13
de outubro de 2012 | N° 17221O
PRAZER
DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO
Desinquieto
Confesso
que fiquei faceiro quando recebi, dia desses, uma consulta proveniente do Acre,
lá dos extremos da fronteira oeste, quase na linha do Equador. Quem me escreveu
foi Irany G., gaúcha de nascimento, aluna deste que vos fala lá pelos anos 90:
“Professor, moro aqui em Rio Branco, na capital, muito longe de minha querida
Porto Alegre, mas sempre dou um jeito de ler suas colunas pela internet. Agora
que encontrei o senhor no Facebook vou poder lhe fazer perguntas diretamente.
Tenho
uma dúvida há muito tempo, mas não sei se vou conseguir explicar direito: se
desatento é antônimo de atento, como é que desinquieto é sinônimo de inquieto?
Não deveria ser seu antônimo?
Minha
cunhada, que é mineira, vive dizendo que o filho dela é uma criança
desinquieta; sei que ela quer dizer que ele é uma criança agitada (aqui entre
nós, o guri é um demônio), mas se o prefixo des- indica negação, desinquieto
não significaria não inquieto – ou seja, calmo, sereno, exatamente o contrário
do que ela quer dizer? Será linguagem típica de Minas? Deu para entender?”.
Perfeitamente,
Irany. Vários outros leitores, ao longo dos dez anos de existência desta
coluna, já estranharam esse desinquieto, o qual, como vais ver, é um pacato
cidadão de nosso vocabulário. Se vens acompanhando O Prazer das Palavras, vais
lembrar que outro dia – acho que falávamos das paraolimpíadas – mencionei
aquela “máquina de fazer palavras” que todo falante do Português traz dentro da
cachola e que lhe permite não só formar vocábulos novinhos em folha, como
também compreender as criações lexicais de seus vizinhos.
Foi
exatamente por saber disso que um habilíssimo ourives da língua como Mário
Quintana não hesitou em escrever “Um dia, os padres se desbatinaram”, certo de
que até o mais ingênuo de seus leitores poderia decompor instantaneamente o
sentido deste verbo.
Palavras
derivadas como essa, resultantes da combinação de radicais com afixos, não
param nunca de surgir, numa rapidez vertiginosa. No entanto, as peças que
entram nessa combinação – especialmente os prefixos e os sufixos - pertencem a
um grupo fechado, limitado a tão poucos itens que vários desses morfemas
terminaram se tornando polissêmicos – o que significa, em vernáculo, que
passaram a ter diferentes significados.
Este
é o caso do prefixo des-, que nem sempre vai indicar negação, como faz em
desleal, descarregado, descrente, desestimulante. Mesmo os gramáticos mais
antigos, como Said Ali, já observavam que ele também pode ser usado com sentido
positivo – uma espécie de intensificador –, sem contrariar o significado
original do vocábulo.
Essas
formas prefixadas são empregadas como meras variantes das formas simples:
infeliz ou desinfeliz, apartar ou desapartar, abalar ou desabalar, afastar ou
desafastar, apear ou desapear, etc. – e não apenas na linguagem popular: “...o
nosso benévolo confrade está, claro, na condição dos que desapartam rixas” (Rui
Barbosa); “Adoro queijos. Deixa ver. Desafasta” (Eça de Queirós); “Não deixe o
homem desapear, doutor” (Taunay); “Agora, é verdade que ninguém mandou o
desinfeliz ir pescar por riba da catedral!” (Olavo Bilac); “Macunaíma sentiu-se
desinfeliz e teve saudades de Ci, a inesquecível” (Mário de Andrade).
Tua
suspeita de que desinquieto seja criação regional de Minas Gerais também não
procede, pois vamos encontrá-lo igualmente em escritores portugueses, desde o
Renascimento: “Muito bem me lembra a promessa que vos fiz no Tangu acerca do
saque desta desinquieta cidade” (Fernão Mendes Pinto); “De tarde faz o ofício
do demônio tentador, a desinquietar quanta rapariga e mulher honesta tem o
Porto” (Garrett); “Desde o começo fora um erro! Tinha sido uma ideia de burguês
inflamado ir desinquietar a prima” (Eça de Queirós).
Outro
prefixo de comportamento semelhante é o a-, que indica negação ou privação em
atípico, amoral, acéfalo e apátrida, mas perde seu valor negativo em dezenas de
palavras: abrasado, apavorado, afivelado, ajoelhado, amanteigado. A um molho
apimentado não pode faltar pimenta, Irany – bem pelo contrário; do mesmo modo,
apesar da incredulidade de meu amigo Márcio Pinheiro, um bife não pode ser
chamado de acebolado se não vier coberto de muita cebola.
Finalizando,
aproveito para comunicar aos amigos que em 22 de outubro começo uma nova edição
do curso sobre as mudanças que o Acordo Ortográfico introduziu na nossa maneira
de escrever. Mais detalhes pelo fone 3018-7740 ou em www.casadeideias.com.
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