quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019



28 DE FEVEREIRO DE 2019
CLÓVIS MALTA

A vida sem leitores

Se a linguagem escrita acabar mesmo perdendo espaço para as mensagens de voz dos aplicativos, como tudo indica, vai chegar o dia em que continuaremos tendo textos bons e ruins, por insistência de uns inconformados, mas não mais leitores. Gravar áudios facilita a vida de todo mundo, principalmente quando se está em trânsito. Nos poupa também de erros de grafia, inevitáveis diante das deficiências de um ensino de pouca redação e nenhuma leitura, com o mínimo de raciocínio e sem perspectiva de melhora. Mas essa comodidade tem consequências.

Muito do pouco que sabemos hoje de nosso passado mais recente tem a ver com a escrita, principalmente com a literatura. Se alguns personagens de autores gaúchos promovessem uma espécie de fuga em massa dos livros, talvez não lotassem a Arena ou o Beira-Rio, nem o Gigantinho. Certamente, faltaria espaço no Chalé da Praça XV, no coração de Porto Alegre. O local perdeu um certo brilho de épocas áureas, como os próprios livros. As pessoas em volta estão empobrecidas e pouco veem além do próprio telefone celular. Ainda assim, o prédio histórico segue de pé, desafiando gerações e esses estranhos tempos.

Se fosse possível promover um encontro de criações de diferentes épocas no Chalé, o vaqueano Blau Nunes, "impulsivo na alegria e na temeridade", seria o primeiro a apear. Que assunto teria em comum esse personagem e narrador dos causos de Simões Lopes Neto, um escritor do qual deveríamos nos orgulhar mais, com João Guedes, por exemplo - sempre a pé e sem rumo, como o concebeu Cyro Martins? Sobre qual tema proseariam com Antônio Chimango, o sarcástico algoz de Borges de Medeiros, concebido em versos por Ramiro Barcellos sob o pseudônimo de Amaro Juvenal?

Só a literatura consegue nos explicar a dolorosa passagem do gaúcho a cavalo para o gaúcho a pé em que nos transformamos hoje. Se fosse ao encontro, Guedali Tratskovsky, O Centauro no Jardim de Moacyr Scliar, reforçaria aos convidados o quão dura é a luta para se livrar desta metade animal. Naziazeno Barbosa, o sofrido funcionário público criado por Dyonélio Machado, seria um ouvinte discreto, mas atento. Nada melhor do que ouvir histórias para tentar esquecer o salário atrasado de servidor, já no século passado, e a luta por um empréstimo para pagar o leiteiro, sob a ameaça de corte no fornecimento.

Difícil saber se a alucinante Dulce Veiga de Caio Fernando Abreu, que só quem leu o livro vai saber por onde anda, deixaria São Paulo para o encontro. O professor de educação física sem nome de Daniel Galera estaria lá com a cachorra Beta, perdido em meio à incômoda impossibilidade de identificar rostos. É incapaz de guardar sequer feições refeitas a bisturi como as de Dora Avante, a ravissante Dorinha de Luis Fernando Verissimo, sempre em luta contra a desatenção a suas propostas, digamos, fúteis para mudar o Brasil e o mundo.

Floriano Cambará, alter ego de Erico Verissimo, talvez ficasse com o recado final. Talvez repetisse no Chalé, se provocado, o que diz depois de dois séculos de narrativa em O Tempo e o Vento: "Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade". Se alguém perguntasse qual é essa realidade, diria de novo: o que somos. O que somos é justamente o que nenhuma outra obra ficcional gaúcha conseguiu traduzir de forma tão magistral. É o que só a boa literatura consegue fazer, ao eternizar a vida. A vida que, sem leitores, deixaria um mundo de personagens sem sentido.

*O colunista David Coimbra está em férias. - CLÓVIS MALTA


28 DE FEVEREIRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O RECUO NA CRIMINALIDADE


O levantamento precisa servir não para comemorações da redução da violência, mas como ponto de partida para os governantes persistirem nas ações que vêm dando resultados

A redução das taxas de homicídios em 24 das 27 unidades da federação em 2018, e o Rio Grande do Sul inclui-se entre os Estados favorecidos por queda, é uma notícia animadora para o país, embora as estatísticas da criminalidade continuem elevadas. Mesmo com a redução, foram 51.589 assassinatos, o que significa uma taxa de 24,7 mortes a cada 100 mil habitantes, conforme dados do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda assim, os resultados são importantes para a definição de estratégias, pois permitem aos gestores da área uma avaliação do que vem ou não dando certo no combate à criminalidade.

Na análise dos dados, é importante levar em conta que, em 2017, ano usado como base de comparação no levantamento divulgado agora, havia sido registrado um número elevado de mortes em presídios, em consequência de rebeliões. Além disso, grande parte da queda está ligada à guerra de facções. Essa particularidade pode indicar que as organizações consolidaram territórios, impactando os números.

O Rio Grande do Sul aparece no ranking com uma redução de 18,3% no número de vítimas de crimes violentos em relação a 2017. Assim como ocorre em âmbito nacional, a queda no Estado, divulgada no governo atual, deve-se aos esforços empreendidos no anterior. Mais exatamente, à gestão do ex-secretário de Segurança Pública Cezar Schirmer. Entre as justificativas, estão a maior ênfase no uso da inteligência e a coordenação de esforços para enfrentar melhor as carências das polícias civil e militar. Contribuiu também para os ganhos a aproximação com a iniciativa privada, que vem fazendo doações importantes para reequipar os organismos de segurança.

O levantamento precisa servir não para comemorações da redução da violência, mas como ponto de partida para os governantes persistirem nas ações que vêm dando resultados. É importante que a integração registrada hoje entre as forças estaduais se intensifique também com o governo federal e com os municípios.

Nesse aspecto, o pacote anticrime do ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, é uma contribuição significativa para deixar no passado a imagem do Brasil como paraíso da impunidade. O país precisa de maior rigor legal contra o crime, sem se descuidar das condições materiais para punir na prática.


28 DE FEVEREIRO DE 2019
ARTIGO

O MINISTRO SERGIO MORO


Após 22 anos dedicados à magistratura federal, cinco dos quais exercendo a titularidade de uma operação que ocupa de forma incessante as prisões e noticiários do país desde 2014, o ex-juiz Sergio Moro assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Dessa pasta estratégica, que no alvorecer da República recebeu a denominação de Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, passou a Ministério da Justiça e Negócios Interiores e finalmente ao nome como hoje o conhecemos, é importante lembrar que teve como primeiro titular Rui Barbosa (1849-1923). Após o jurista baiano, nomes de relevo como Amaro Cavalcanti, Carlos Maximiliano, Sampaio Dória, Prado Kelly, João Mangabeira, Paulo Brossard e Torquato Jardim também ocuparam-na, alguns encerrando suas trajetórias no Supremo Tribunal Federal.

