque contam com a principal qualidade da evolução: a adaptabilidade. Uma única palavra em alemão pode reunir diversos conceitos. Por exemplo, a muito útil lebensabschnittspartner, que significa "a pessoa com quem vivo hoje". Ou a simpática freundschaftsbezeugung, que é uma "demonstração de amizade". Você tem feito freundschaftsbezeugungs ultimamente? Faça. Quem tem amigos, tem tudo.

Claro que, para um brasileiro, é muito difícil falar ou mesmo aportuguesar um troço desses, freundschaftsbezeugung, mas com o grego nós conseguimos fazer esse truque sem nem notar. Quer ver? "Arquipélago" vem de duas palavras gregas: "arqui", que é "chefe" ou "principal", e "pélagos", que é "mar". Para os bons e antigos gregos, o mar principal, o chefão dentre os mares, era o Egeu. Assim, eles o chamavam de "Arquipélago". E, como o Mar Egeu tinha muitas ilhas, mais de mil, arquipélago virou sinônimo de conjunto de ilhas, o que nós incorporamos alegremente ao português.

O que quero dizer com tudo isso é que a língua é o instrumento que materializa nossos sentimentos e pensamentos, e é esse, inclusive, o princípio da psicanálise. Falando sobre você mesmo você compreende quem é; compreendendo quem é, compreende melhor o mundo.

Ou seja: o trema, embora pareça tão vetusto, tem sua importância, bem como o hífen e os acentos diferenciais. Sem o trema você pode ter dúvida acerca da pronúncia do apelido de um amigo meu de infância, o goleiro Languiça, que, por ser magro e comprido, se assemelhava a uma linguiça, anteriormente adornada pelo pequeno porém inequívoco trema: linguiça. Isto é, você sabia que linguiça se dizia "lin-gu-í-ça" e que Languiça era assim mesmo, tudo junto, o que é muito mais engraçado. O Languiça era bom goleiro. Você deve se lembrar dele, foi aquele que levou uma bolada de futebol de salão bem nas partes pudendas, que incharam horripilantemente, saindo para fora do calção, uma visão medonha.

Agora, de todas as mudanças equivocadas da repelente reforma, a que mais me incomoda é a remoção do acento do para do verbo parar. Nos velhos tempos você ordenava a alguém que pretendesse mexer nas normas da língua:

- Para! E a pessoa parava na hora.

Hoje, se você mandar, "para", ela é capaz de perguntar: - Para onde?

Sem o seu acento, o para é um Sansão de cabeça raspada, à mercê dos filisteus. Depois da repelente reforma, se você quiser ser atendido, tem que gritar:

- Tire suas mãos imundas do meu trema agora mesmo, seu sacripanta de fardão!

Um desperdício de palavras, algo que não combina conosco, brasileiros, que apreciamos as contrações, os diminutivos e as simplificações. É o nosso jeito de pensar e de agir. O que é descomplicado funciona; o que é um pouco mais complexo, fracassa. Amamos a simplicidade. É um predicado. Desde que não vire redução.

DAVID COIMBRA


29 DE FEVEREIRO DE 2020
MÁRIO CORSO

30 de fevereiro

A Câmara Municipal de Porto Alegre, depois de resolver todos os problemas da cidade, voltou-se para consertar os humanos. Para tanto, instituiu mais um dia no calendário de efemérides comemorativas e de conscientização. Trata-se do Dia Municipal do Amor-próprio, celebrado no dia 28 de fevereiro. Na última sexta-feira, portanto.

A minha sugestão é que seja deslocado para dois dias à frente, para 30 de fevereiro. Mas esse dia não existe, alguém dirá. Exato, por isso a efeméride coincidirá com o tema: o amor-próprio tampouco existe.

É contraintuitivo, mas veja como funciona. O eu só toma-se como objeto de amor, ou seja, ama a si mesmo, se outra pessoa se interessar por ele. Em outras palavras, se alguém apontar que ele é legal, então ele vai gostar de si. A questão que sublinho é que o processo começa fora. Ou seja, é ilusoriamente interno, pois funda-se através da alteridade. O correto seria dizer que essa satisfação consigo mesmo é uma heteroestima internalizada.

