RUTH
DE AQUINO é colunista de ÉPOCA
Nas mansões do Supremo e do
Divino
Era
uma manhã de sol na praia deserta de Geribá, em Búzios, bem cedo. Ano 2005.
José Dirceu fazia exercícios na areia. Em forma, bronzeado. Acabara de cair da
chefia da Casa Civil do governo Lula, acusado de mandante do mensalão.
Perguntei, como uma banhista qualquer: “Como vai a vida, ministro?”. “Vai bem”,
respondeu ele com um sorriso, “enquanto a imprensa não me descobrir aqui”.
Mesmo
destituído do poder oficial, não temia cair em desgraça. Jamais suporia, em seu
pior pesadelo, que sete anos depois teria de encarar a execração pública,
condenado como um criminoso na mansão do Supremo. Dirceu virou Zé, um vilão do
folhetim político brasileiro, o “mandante de um golpe contra a democracia”. Mas
se considera uma vítima.
Na
mansão do Divino, a vilã Carminha foi condenada e chamada de vagabunda. O
capítulo em que a personagem de Adriana Esteves foi desmascarada coincidiu com
um imenso salto de consumo de energia elétrica. Se o ápice do julgamento na
mansão do Supremo era o destino de José Dirceu, na fictícia Avenida Brasil o
clímax chegou antes do fim.
O
que acontecerá agora na novela é secundário, diante da catarse nos sofás
brasileiros com a execração de Carminha, a vilã que manipulava todos, filhos,
amantes, marido, parentes, empregadas, amigos e inimigos. Manipulava com
propina e lábia. Comprava apoio, conspirava, iludia e dava a volta por cima.
Foi quase linchada. Mas se considera uma vítima.
Tanto
Dirceu quanto Carminha caíram sem abaixar a cabeça, atirando “contra a covardia
moral e a hipocrisia”. O autor de Avenida Brasil, João Emanuel Carneiro, já
disse que gosta de humanizar vilões, mostrar que ninguém nasce mau. Carminha
repetiu mil vezes na trama: “Não sou vilã, sou vítima, vocês vão ver”.
Quando
percebeu que seu discurso de heroína não convencia mais, apontou o dedo para os
malfeitos de toda a família. Dirceu, por enquanto, só apontou o dedo para a
imprensa. Divulgou em seu blog uma carta “ao povo brasileiro”, numa clara
alusão a Lula, que também escreveu, em junho de 2002, uma “carta ao povo
brasileiro” como candidato do PT à Presidência da República.
No
documento, Dirceu afirma que, desde 2005, “em ação orquestrada e dirigida pelos
que se opõem ao PT e seu governo”, foi transformado pela mídia em “inimigo
público número 1”. Na visão de Dirceu, o Supremo o condenou como corruptor e
chefe de quadrilha “sob forte pressão da imprensa”. Não foi mais longe que
isso. Mais uma vez, os interesses do PT e de Lula – nas eleições, e
especialmente em São Paulo – se sobrepõem a seu drama pessoal, sua reputação.
Internamente, no PT, não existe o vilão Dirceu. Ele é um herói das cores do
Partido com letra maiúscula. Não é dedo-duro. Foi ovacionado pelos
companheiros.
Oficialmente,
Dirceu foi chefe da Casa Civil, mas essa era sua face palaciana e festiva. Na
vida real, era muito mais – e continua sendo. O confidente-mor de Lula, seu
companheiro mais querido, mais fogoso e poderoso. O guerrilheiro que mudou o
rosto para não mudar as convicções. O que mentiu até para a família para
continuar, clandestino, em seu país. Coisa de novela. No governo Lula, Dirceu
era o braço direito do presidente, o homem forte, a eminência parda que falava
grosso, o ideólogo do PT.
Agora,
Dirceu foi condenado pelo Supremo como “o mandante de crimes cometidos na
intimidade das organizações do governo”. Como o artífice de um projeto de poder
que visava sufocar críticas e se perpetuar no Brasil. Um projeto totalitário,
um golpe contra a democracia apoiado por políticos de outros partidos,
“propinados e corrompidos”.
É
forte. Em 2005, convencido de que suas relações e costas quentes o livrariam de
um processo exemplar e épico como o de agora, José Dirceu disse textualmente
sobre Lula: “Não faço nada que não seja de comum acordo e determinado por ele”.
Alguém
duvida? Carlos Lessa, economista e ex-presidente do BNDES no governo Lula,
afirmou ao jornal O Globo: “Lamento por Dirceu, o mais preparado e brilhante do
PT. Foi onipotente, ignorou a ética na construção de apoio. O mensalão fere a
democracia. Mas sou contra crucificá-lo. E Lula, claro, sabia de tudo”. Para
Lula, é bom lembrar, tudo que está sendo julgado no Supremo não passa de “uma
farsa”.
Na
ficção de verdade, com atores pagos, os últimos capítulos deverão mostrar que a
vilã Carminha teve um mestre, um modelo e um mentor: seu pai, Santiago, que
posava de bonzinho na trama. A verdadeira face de Santiago é outra. Um ladrão
de joias, um receptador. Bandidos entregam os objetos roubados dentro das
bonecas que Santiago diz consertar.
A
História dirá se Dirceu pensou e agiu sozinho ou se deve sua glória e tragédia
a alguém acima dele.
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