Racionalizada a sua posse, e a despeito dos elogios ou ataques que tenha recebido, existe a convicção de que o professor universitário paranaense não apenas "preencheu uma lacuna", para invocar a fórmula usual, mas ascendeu ao exercício de atribuições para as quais está apto. Afinal, um outrora magistrado especialista em combate a crimes financeiros, responsável pela primeira condenação do ex-presidente que está preso, passou a atuar no Executivo. Por outro lado, céticos e críticos alegaram que juízes não recebem formação, tampouco treinamento, para atuar em funções orçamentárias, nomear comissionados ou deliberar juntamente com congressistas.

Acontece, porém, que, no caso do até então responsável pela 13ª Vara Federal de Curitiba, diversos atributos credenciam-no. Tem formação jurídica apurada, renome internacional, chefiou por meia década uma força-tarefa que já atingiu 60 etapas e as decisões que proferiu ao longo desse período implodiram, de fato e de direito, a sensação generalizada de impunidade. Outra: o agora ministro é, muito provavelmente, a pessoa que mais e melhor conhece a engrenagem da corrupção entranhada na espinha dorsal do poder. Por conta disso, o seu aceite, não apenas ao presidente Jair Bolsonaro, mas ao Brasil, resultou num fato auspicioso. O pacote de medidas anticrime que apresentou à Câmara dos Deputados comprova.

ANTÔNIO AUGUSTO MAYER DOS SANTOS


28 DE FEVEREIRO DE 2019
POLÍTICA

OAS cita R$ 125 milhões em propina a políticos, diz jornal

ESQUEMA ILEGAL DA CONSTRUTORA envolveria ainda o superfaturamento de grandes obras. Arena do Grêmio, na Capital, é uma das mencionadas

A OAS teria distribuído, entre 2010 e 2014, cerca de R$ 125 milhões em propinas e repasses de caixa 2 a pelo menos 21 políticos de oito partidos, de acordo com reportagem publicada pelo jornal O Globo ontem. A revelação foi feita por oito ex-funcionários da construtora, num rol de 217 depoimentos, em delação homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado.

A publicação teve acesso a um relatório de 73 páginas da Procuradoria-Geral da República (PGR) com informações sobre campanhas financiadas irregularmente, obras superfaturadas para alimentar o caixa clandestino da empreiteira, método de funcionamento do esquema e nomes dos político e beneficiados. O documento era mantido em sigilo.

Entre os citados aparecem os nomes de Jaques Wagner (PT) e do ministro Vital do Rêgo, do Tribunal de Contas da União (TCU), além do ex-governador Fernando Pimentel (PT-MG), do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) e do ex-ministro Edison Lobão (MDB-MA). Vários outros teriam recebido caixa 2, entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o ex-senador José Serra (PSDB-SP), o deputado Aécio Neves (PSDB-MG), o ex-prefeito Eduardo Paes (MDB-RJ) e o ex-governador Sérgio Cabral (MDB-RJ).

MARCO MAIA ESTÁ ENTRE OS DELATADOS

O esquema ilegal da construtora envolveria ainda o superfaturamento de grandes obras, como estádios da Copa de 2014, a transposição do Rio São Francisco, o Porto Maravilha, no Rio, e a Ferrovia de Integração OesteLeste, além de empreendimentos no Exterior. A Arena do Grêmio é citada como um dos empreendimentos superfaturados.

O ex-deputado federal Marco Maia (PT) é o único gaúcho entre os políticos citados na delação. O parlamentar teria recebido R$ 1 milhão para barrar investigações da comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) da Petrobras - da qual Maia era relator.

Pinheiro teria dito que manteve, em 2014, reunião com Marco Maia, na qual o parlamentar disse que poderia proteger a OAS. O então deputado teria dito que, por ser relator de comissão que investigava a Petrobras e a maioria dos grupos empresariais do país, encontraria dificuldades com doações de campanha. Em troca da ajuda, teria pedido contribuição de R$ 1 milhão, que foi feita pela OAS. Marco Maia, segndo o ex-presidente da OAS, teria indicado um empresário chamado José para intermediar o recebimento do dinheiro.

O ex-deputado já é alvo de um inquérito no STF, suspeito de cobrar propina de empreiteiras para protegê-las nas CPIs de 2014.

28 DE FEVEREIRO DE 2019
L.F. VERISSIMO

Excedente


Os pais do Serginho não sabiam o que fazer com ele. Tinham tentado de tudo: psicologia, castigo corporal, passes, hipnose, preces esotéricas e chás tranquilizadores importados do Oriente com os quais o menino borrifava o melhor sofá da sala, quando não a cara da babá. Nada funcionava, Serginho continuava impossível. As babás se sucediam e nenhuma ficava mais de dois dias no emprego. A última tentativa fora com uma frau alemã, famosa como disciplinadora no mundo das babás, que não durara dois dias e dizem que está até hoje num asilo para recuperação da autoestima.

O pai do Serginho tomou uma decisão. Não disse nada para a mulher. Só disse que chegaria em casa com alguém que certamente conseguiria controlar o Serginho. E chegou com um senhor de aspecto respeitável, respeitáveis cabelos grisalhos e um ar, acima de tudo, de respeitável autoridade. O pai do Serginho apresentou-o à mulher:

- Este é o general Tal. - General?! - Ele vai nos ajudar a controlar o Serginho.

A conversa transcorreu normalmente. Salário não seria problema. O general aceitava ganhar o mesmo que as babás. Até menos, no caso da babá alemã, que insistia em ser paga em dólar. Tudo combinado, o general pediu para dar uma olhada "nos alojamentos". O pai do Serginho estranhou. "Alojamentos?"

- Sim. Vou me instalar aqui, eu e meus camaradas.

- Camaradas?

Naquele instante, ouviu-se a campainha da porta. A mãe do Serginho foi abrir. Eram quatro homens, todos com o mesmo aspecto respeitável do general Tal. Que os identificou, um a um. Eram todos generais. Todos aceitavam o trabalho de controlar o Serginho, por qualquer salário.

O general Tal estava sorrindo. Entendia a confusão do pai do Serginho. Era tudo uma questão de excedente mal planejado.

- Chamaram tantos generais para o novo governo, que muitos não têm o que fazer. Ficam atirados no Planalto, jogando carta, falando mal do Paulo Guedes... Assim pelo menos a gente se ocupa. Podemos cortar sua grama, fazer um churrasquinho de vez em quando, e tornar o Serginho respeitável como nós.