O dito amor-próprio existe porque no passado alguém nos amou, cuidou, educou e acreditou que seríamos algo. Esse passado amoroso cristaliza-se no que vem a ser chamado de amor-próprio.

Mas não dá para fazer uma ligação direta: eu e eu mesmo, sem passar por alguém? Não poderia apenas eu gostar de mim, fundando uma bolha narcísica autoalimentada? Funciona por um tempo, e é o que ensinam os livros de autoajuda, a negação da necessidade da alteridade. O problema são os efeitos colaterais delirantes que paralisam o crescimento. O que nos altera e nos enriquece são os outros, é no atrito social que crescemos, não no isolamento.

Somos seres sociais, nosso sucesso passa por nos inserirmos e sermos reconhecidos. Quando isso, por várias razões não acontece, por sermos ineptos socialmente, sermos desinteressantes, ou até por não fazermos por merecer o amor e o reconhecimento, vamos precisar driblar o problema. O correto seria verificar a razão e corrigir o rumo, crescer, mudar, ou descobrir que estamos na tribo errada.

O atalho é negar a alteridade e ficar como estamos, nos iludindo de que tudo estaria bem. Essa é a base da ideologia da autoajuda. Criar algo alucinado em que o eu seria bom o suficiente, mesmo que ninguém diga que é, assemelhando-se à loucura nas suas certezas autofundadas.

Existem momentos da vida em que apenas nós acreditamos em nós mesmos. Quando desafiamos o destino e queremos mudar nossa vida. Por exemplo, trocar de trabalho, de carreira, de cidade, buscando outros desafios. Para isso, precisamos contar com a tenacidade do nosso desejo. Nesse momentos, confundimos coragem e resiliência com amor-próprio.

A efeméride carrega o equívoco do discurso de autoajuda sobre a autossuficiência e pensa o amor-próprio como a mola central do nosso funcionamento. Os humanos não são tão simples.

MÁRIO CORSO


29 DE FEVEREIRO DE 2020
ANO BISSEXTO

A cada quatro anos, um aniversário

A mãe de Angélica Gusmão de Freitas, 44 anos, sabia que daria à luz entre fevereiro e março, mas não podia adivinhar que seria no dia mais raro do calendário. A probabilidade de um bebê nascer em 29 de fevereiro é de uma em 1.461. A consequência é só poder celebrar no dia certo de quatro em quatro anos, em anos bissextos - como neste sábado.

Parece um infortúnio, que qualquer um faria questão de evitar - e nenhum dos hospitais de Porto Alegre contatados por Zero Hora tinha cesarianas marcadas para o dia. Mas Angélica adora. Torceu para que seu filho nascesse na mesma data, o que acabou não ocorrendo.

- Acho um privilégio, porque tenho três dias de aniversário. Já digo para as pessoas: "me parabenizem no dia 28 e no 1º". Ganho o dobro de abraços. E, quando tem dia 29, é ainda mais especial.

A historiadora Caroline Fernandes, 37 anos, pensa parecido. Além de sempre ter conversa, ela pode escolher em qual dia vai celebrar.

Neste ano, mesmo em viagem a trabalho, em São Paulo, a porto- alegrense está certa de que vai sair com amigos para comemorar o 29 de fevereiro.

- Já que demorou tanto, né?!

Descoberta

No caso da bancária Carina Fauri, que está fazendo 40 anos, seus documentos foram feitos com a data do dia 1º, em Putinga, no Vale do Taquari, sua cidade natal. Ela só descobriu que nasceu no dia 29 quando adolescente.

- Achei estranho, fiquei chateada. Acho que tinham de ter registrado no dia correto.

Isso ocorria bastante, mas não é mais permitido. Quem nasce em 29 de fevereiro deve ser registrado com o dia exato na certidão de nascimento, feita a partir da Declaração de Nascido Vivo, com informações como dia, mês, ano, hora e município de nascimento.

Carina tem ainda outra reclamação:

- Acho que deveria ganhar dois presentes.

