22
de outubro de 2012 | N° 17230
J. A.
PINHEIRO MACHADO
Enterrar os mortos e cuidar dos
vivos
Lisboa
A hóspede
ranzinza, que fazia palavras cruzadas, chamou um empregado e reclamou que
estava incomodada com o som do piano no amplo saguão de entrada do hotel Tivoli.
Discretamente, o empregado do hotel informou que ao piano, naquele momento, um
gênio, o inexcedível Arthur Rubinstein, depois do café da manhã, decidira
alegrar uns amigos lisboetas com uma canja inesperada, tocando uma das peças
que apresentaria à noite no teatro.
“Então
deixe estar, assim não gasto dinheiro com o bilhete para o concerto dele” – disse
a reclamante, sem surpresa, entrando em definitivo para o folclore da cidade e
do hotel que é um verdadeiro ícone de Lisboa: ali já se hospedaram Mick Jagger,
Claudia Cardinale, Frank Sinatra, Cary Grant, Margot Fonteyn, Nureyev, entre
tantas outras celebridades.
Na
semana passada, no saguão do Tivoli, em vez de acordes de Rubinstein e do
burburinho de famosos, ouviam-se sussurros de conversas nervosas de políticos,
empresários e jornalistas. “Crise”, nestes dias, é a palavra mais repetida, nos
salões e nas ruas.
Desde
o aeroporto, ouvi as reclamações e as incertezas, do motorista ao porteiro do
Tivoli, do empresário ao jornalista: o brutal aumento de impostos, as dívidas
do país, os cortes de subsídios, empresas grandes e pequenas fechando,
desemprego, o governo que vacila e, acima de tudo o pior de todos os males: falta
de esperança... No ranking da aflição europeia, pela ordem, só Espanha e Grécia
aparecem em situação pior.
A
história se repete, nem sempre como farsa, ao contrário do postulado de Marx. Basta
ver o que Eça de Queiroz escrevia em 1872: “Nós estamos num estado comparável
somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada
econômica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito”. Até
parece que foi hoje. Os séculos passam e as dores não mudam.
Fernando
Pessoa via no caráter português a vitória da emoção sobre a razão: “A imaginação
é tão forte que integra a inteligência, formando uma nova qualidade mental”. Os
Descobrimentos seriam o emprego intelectual, prático, da imaginação.
Por
isso, tantos séculos atrás, o Infante D. Henrique e o imperador Afonso de
Albuquerque, “criadores respectivamente do mundo moderno e do imperialismo
moderno”, aflitos com as precariedades da terrinha, teriam convocado Cabral,
Vasco da Gama e os outros para lançar Portugal aos mares. Foi a oportunidade,
segundo Pessoa, de o país mostrar que a habilidade de fazer tudo constrói a
habilidade para ser tudo.
Nesse
sentido, é inevitável pensar nas guerras, invasões, terremotos e devastações
que desabaram por aqui: em mais de mil anos, Portugal aprendeu a resistir aos
problemas e, especialmente, à falta de esperança. É sempre bom, nestas horas,
recordar o Marquês do Pombal entre as ruínas da Lisboa devastada pelo terremoto
de 1755: “Vamos enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
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