L.F. VERISSIMO

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019



27 DE FEVEREIRO DE 2019
PEDRO GONZAGA

DESAFIO

E se eu vos propusesse um desafio?

Diga qual, clamam já os afobados. E não vos critico, é um tempo de corações ligeiros, que pulsam ou necrosam à pressão de um mero polegar. De fato, uma vez enleados pelos cipós da curiosidade, ficamos pouco dispostos a conceder mais do que algumas linhas para alguém desembuchar a provocação. Eu vos entendo: se pudesse me constranger pelo que estou fazendo, eu me constrangeria.

Mas vamos ao desafio. Trata-se de voltar a nossos artistas prediletos sem cair nas generalizações que nós mesmos criamos para domá-los, em frases como me encantam os labirintos de Borges ou a profundidade do intimismo de Clarice Lispector ou, ainda, a desumanização da burocracia em Kafka. Nada disso diz nada, nada disso guarda qualquer efeito que o contato com essas obras nos tenha provocado. Chega de generalizações, voltemos a trechos desses gigantes que possam ser guardados. A beleza do detalhe, o universo no fragmento, não a universalização oca. Não o profeta Leonard Cohen, mas sim quatro versos de A Street: "A festa acabou/ mas ainda estou de pé/ espero nesta esquina/ onde antes existia uma rua". Não as finas ironias de Machado, o bruxo do Cosme Velho e outros que tais, mas "a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel, só o interesse é ativo e pródigo". E por que reduzir a poeta Wislawa Szymborska a qualquer epíteto se posso lembrar de "que me desculpe o antigo amor por tomar o novo como primeiro."

O mesmo vale para o cinema. Selecionemos uma cena para não esquecermos, depois a mostremos aos outros e a nós mesmos feito um testemunho de como essas imagens expandem o que somos, de como revelam, de um modo material, coisas que antes apenas etéreas em nós nos habitavam.

Mas se fizermos isso não pareceremos participantes de uma corrente de rede social? Que pareçamos. Desde quando o amor se aborrece com demonstrações públicas? Creio que só é realmente importante para o outro aquilo que revelo antes ser capital para mim. O resto é enxurrada de nomes, a forma mais baixa de angariar respeito de alguém. E logo vêm os adjetivos e substantivos triviais de que já falamos. Não seria melhor, em vez disso, lembrar de Michael Caine correndo um quarteirão inteiro para fingir topar casualmente numa das irmãs de Hannah? Ou lembrar de outras cenas verdadeiramente acesas quando desce o avesso das pálpebras? Eu vos desafio.

PEDRO GONZAGA


27 DE FEVEREIRO DE 2019
CAPA

O homem que colecionava

FÃ DE TEATRO desde a infância, Luís Francisco Wasilewski ostenta um acervo de 3 mil programas de peças e virou referência em teatro besteirol. Agora, quer contar as histórias dos bastidores

No final dos anos 1980, quando tinha 10 anos, Luís Francisco Wasilewski era fã dos filmes dos Trapalhões e da Xuxa. Criado em uma casa em ebulição cultural, ao lado de irmãos politicamente engajados, também viu precocemente títulos como Eternamente Pagu (1987), de Norma Bengell, e A Dama do Cine Shanghai (1987), com Maitê Proença e Antonio Fagundes. A paixão pelo cinema ficou para trás apenas em 1989, quando assistiu, na Reitoria da UFRGS, ao espetáculo que mudaria tudo para ele: Sereias da Zona Sul, com Miguel Falabella e Guilherme Karan, exemplar bem acabado do gênero teatral conhecido como besteirol e que veio a caracterizar o programa TV Pirata, na Globo.

- Sereias... mostrou que, para mim, o teatro era mais interessante do que o cinema - lembra Wasilewski. - O teatro oferece a liberdade de criar algo apenas para aquela noite. Os atores sempre dizem que uma apresentação nunca é igual à outra. Esse é o fascínio. E o besteirol trabalhava muito com improviso. Na temporada em Porto Alegre, os atores citavam figuras da cidade.

Foi então que o fã de teatro virou colecionador. Hoje, aos 40 anos, Wasilewski é figura de referência por seu acervo de programas (os livretos entregues na entrada dos espetáculos) com cerca de 3 mil itens e por sua memória enciclopédica para datas, nomes e histórias. Contabiliza mais de 1,4 mil espetáculos vistos em 30 anos, uma média de quase quatro por mês - sim, durante muito tempo ele anotou tudo.

Sua faceta mais visível, entretanto, é a de pesquisador. Com trajetória acadêmica na área de Literatura Brasileira, dedicou- se ao teatro desde a graduação na UFRGS, com trabalho sobre Qorpo-Santo (1829-1883). Foi no mestrado na USP que decidiu assumir a paixão pelo besteirol, então um gênero de pouco prestígio na torre de marfim.

- Quando o João (Roberto Faria, seu orientador) me apresentava, as pessoas riam. Mas o que eu mais sentia era ignorância em relação ao tema. Os colegas perguntavam de que época e de que país era o besteirol - lembra Wasilewski, referindo-se ao fenômeno característico do teatro brasileiro dos anos 1980, com gênese em meados da década de 1970.

O que a experiência mostrou foi que havia uma curiosidade reprimida sobre o tema. Sua dissertação sobre a dramaturgia de Vicente Pereira foi baixada mais de 6 mil vezes na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP desde 2009, um número expressivo para um trabalho acadêmico de nicho. Para efeito de comparação, a tiragem usual de um livro de literatura no Brasil (excetuando-se best-sellers) é de mil a 2 mil exemplares.

CAUSOS POR TRÁS DA CENA

Em 2010, foi publicado seu livro O Teatro de Vicente Pereira (coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo). O doutorado, defendido em 2015, também foi dedicado ao besteirol, desta vez enfocando o teatro de Mauro Rasi. Resultou, no ano seguinte, na coletânea Ifigênia em Sodoma e Outros Textos Curtos (editora Giostri), com peças de Rasi organizadas por Wasilewski.

Acontece que seu conhecimento não se restringe à história dos palcos. Wasilewski é um repositório das... bem... fofocas mais suculentas do meio artístico. Que ele jamais conta com o gravador ligado. Mas isso está prestes a mudar. Na pesquisa de pós-doutorado que realiza na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre a cena gay no Brasil desde os anos 1960, ele se debruça sobre os causos dos bastidores. A inspiração é o trabalho do crítico literário Brito Broca (1903-1961). Isso significa que as fofocas de seu arquivo finalmente virão a público?

- Algumas - sorri Wasilewski, colocando panos quentes.