No final de semana, a bancária quer ir para Gramado, celebrar com a filha em um parque de neve artificial. A menina também fará aniversário no começo do mês.

- Ela vai fazer oito anos e eu, 10 - ri Carina.

Por coincidência, neste dia 29, o auxiliar de almoxarifado Alex do Nascimento Brum vai fazer 29 anos. Tecnicamente.

- Escuto piadinhas dizendo que eu sou uma criança ainda.

Zoeiras à parte, nascer no dia 29 pode trazer coisas muito boas para quem acredita na numerologia. Para a astróloga Moara Steinke, essas pessoas costumam ter uma ligação muito forte com a espiritualidade.

- Quem nasce nesse dia vai receber muita energia para o seu desenvolvimento.

JÉSSICA REBECA WEBER


29 DE FEVEREIRO DE 2020
FLAVIO TAVARES

A MALDIÇÃO

O coronavírus percorre o planeta como maldição e pânico. Pergunto-me, porém, se não há um erro de interpretação em parte do que se diz. Vemos as consequências sem ir às causas profundas que geraram o vírus maldito.

Em 1920, a "gripe espanhola" matou milhões mundo afora. O horror tinha surgido dos cadáveres insepultos da Grande Guerra de 1914-18, quando não havia antibióticos nem a ciência se desenvolvera como hoje. Agora, porém, nos interessamos em saber as consequências econômico-financeiras provocadas pelo vírus (com as bolsas de valores despencando pelo mundo) sem ir às causas do novo horror.

Nada surge das nuvens, como chuva. Não por acaso, o coronavírus nasceu na China, que desprezou a natureza para se industrializar. Ao optar por uma visão falsa de progresso, a China inverteu a ordem natural, colocando o dinheiro do dia a dia acima da saúde e da vida em si. Nos últimos anos, a China percebeu o erro brutal e, hoje, busca energias limpas, evitando o carvão mineral que cobriu com cinzas cidades e campos.

Mas a soma das consequências já tinha iniciado o processo nefasto que gerou o novo vírus, que agora se propaga pelo mundo e nos amedronta. Toda epidemia é fruto da degradação do meio ambiente pela sujeira profunda, seja de que tipo for. Começa no lixo caseiro, vai ao desleixo das indústrias e da mineração e chega aos agrotóxicos que consumimos nos alimentos. Na moderna sociedade de consumo, está no ar, nas águas ou terras e nos assalta no lar, mas agimos como quem não se banha e usa perfume francês para iludir o fedor.

No quase pânico atual, o essencial não é a queda das bolsas de valores e do PIB, mas alertar sobre as causas concretas que geraram o novo vírus. Fora disso, é usar máscaras para disfarçar a insensatez de ignorar as causas do horror.

Vale o óbvio: higiene não gera doenças!

No Brasil, porém, como preocupar-se com o coronavírus quando o presidente da República propaga o absurdo e se associa aos que pedem a dissolução do próprio Estado?

O vídeo que Bolsonaro difundiu em apoio à manifestação contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal é um ultraje à convivência dos brasileiros. Só os ditadores prescindem do Legislativo e, mais ainda, do Supremo Tribunal. Nosso Congresso está cheio de ignorantes, corruptos ou vorazes demagogos (e Bolsonaro foi deputado por vários anos), mas a culpa é nossa, dos eleitores, nunca do Legislativo em si.

O Supremo Tribunal, às vezes, erra, mas ainda é o único que nos salva da desesperança e do absurdo. Ao apoiar os que querem "acabar" com o Legislativo e o Judiciário, Bolsonaro gera mais pânico que o coronavírus, pois é maldição nascida aqui.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


29 DE FEVEREIRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

PRIVATIZAÇÕES AQUÉM DO ESPERADO

Uma das principais iniciativas para reduzir de forma drástica o peso do Estado brasileiro, as privatizações caminham em um ritmo bem aquém do desejável e muito mais lentas do que as miraculosas promessas da equipe que cercava a campanha do então candidato Jair Bolsonaro. Entre a expectativa e a realidade, a segunda vem se impondo e mostrando o quanto é tortuoso o caminho para enxugar a máquina estatal. Guru da área econômica do presidente, Paulo Guedes chegou à época a prometer mais de R$ 1 trilhão em privatizações, um processo que seria rápido e ajudaria a zerar o déficit primário do governo federal em 2019, que acabou fechando em R$ 95 bilhões.