FÁBIO PRIKLADNICKI




27 DE FEVEREIRO DE 2019
DESENVOLVIMENTO

Por inovação, Pacto Alegre se prepara para unir 75 entidades

Universidades, empresários, poder público e sociedade civil organizada se preparam para dar, em um mês, passo importante para fazer de Porto Alegre referência em inovação. No aniversário da cidade, 26 de março, ocorrerá a primeira reunião da mesa do Pacto Alegre, com 75 entidades dos mais diversos setores - saúde, turismo, educação, esporte, poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, empresarial, da economia criativa, da academia, e outros.

Serão apresentadas ideias de projetos, e participantes devem priorizar as que julgarem mais interessantes para a transformação da cidade.

O "aquecimento" para o projeto ocorreu na manhã de ontem, na sede da U Mov.me, bairro Petrópolis. Dezenas de pessoas ouviram representantes das universidades da Aliança pela Inovação (Unisinos, PUCRS e UFRGS) falarem sobre desafios e oportunidades da Capital para se consolidar como ambiente favorável a investimentos e à geração de emprego e renda.

Também foram apontadas algumas questões problemáticas que devem ser combatidas. A fuga de jovens talentos para outros países com melhor infraestrutura é uma. Outra, a baixa qualidade e o alto preço de internet.

Coordenador do Pacto Alegre, Luiz Carlos Pinto da Silva Filho ressaltou que, "no século 21, inovar é uma necessidade".

Secretários municipais falaram sobre dificuldades e características do município em diferentes áreas. O prefeito Nelson Marchezan abriu e conduziu o evento, ressaltando que a iniciativa deve ter visão a longo prazo.



27 DE FEVEREIRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

O LADO CONVENIENTE DA CRISE

Existem alguns motivos obscuros e consistentes para que o regime de Nicolás Maduro se mantenha respirando por mais algum tempo. A tensão militar no continente é um argumento de venda perfeito para a indústria bélica. A fronteira norte do Brasil é mal protegida. Um inimigo dessa dimensão exige cuidados, mesmo que os movimentos tenham sido no sentido de apaziguar os ânimos, pelo menos por enquanto, na região de maior risco.

A história recente de alguns conflitos ensina que as sanções econômicas podem ser um fim nelas mesmas ou apenas um degrau necessário perante a opinião pública antes de uma ação militar. No caso da Venezuela, o timing se desenha nitidamente. Ainda falta um ano e nove meses para a eleição presidencial americana, marcada para 3 de novembro de 2020. 

Não será surpresa se, na lógica de Donald Trump, Maduro seja o inimigo a ser cada vez mais construído antes da “intervenção em nome da democracia”, de preferência na arrancada da campanha para a reeleição. Maduro hoje disputa com Teerã o título de malvado favorito da Casa Branca. A Venezuela bolivariana em frangalhos já é, por si só, um triunfo para a nova direita do continente. É o apagar das luzes de uma onda esquerdista que governou hegemonicamente a América no Sul.

Só existem duas certezas:

1 Nicolás Maduro vai tentar se agarrar ao poder. Manter a produção e a venda de petróleo é a sua boia.

2 A hora certa da queda —  ou a sobrevida — será decida a 3,3 mil quilômetros de Caracas, em Washington.

BOA VIAGEM

Um feliz porto-alegrense deu uma volta de cinco minutos com uma patinete da Grin e devolveu-a ao mesmo lugar. Foi surpreendido com a cobrança de R$ 20 por deixar o equipamento "fora da área de devolução". Só mais tarde ficou sabendo que deveria fechar o aplicativo para que a entrega ficasse registrada.

Entrou em contato com a empresa através do chat e foi muito bem atendido. Explicou a confusão e ouviu a promessa de devolução da multa.

Prestes a completar 45 anos de trabalho na Escola Uruguai, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, a professora Arlete Giovanella Xavier foi surpreendida na manhã de ontem com uma faixa afixada na entrada da instituição. Um grupo de mães e pais de alunos decidiu homenagear a dedicação da decana. Em 2017, a escola conquistou a melhor média do Ideb na Capital.

Qual o segredo para alcançar o bom resultado?

Um grupo de professores unidos, que comunga da mesma dedicação e uma comunidade muito envolvida, que participa de todas as iniciativas da escola. É um somatório de coisas, eu estou apenas na linha de frente. No fim das contas, ser professor ainda vale muito a pena.

Onde dá para melhorar?

Como qualquer instituição pública, temos dificuldades. O ideal seria que as escolas tivessem uma verba extra para dar uma solução mais imediata aos problemas. Às vezes, demora meses para que consigamos resolver as coisas, mesmo as reformas pequenas. A gente sabe que existe o tempo de licitação e tudo mais. Mas a educação está cada vez mais rápida, então a burocracia não deveria continuar tão lenta.

TULIO MILMAN

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019



26 DE FEVEREIRO DE 2019
MÁRIO CORSO

A cartomante

Minha amiga foi taxativa: - Te imploro, não vai nesta cartomante.

Mas, rebati, você não disse que ela conta a verdade? - Sim, mas é uma verdade que não é bom saber.

Carla não era a única a me desencorajar. A irmã dela nem conseguia falar da consulta. Um mutismo desanimado lhe invadia o semblante e dali não escapava palavra. Só admitia que algo especial ocorreu.

Era uma cartomante diferente. No boato, apenas uma carta seria aberta e desta única viria a revelação sobre nossa vida. Soava disparatado e, talvez por isso, atraente. Carla me fez jurar pela saúde da minha mãe que ficaria longe da bruxa. O juramento foi fajuto. Desculpa, mãe! A curiosidade me corroeu e fui procurar a misteriosa Dona Cora.

O endereço era no fim da Protásio. Um lugar tão distante, que tive a impressão de ter saído de Porto Alegre. Encontrei o número num prédio residencial que parecia não ter sido acabado. O apartamento minúsculo era ainda mais precário. Pouca iluminação, paredes nuas e móveis velhos arrematavam o ar de desleixo do conjunto.

Esperava uma cigana de olhos verdes magnéticos e cabelos negros escorridos. Mas Dona Cora era uma senhora simples. Sabe essas tantas pessoas pelas quais passamos na rua e nem notamos? Trajava um vestido desbotado onde no passado houve um azul.

Sentou-se na minha frente e pediu que escolhesse uma carta do baralho aberto em leque em cima da mesa branca de plástico.

Retirei e virei. Veio um seis de paus.

- Você é um seis de paus.

Sim, e daí? Perguntei.

- É só isso, você é um seis de paus. Este é seu tamanho e seu lugar no mundo. Antes que a noite chegue, vai entender.

Durante essa fala, pegou nas minhas duas mãos e me olhou com força. Levei um choque. Uma parte de mim sentia-se idiota ouvindo besteiras de uma charlatã. Outra tinha medo e espanto. Paguei e saí como quem foge.

No ônibus de volta, uma sensação ruim agarrava meu peito. A frase dita soava absurda. Por que não reagi? Por que aceitei pagar? Como assim ser como uma carta de baralho? Aquela vaca é que é um seis de paus! Não eu.

Enquanto cruzava Petrópolis, uma ideia foi se formando. Veio a lembrança da minha mãe, uma costureira de pequenas causas que sofre por não conseguir ter seu próprio negócio. Depois, recordei meu pai, que levou a vida fazendo biscates. Morreu pobre até de sonhos.

Com tristeza, percebia um sentido diferente em tudo. Vislumbrei a lógica oculta no baralho. Há uma hierarquia de números e dos naipes, e um simbolismo em cada carta. A pluralidade da sociedade está nelas.

O baralho fascina por não ser uma invenção arbitrária, é um reflexo da lógica da sociedade. Os naipes são os arquétipos essenciais da condição humana. Os números revelam a intensidade de nosso talento, a força com que nos agarramos ao destino.

A cartomante me fez entender onde me encaixo no rio da existência. Meu lugar por agora é insignificante e as marcas que deixarei no mundo serão mínimas. Sou um soldado raso sem chance de glória. Um peão de um imenso tabuleiro onde quem decide o jogo são os outros.

Carla tinha razão em tentar me proteger. Não há nada mais duro do que saber sem ilusões o quanto valemos. Espero, ao menos, que essa sabedoria me ajude a trocar de carta.

E você, caro leitor: qual a sua carta?

*O colunista David Coimbra está em férias. - MÁRIO CORSO

26 DE FEVEREIRO DE 2019
POLÍTICA

Governo do RS fará seleção para cargos de liderança em secretarias

PROCESSO SERÁ ABERTO a qualquer interessado, do setor público ou privado
Disposto a "buscar as melhores pessoas" para cargos de liderança no Estado, em especial na educação, o governador Eduardo Leite assinou, na manhã de ontem, acordo de cooperação técnica com a Fundação Lemann e outras três organizações do terceiro setor. A parceria terá como foco a seleção de profissionais para comandar as 30 coordenadorias regionais de educação (CREs), além da busca de nomes para funções de chefia na Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão.

A intenção, segundo Leite, é concluir o recrutamento no prazo "de 30 a 60 dias". Para isso, assim que estiver finalizado, edital de seleção será publicado com todos os detalhes: formação e qualificação exigidas, etapas do processo e salários oferecidos. Por enquanto, está definido apenas que qualquer interessado - mesmo que não seja servidor concursado - poderá participar. Mesmo quem não for da área da Pedagogia terá possibilidade de competir. Para Leite, o acordo com as fundações Lemann e Brava e com os institutos Humanize e República é "demonstração de que o governo do Rio Grande do Sul não tem, sozinho, todas as respostas":

- Especialmente na área da educação, precisamos dar um passo decisivo no sentido de qualificar a gestão.

ASSINATURA CONTOU COM PARTIDOS ALIADOS

A mudança na forma de escolha dos coordenadores das CREs - que, até então, eram definidos por indicação política - tem o objetivo, segundo Leite, de garantir "alinhamento técnico da política pública da educação, desde a secretaria até as escolas".

Ciente de que a decisão pode provocar insatisfações na base, Leite fez questão de chamar líderes de partidos aliados para que acompanhassem a assinatura da parceria - e aparecessem na foto oficial ao seu lado. Ele elogiou o grupo por ter apoiado a ideia "desde o início, sem restrições".

Nos bastidores, a iniciativa é comemorada porque passa à sociedade a mensagem de "mudança de paradigma". Na prática, nada impede que pessoas ligadas à política se apresentem para concorrer e sejam, de fato, selecionadas para as vagas. O próprio governador reconhece isso, mas garante que terão prioridade aqueles que se destacarem na seleção e que se enquadrarem nas exigências.

Para quebrar eventuais resistências entre os servidores de carreira, Leite fez questão de dizer que respeita os concursos públicos. Quem já faz parte do quadro também poderá concorrer, inclusive professores estaduais.

Além dos cargos na CRE, serão selecionados três nomes para a pasta do Planejamento: um para chefiar o setor de Recursos Humanos, outro para a Escola de Governo e um terceiro para liderar a subsecretaria de Gestão de Pessoas.

JULIANA BUBLITZ


26 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

Vexame no supermercado

Há um tipo familiar que traz constrangimento. O que acha que o supermercado está caro demais e vai comendo pelos corredores.

Faz justiça com a própria boca. Confunde compras com lancheria. É capaz de consumir iogurte com a colherzinha do dedo, sem nenhuma vergonha, sem nenhum medo do ridículo. Ou de abrir um pacote de salgadinhos e produzir barulho com os dentes.

Na maior parte das vezes, descarta os produtos pelas lixeiras, com o código de barras ainda virgem.

É um passeio tão descarado, que fica acima de qualquer suspeita. É tão à luz das lâmpadas fosforescentes, que ninguém acreditará na desonestidade. Sugere ser apenas um cliente faminto - nada mais. E não há nenhuma placa impedindo o consumo entre as gôndolas.

Se algum vigia incomodar, é só replicar com a arrogância brilhante de uma pulseira vip:

- Não sabe quem eu sou? Venho aqui há décadas. E ainda ameaçar a abordagem honesta com um processo de calúnia e difamação. O alimento é absorvido antes de virar um roubo. Desaparecem os vestígios do crime até chegar ao caixa.

Quem faz isso poderia pagar perfeitamente, tem condições de sobra, é pura molecagem. Tanto que passa pela caixa registradora um carrinho atolado de compras.

São distúrbios públicos inexplicáveis. Gente aparentemente do bem que põe na cabeça que desfruta de razão e burla a lei por bobagem. Tem prazer em driblar as normas e se enxergar acima do julgamento. É aquele que apenas reclama em vez de melhorar a cidade e se dispor a combater as desigualdades pelas palavras e atitudes, por menores que sejam.

As explicações vêm calcadas de uma compensação social, de uma vítima reagindo a um sistema explorador: os preços estão nas alturas, a inflação não condiz com o aumento salarial, os outros enriquecem às nossas custas. Blá-blá-blá ideológico para esconder a falta de educação e de respeito.

Coitados dos filhos que precisam presenciar a cena, despistar, chamar atenção em vão ou sair de perto. Não acharão engraçado, mas se sentirão penalizados por testemunhar algo errado, praticado por aquele que amam. Na despensa de casa, guardarão a culpa, sem data para expirar.