O secretário especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercados, Salim Mattar, contabilizava, ao final do ano passado, privatizações da ordem de R$ 105 bilhões, mas quase nada deste montante foi arrecadado de fato pelo Tesouro Nacional. A grande maioria foi resultado de vendas de subsidiárias ou participações de estatais e, portanto, foram recursos que ingressaram nos cofres de empresas como Petrobras, Eletrobras, Caixa, Banco do Brasil ou BNDES. Foi abaixo do esperado, admitiu Mattar, que agora calcula R$ 150 bilhões em 2020.

Chegar a esta meta, porém, não será tarefa fácil, uma vez que o governo esperava aprovar o chamado "fast track" das privatizações, o que permitiria atalhar etapas que antecedem a venda, como a análise pelo Tribunal de Contas da União e, no caso de grandes estatais, eliminar a necessidade de autorização do Congresso. Diante do aviso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de que a medida seria ilegal, não restou alternativa senão o recuo.

O governo ainda não encontrou o caminho para acelerar o processo de desestatização. A venda da Eletrobras, que se arrasta desde do governo Michel Temer, ainda depende do convencimento do Senado, tarefa ingrata para uma gestão que peca na articulação política. Há pouco mais de 10 dias o governo atualizou algumas projeções sobre as privatizações de uma série de empresas. A Casa da Moeda, pelo cronograma do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), será oferecida à iniciativa privada no final deste exercício. Trensurb e CBTU no segundo trimestre de 2021 e, os Correio, no fim do próximo ano. Uma novidade foi a inclusão da Ceitec, empresa de semicondutores sediada em Porto Alegre, no Plano Nacional de Desestatização (PND).

Existiam, ao final do ano passado, mais de 600 empresas com algum tipo de participação da União, desde controladas, passando por subsidiárias e coligadas, até pequenas participações. Colossos como Petrobras, Caixa e Banco do Brasil, por enquanto, seguem fora dos planos do Planalto. O número mostra o gigantismo da presença do Estado na economia e, por consequência, a urgência de se desfazer de uma série de ativos que são sinônimo de ineficiência, se transformaram em cabides de empregos e alvos cobiçados para negócios escusos. Para agravar a situação, grande parte vive do dinheiro do contribuinte ou acumula prejuízos. Repassá-las à gestão privada significará melhorar a sua gestão e dar mais agilidade para que se tornem competitivas. Ao mesmo tempo, eliminam-se possíveis focos de corrupção e interrompe-se ao menos uma parte do desperdício de recursos públicos obtidos dos impostos recolhidos de cidadãos e empresas.

OPINIÃO DA RBS


29 DE FEVEREIRO DE 2020
PATRIMÔNIO

Governo estadual acelera venda de imóveis públicos

Em um ano, alienação de 13 bens rendeu R$ 5,51 milhões. Parceria com BNDES irá avaliar o destino de mais 2,2 mil propriedades
Carente de receita para equilibrar as contas, o governador Eduardo Leite acelerou a alienação de imóveis do Estado no primeiro ano de governo. Desde que subiu as escadas do Palácio Piratini, a venda de bens rendeu aos cofres públicos R$ 5,51 milhões.

A cifra é 48% superior aos quatro anos do governo Tarso Genro e apenas 5% menor do que o obtido em todo o mandato de José Ivo Sartori se desconsiderada, neste último caso, a venda direta para o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) de quatro prédios em 2018 (confira gráfico ao lado).

Para o governo, esses números são consequências da força-tarefa iniciada por Tarso em 2012 com o projeto financiado pelo Programa Proredes Bird para identificar, vistoriar, regularizar e registrar no Sistema de Gestão Patrimonial do Rio Grande do Sul os 8.832 imóveis do Estado. Desde dezembro de 2018, todos estão cadastrados e mais de 70%, escriturados. Até então, não se sabia a extensão desse patrimônio nem se tinha conhecimento sobre quem usufruía de alguns bens, já que muitos foram acumulados pelo Estado como forma de pagamento de dívidas.