CARPINEJAR


25 DE FEVEREIRO DE 2019
DIANA CORSO

Uma rua, muitas causas

Trabalhei numa rua onde havia uma árvore torta. Ela cresceu para os lados, invadindo a calçada com seu tronco diagonal, mas a vizinhança gostava dela assim. Um dia, a cortaram. Fiquei furiosa e fui em busca de culpados. Defendia a causa ecológica, as ruas verdes, achava o tronco propício para as crianças subirem. Considerei o corte uma espécie de intolerância com a diferença. Associava a estranheza do vegetal com outros tipos de diferenças que deviam ser respeitadas.

Estava cheia de razão, mas o sentimento seguinte foi vergonha. Explicaram-me que a posição do tronco representava um risco para os deficientes visuais. Não havia como percebê-lo com a bengala e já havia ocorrido colisões. Conclusões precipitadas podem ser um perigo.

Numa mesma rua de Porto Alegre, há duas instituições cujos frequentadores precisam ter cuidado ao transitar. É o endereço da Ucergs (União de Cegos do Rio Grande do Sul) e da Fadem (Fundação de Atendimento de Deficiência Múltipla). Um pequeno trecho da cidade onde circula uma peculiar concentração de bengalas e cadeiras de rodas.

De lá foram removidas três árvores pela prefeitura. Duas delas tinham enormes raízes que quebravam a calçada. A terceira, por velha, tinha riscos de tombar. As duas instituições precisavam dessa retirada para viabilizar o trânsito das cadeiras de rodas dos pequenos e para instalar uma calçada tátil. Você, que enxerga tudo, talvez não compreenda o valor daquelas linhas amarelas que norteiam os deficientes visuais. Porém, houve polêmica, alguns vizinhos reagiram com a mesma desinformada fúria que senti no corte da minha árvore torta, murmurando crime ambiental.

Eu tenho um pensamento obsessivo: ando por aí sempre conferindo se minha hipotética cadeira de rodas passaria. Há sempre alguma ameaça que nos inquieta, a minha é essa. Soube de uma mulher que andava vendada em casa, preparando-se para uma futura cegueira, tão fantasiosa quanto minha dificuldade de locomoção. Também convivo com cadeirantes e sua luta pela acessibilidade. Acredite se puder, chega a ser perigosa a fúria de vários cidadãos que se locomovem sem problemas, reivindicando vagas de garagem especiais para os que delas precisam.

Graças às crianças da Fadem e aos associados da Ucergs, a Rua Frei Henrique Golland Trindade pode tornar-se um lugar ímpar. A tolerância com as diferenças nos jeitos de ser e transitar e a delicadeza de pensar no outro são uma oportunidade para o exercício da gentileza e da empatia. Elas fazem mais pela elevação da nossa alma do que muitas preces, discursos moralistas e sermões ambientais.

Compreendo que os vizinhos incomodados se identifiquem com a causa ecológica, como já me ocorreu. Mas penso que a consciência ambientalista inclui a compreensão das diferenças entre os reinos animal e vegetal, entre os diferentes tipos de bichos que somos, entre os diversos modos de ser das pessoas. O equilíbrio entre tudo o que habita na terra é cheio de sutilezas. A natureza é surpreendente e nada mais lindo do que compreendê-la em uma perspectiva maior. Se em nome de uma boa causa nos abrigarmos na intolerância estreita egoísta, isso tem outro nome: hipocrisia.

*O colunista David Coimbra está em férias. - DIANA CORSO


25 DE FEVEREIRO DE 2019
COMPORTAMENTO

Sonho de atuar contra a corrupção

Em 2014, quando ZH fez uma reportagem sobre os 25 anos do marco médico que foi o nascimento de Álvaro, o rapaz estava formado em Economia e trabalhava como analista de investimentos no mercado financeiro. Naquela época, operava-se uma transformação nele. Álvaro percebeu que não estava feliz por atuar num setor "meramente especulativo", sem impacto positivo para a sociedade. Pensou em colocar suas habilidades a serviço do poder público, de preferência na função de auditor fiscal.

- Ao longo dessa caminhada, vi que o meu sonho grande era atuar no combate à corrupção - define.

Para atingir esse objetivo, passou os últimos cinco anos combinando o trabalho como oficial legislativo na Câmara Municipal de Novo Hamburgo a uma pesada rotina de preparação. Acordava às 5h para debruçar-se sobre os livros, aos fins de semana dedicava 12 horas por dia a estudar, enfurnava- se em todos os feriados e usava férias inteiras, ano após ano, para se afiar ainda mais. Nesse processo, resolveu mais de 40 mil exercícios.

TRÊS VEZES NA MESMA EDIÇÃO DO DIÁRIO OFICIAL

Os frutos vieram em profusão. No fim do ano, uma mesma edição do Diário Oficial do Estado trazia três vezes o nome de Álvaro, anunciando sua aprovação nos concursos de técnico tributário da Receita Estadual, assistente da Receita Estadual e analista de planejamento da Secretaria de Planejamento. Também passou para o o cargo de auditor de controle externo no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e para a função dos seus sonhos: auditor da Contadoria e Auditoria Geral do Estado da Secretaria da Fazenda gaúcha. Ainda arranjou tempo para ser aprovado no último vestibular da UFRGS, no curso de Ciências Sociais.

- O meu coaching me apelidou de alien pelas aprovações que obtive. Aí, quando ele descobriu que sou o primeiro bebê de laboratório, deu risada dizendo que enfim entendia porque eu era diferente - diverte-se Álvaro.

Com os objetivos atingidos, o economista deu por encerrado o período frenético de estudos e agora quer passar mais tempo com a namorada e a família, um convívio que foi sacrificado por causa da dedicação aos estudos. No fim de semana, celebrou os 30 anos na casa da avó em Imbé.



25 DE FEVEREIRO DE 2019
COMPORTAMENTO

Há 30 anos, nascia um bebê pioneiro no RS

MARCO NA MEDICINA GAÚCHA, primeiro bebê de laboratório completa três décadas com história de sucesso pessoal e profissional

Durante a gestação de Álvaro Luis Gonçalves Santos, era comum as pessoas se aproximarem de sua mãe e perguntarem se ela não temia que o filho viesse ao mundo com algum déficit mental ou mesmo nem nascesse. Neste sábado, Álvaro chegou aos 30 anos como um caso de sucesso - da medicina e pessoal. Primeiro bebê de laboratório do Estado, ele se tornou, na vida adulta, um campeão de aprovação em concursos públicos. Passou em mais de 20 apenas nos últimos dois anos.

Nada mal para alguém que, por causa do ineditismo da gestação, teve o nascimento cercado por receios. A mãe, a técnica em enfermagem Iara Gonçalves Ferreira dos Santos, lembra que o desconhecimento que havia na época sobre as recém desenvolvidas técnicas de reprodução assistida fazia as pessoas proferirem barbaridades:

- Morávamos em Tramandaí, uma cidade pequena. Por causa do preconceito e do tabu, perguntavam se eu não tinha medo de ele nascer diferente. Não posso culpar essas pessoas, mas não era uma coisa agradável de escutar. Posso dizer que, algumas vezes, telefonei chorando para meu médico, o doutor Alvaro Petracco.

Iara e o ex-marido, João Luis Gomes dos Santos, perseguiram o sonho de ter um filho durante cinco anos. Iara sofria de endometriose, uma condição que tornava difícil engravidar. Depois de quase três anos, a médica que os acompanhava inicialmente deu o caso por encerrado, dizendo que não havia mais o que fazer. O casal perseverou e foi parar nas mãos de Alvaro Petracco e Mariangela Badalotti, que vinham trabalhando, no Hospital São Lucas da PUCRS, para trazer ao Estado os métodos que ganhavam manchetes mundo afora. Também faziam parte do grupo Marcelo Moretto, Francisco Cancian e Maria Izabel Lopes.

Petracco (que hoje dirige o Fertilitat Centro de Medicina Reprodutiva em parceria com Mariangela) relata que, apesar de o primeiro bebê de proveta ter nascido em 1978, na Inglaterra, a técnica não se disseminou logo. Foi só na segunda metade da década de 1980 que começou a deslanchar. Naquele momento, a dupla gaúcha vinha trabalhando, em silêncio, para dominar a novidade. Foram cinco anos de estudos e experimentos até que Álvaro nascesse.

- As coisas eram muito incipientes e experimentais quando começamos. O Hospital São Lucas nos deu uma área para desenvolver isso. Montamos um laboratório de fertilização e importamos material dos Estados Unidos, porque não tinha nada no Brasil naquela época. Começamos do zero, aprendendo. Quem fazia, escondia - conta Petracco.

GESTAÇÃO SE DEU NA PRIMEIRA TENTATIVA

Em 1988, sentiam-se prontos para dar o grande passo. Iara foi a primeira paciente. Os médicos escolheram um método hoje em desuso, a transferência intratubária de gametas (GIFT), que havia sido descrita por um pesquisador argentino. Não era uma técnica de fertilização in vitro (quando a fertilização do óvulo pelo espermatozoide ocorre em laboratório, e só depois o embrião é implantado na mulher), razão pela qual Álvaro não é propriamente um bebê de proveta. No GIFT, o óvulo (retirado por laparoscopia) e o espermatozoide eram preparados em um meio de cultura e implantados ao mesmo tempo na trompa da mulher, onde deveria ocorrer a fertilização.

Na primeira tentativa com o GIFT, Iara engravidou. Foi uma gestação tranquila, mas cercada de expectativa.

- Como se tratava de uma técnica nova, era um ponto de interrogação. Foi escondido até o final, porque ninguém sabia o que ia acontecer. Nasceu e só foram avisar no outro dia, depois de verem que a criança estava bem, respirando e que era normal - relata Petracco.

Batizado de Álvaro em homenagem ao médico, o menino nasceu saudável, com 2,8 quilos e 40 centímetros, em 23 de fevereiro de 1989. No dia seguinte, uma foto dele com os pais no hospital ocupava toda a primeira página de ZH que anunciava: "Nasce o primeiro bebê gaúcho de laboratório".

Quatro anos depois, Iara comentou que sentia-se mal, e Alvinho disparou:

- Mãe, tu estás grávida.

Ela achou impossível, mas a percepção do menino se confirmou. Petracco observa que um dos melhores tratamentos para a endometriose é, justamente, uma gestação. Assim, Iara atribui ao GIFT não apenas a possibilidade de ter tido Álvaro, mas também Gabriela, hoje com 25 anos:

- O que possibilitou a segunda gestação foi a primeira. Posso dizer que o procedimento me permitiu ter dois filhos, apesar de a segunda gravidez ter vindo naturalmente.

ITAMAR MELO



25 DE FEVEREIRO DE 2019
CLÓVIS MALTA

O Rio Grande sonhado

Tem vezes que você nem lembra ao acordar, mas sonha com o que a natureza tem de mais espetacular nesta vasta região austral entre o Atlântico e o Pacífico. É sempre um sonho definitivo, pois ajuda a entender o que teria levado portugueses e espanhóis a desafiarem a morte, em tempos remotos, por estas terras longínquas. O Chile foi abençoado com algumas das maiores belezas naturais do planeta, mas o Rio Grande do Sul também tem as suas, e são incomparáveis.

No sonho, é como se você fosse uma ave migratória. E precisa escolher justamente o que há de mais belo na nossa natureza. Seria algo lúdico, mas vira pesadelo. Como optar entre obras grandiosas que o sol, o vento e as águas, incluindo as roladas pelas chuvas e lágrimas, levaram milhões de anos para executar, deixando-as como estavam há um segundo?

O certo seria decidir-se logo por esse verdadeiro oceano interno que é a Lagoa dos Patos, a maior de todas. Mas tudo passa rápido, como o vento. Você já está agora no topo do Morro da Borússia. Bastaria um movimento mínimo para tocar o céu. E quase desperta com a força das ondas além da planície, nessa reta infinita de oceano entre as falésias de Torres e o Chuí. Mas não dá tempo.

Agora é a serra que se esparrama a Oeste, com suas vertentes, cachoeiras e araucárias. Tem algo mais alucinante do que a gralha-azul voando sobre os cânions, sobre seus abismos fundos como os da alma?

E aí, do nada, surge uma planície sem fim, como a produção de seu sacerdote da poesia, Luiz de Miranda, para quem o que nos segura "nestes caminhos da Pampa/ é um jeito largo de amar/ as distâncias e o caminhar". É o andar sem fim, como se os pés fossem asas em direção a horizontes para sempre inalcançáveis.

O melhor mesmo seria abreviar a jornada. Mas não esqueça: você mantém a visão de humano e sonha que é um pássaro, que também sonha. E o que já está diante dos olhos, nessa dimensão sem tempo, nem espaço, é o Guaíba. É o delta do Jacuí com seus rios e ilhas tão maltratados. E o olhar se volta de novo para o Leste, para o Taim ao Sul e suas capivaras ao sol, para lagoas gigantes e açudes transbordando peixes, tomados por biguás, como você, que quer e não quer acordar, que se debate entre o sono e a vigília.

São tantas as belezas naturais do Rio Grande do Sul, que é difícil escolher apenas uma, quase impossível. Só que você já tomou a sua decisão. Tenta gritar qual é, mas a garganta se cala sob o quebrar das ondas, como nos pesadelos. Tenta imaginar se a sua opção seria a mesma de quem tiver a rara paciência de ler este texto até o fim, de um jeito tão gentil, que é difícil agradecer - ainda assim, gratidão. Sente que a beleza ofusca até mesmo olhos fechados, como um raio seco.