Superado esse entrave que facilitou as alienações, o governo trabalha em uma parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com o acordo de cooperação técnica firmado em 19 de fevereiro, a instituição ficou responsável por apontar como 25% desses bens, percen­tual composto por prédios, terrenos, salas comerciais, apartamentos, fazendas e outras propriedades, poderão ser melhor aproveitados. São 2,2 mil imóveis. Os outros 75% são escolas, delegacias, presídios e centros de atendimento à população que continuarão excluídos de negociação. O trabalho deve se estender por três meses. Depois disso, caberá ao Piratini seguir ou não as recomendações.

A ideia inicial do governo é se debruçar sobre dois ou três projetos para operacionalizá-los até o fim do atual mandato. O convênio não envolve pagamento, mas o banco, ao se aproximar do Estado, prospecta futuras negociações envolvendo esse patrimônio.

- Vamos continuar olhando para alienações, sim. Mas, mais do que isso, queremos olhar estrategicamente o portfólio inteiro e poder dizer: esse aqui é bom para venda, esse para modelar uma parceria público-privada, esse para concessão e esse para permuta. A gente já tem feito concessões, transferências para municípios, mas sempre de forma reativa, sem olhar estratégico. Com esse levantamento, queremos trabalhar de maneira mais arrojada - explica a secretária de Planejamento, Leany Lemos.

O Centro Administrativo, por exemplo, poderá ser gerido pela iniciativa privada.

Especialista em finanças públicas, Darcy Carvalho dos Santos apoia a venda de ativos, sobretudo diante da atual crise financeira. O governo prevê déficit orçamentário de R$ 5,2 bilhões para 2020:

- O Estado tem imóveis por toda parte, alguns se deteriorando, gerando custos mensais e de manutenção. Não vejo sentido ter esses imóveis a não ser em casos especiais, para uso do próprio do Estado.

Luiz Augusto Estrella Faria, economista e professor da UFRGS, lembra que muitos ativos, fruto de execuções de dívidas fiscais, não têm serventia.

- Livrar-se deles representa economia para o Estado. Mas, claro, é preciso olhar um a um, pois temos deficiência de serviços públicos e alguns podem ser úteis - alerta.

A receita da alienação deverá ser repassada a um fundo destinado a modernizar a gestão do patrimônio imobiliário do Estado.

MARCELO KERVALT

29 DE FEVEREIRO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Os antifascistas fascistoides

Há um grupo radical nos Estados Unidos conhecido como Antifa, que supostamente existe para combater o fascismo, como diz o nome. Recebe recursos de "progressistas" como George Soros e tratamento amigável da grande imprensa, apesar de usar métodos um tanto questionáveis, para dizer o mínimo. Seus membros colocam máscaras, agridem velhinhos na rua e incendeiam universidades para impedir palestras de conservadores.

Por trás desses atos agressivos está a crença de que seu nobre fim - impedir a vitória do fascismo na América - justifica quaisquer meios - inclusive aqueles um tanto... fascistas! Não há nada mais parecido com os camisas negras de Mussolini do que a própria Antifa, o que só chega a surpreender quem não estudou história direito, sem saber que os fascistas italianos vieram quase todos do socialismo.

A tática dos socialistas sempre foi chamar de fascista todo adversário. Foi assim que até o comunista Trotsky virou um "fascista" para os capachos de Stalin. E eis o perigo: quando você parte da premissa de que todos são "fascistas", e que impedir o fascismo é a única meta relevante, então qualquer método passa a ser tolerado. Até mesmo meter uma retroescavadeira em cima de grevistas!

Em Resistance (At All Costs), Kimberley Strassell, do WSJ, mostra como a "resistência" contra o suposto risco fascista do governo Trump virou a maior ameaça à democracia americana. O establishment lançou mão de instrumentos arbitrários que colocam em xeque as instituições, o FBI politizado rasgou suas regras, o DOJ partiu para a perseguição escancarada, e a Câmara avançou com um impeachment sem fundamento. Tudo isso com o apoio de uma mídia partidária que detesta Trump e deixou esse ódio turvar sua missão.

Bolsonaro pode ter arroubos populistas e o bolsonarismo certamente tem uma ala radical e autoritária. Mas quando Ciro Gomes, Lula e as máfias sindicais estão unidos em torno de uma só mensagem, o instinto de sobrevivência democrática fala mais alto e muitos imediatamente se colocam do lado oposto. Sentem o cheiro de oportunismo golpista no ar. São esses os heróis da resistência ao "fascismo"? Então ficamos com Bolsonaro mesmo...

RODRIGO CONSTANTINO

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020



28 DE FEVEREIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O brigadiano que chorou

O Potter chorou quando viu o brigadiano chorando. Foi de fato uma cena comovente. Você deve ter lido a notícia ou visto a foto: antes do jogo do Inter, quarta à noite, uma das éguas da Brigada Militar sentiu-se mal, chamando a atenção de um soldado acomodado em outra montaria. Ele desceu do cavalo e tentou acudir a égua, afrouxando-lhe a sela. Mas já era tarde. O bicho desabou num tremor de corpo inteiro e acabou morrendo ali mesmo, no pátio do estádio. O brigadiano a conhecia, ela se chamava "Justiceira" e fazia mais de quatro anos que estava na PM. O soldado, vendo sua agonia, sem poder fazer nada, ajoelhou-se a seu lado, levou a mão ao rosto e caiu em um pranto rasgado de soluços. O Potter passava por perto naquele exato momento. Diante do quadro tocante, não se conteve, e chorou também.

Entendo a emoção do Potter. Se o protagonista da cena fosse outro, não um soldado, talvez ele não se abalasse tanto. Porque um brigadiano tem de ser duro, a violência faz parte do seu ofício. Ele tem de se impor, tem de, muitas vezes, submeter à força outras pessoas. Mas ali não havia nada que sequer rescendesse a mando ou arbítrio. Ali havia tão somente um ser humano comovido com a morte de um animal que estimava. O brigadiano, naquele instante, deixou de ser o instrumento de uma instituição, deixou de ser o braço armado do Estado e tornou-se um indivíduo. Tornou-se uma pessoa como você.

O soldado chora pela morte de um bicho do qual gostava. Ele é igualzinho a todas as outras milhares de pessoas que estavam naquele mesmo local, naquela mesma noite, só que sem farda. Como será que este soldado se sente quando é tratado como uma espécie de inimigo natural dessas pessoas que, afinal, são como ele?

Porque é mais ou menos isso que ocorre no Brasil. Trata-se de mais um dos efeitos nefandos das nossas ditaduras. Aqui, o policial é encarado como um elemento repressor que está acima do cidadão, a serviço de governantes que também estão acima do cidadão. Em outros países, o policial é uma autoridade que tem por missão preservar a lei que foi instituída pelo povo através de seus representantes. Ou seja: no Brasil, o policial é um agente do autoritarismo; em outros países, uma ferramenta da democracia.

Essa distinção ficou clara nos episódios de violência ocorridos na Cidade Baixa durante o Carnaval. Algumas pessoas criticaram a Brigada Militar por ter posicionado soldados nas ruas em que os blocos se concentrariam. Segundo esses críticos, a presença da BM seria "uma provocação".

Ora, uma provocação é uma afronta. Você desafia um desafeto ou um rival para que ele reaja e o enfrente. Portanto, a presença da polícia só pode ser provocativa para quem é contra o que ela defende. Isto é: para quem infringe a lei. O cidadão que está dentro da lei não se sentirá desafiado ao ver um policial. Pode se sentir vigiado, pode sentir até certo temor da autoridade; desafiado, nunca.

Estou fazendo um raciocínio acaciano, básico, mas incompreensível para quem ainda se guia pela lógica da ditadura. Para esses, um par de coturnos é tão somente o símbolo da opressão. Mas, na democracia, há, dentro dos coturnos, alguém que preservará as normas instituídas pela sociedade. Alguém que é igual a você. E que poderá até chorar porque perdeu um bicho de estimação.

DAVID COIMBRA