Você ainda hesita, mas acorda num arfar, como se tivesse ouvido um trovão dentro do peito, antes de mergulhar no vazio. Por um instante, chega a duvidar se ainda dorme, se é pessoa ou ave. E, aí, se confunde, esquece tudo, inclusive o sonho.

sábado, 23 de fevereiro de 2019



23 DE FEVEREIRO DE 2019
SINGULAR

Uma questão de valor

NA SEGUNDA REPORTAGEM DA SÉRIE RS QUE INSPIRA, QUE OCUPA O ESPAÇO DA SEÇÃO SINGULAR, CONHEÇA A HISTÓRIA DE UM PROJETO, LIDERADO POR UMA PROFESSORA UNIVERSITÁRIA, QUE JÁ ARRECADOU R$ 150 MIL PARA A CAUSA ANIMAL APENAS RECOLHENDO TAMPINHAS USADAS DE GARRAFAS PET

Espalhadas pela casa da engenheira química e professora universitária Rejane Rech, 56 anos, as dezenas de estátuas de diferentes tamanhos de São Francisco de Assis recebidas de presente sinalizam a paixão dela pela causa animal. Há três anos, Rejane se dedica ao Engenharia Solidária, um projeto que recicla e revende tampas plásticas para comprar ração com o dinheiro arrecadado. O alimento é repassado a duas ONGs e a 25 protetores independentes, responsáveis por cuidar de mais de 300 animais vítimas de maus tratos em Caxias do Sul, na serra gaúcha.

Criado em agosto de 2015 dentro do curso de Engenharia de Produção da Universidade de Caxias do Sul (UCS), por sugestão de uma aluna, o projeto pretendia ajudar, inicialmente, a ONG Proteção Animal Caxias (PAC), uma das mais antigas entidades em funcionamento no município. Porém, o primeiro mês de arrecadação foi desanimador: rendeu apenas R$ 16. Rejane diz que sentiu "vergonha" ao prestar contas aos primeiros amigos engajados na causa. Apesar da frustração, no entanto, não desistiu. Dois meses depois, com as primeiras postagens de mobilização nas redes sociais, chegou a R$ 232.

Mas a visibilidade definitiva veio quando o Engenharia Solidária estava prestes a completar um ano de funcionamento. Sem sede própria, o projeto ganhou da UCS três salas de 10 metros quadrados cada para abrigar o material da reciclagem. Na mesma época, o Sindicato das Indústrias de Material Plástico, em parceria com a prefeitura de Caxias, realizou uma gincana nas escolas para arrecadar tampinhas e repassá-las à entidade. 

O sindicato ainda doou ao projeto 70 coletores de tampas, recipientes demarcados para reunir os objetos, que foram distribuídos no comércio local. A ação mobilizou a cidade. Outras 300 caixas foram entregues pela JP Embalagens e espalhadas por vários bairros. A empresa, até hoje, cede coletores, feitos de papelão. Desde então, a arrecadação, assim como o número de voluntários do Engenharia Solidária, só aumentaram.

- As doações cresceram e pudemos ampliar nossa rede de ajuda. Passamos a fornecer aos cuidadores independentes, aquelas pessoas que recolhem e mantêm muitos animais em casa. Na maioria das vezes, são pessoas humildes, que amam os animais mas que não têm apoio para poder alimentá-los adequadamente - explica Rejane.

Por mês, o Engenharia Solidária costuma arrecadar cerca de R$ 6 mil. O dinheiro é repartido entre as entidades e ajuda a alimentar os cães recolhidos.

Vítima dos próprios donos, Cabrita, uma cadela de pelos brancos com cerca de 12 anos, foi uma das que ganharam a ração enviada pelo grupo. Cabrita não consegue manter a língua dentro da boca desde que perdeu parte dos dentes e do maxilar devido aos maus tratos. Resgatada em janeiro de 2018, ela ficou em um local provisório na PAC. Quatro meses depois, ganhou um novo lar e quatro irmãos - todos cães considerados inadotáveis por terem algum problema de saúde. Hoje, ela tem espaço para brincar, uma almofada aconchegante só para ela e o carinho da nova dona - a própria mentora do Engenharia Solidária.

Para Rejane, o que cativa as pessoas é a possibilidade de ajudar. Muitos, ela percebe, têm o desejo de contribuir com a causa, mas não têm condições financeiras ou tempo disponível. Nesses casos, separar as tampas plásticas os faz se sentirem úteis. Orgulhosa, reforça que a mobilização atinge todas as classes sociais. Um exemplo são as mensagens enviadas por ex-alunos, hoje empresários bem-sucedidos, quando avisam terem recolhido as tampas inclusive durante viagens de negócios.

- Quando começamos a arrecadar tampinhas, percebemos o lixo que nós produzimos. Hoje, já passamos das 80 toneladas retiradas do meio ambiente diretamente para a reciclagem. Isso rendeu, da metade de 2015 até agora, R$ 150 mil para o projeto - destaca.

Professora há três décadas na UCS, Rejane trabalha em uma sala em frente às três peças nas quais são separadas as tampas. Da janela, controla a entrada e a saída dos voluntários. Para flexibilizar os horários, cada um recebe as próprias chaves. Há quem frequente o local duas horas por semana. E há os assíduos, que passam por lá todas as tardes. Os novos recebem um treinamento sobre triagem antes do primeiro dia de trabalho. Por ser um ambiente estreito, apenas três pessoas podem trabalhar juntas por vez no mesmo espaço. Cada tampa é lavada e tem o plástico interno retirado. Quando um saco é completado, passa pela pesagem e conferência e recebe uma identificação.

O material é levado para uma sala seguinte, onde ficam as tampas limpas. De lá, segue para a terceira sala, a de expedição. A Estação da Ração, loja parceira do projeto, atua voluntariamente para levar o material ao destino final.

O grupo ainda enfrenta o desafio de conscientizar as pessoas sobre as doações. É comum o Engenharia Solidária receber sacos com lacres, outros tipos de materiais e até itens que não deveriam ser descartados, como um anel de ouro localizado por Rejane no início de janeiro. A dona apareceu depois de uma divulgação na rede social do projeto.

A professora valoriza o trabalho sem remuneração da equipe. Junto aos outros voluntários, ajuda a carregar sacos e a separar material, mesmo em dias de calor ou frio intenso - as salas são feitas de blocos de concreto, intensificando a temperatura de acordo com a estação. Há tarefas bem definidas: além dos responsáveis pela limpeza e pela separação, há quem faça as buscas nos mais de 300 pontos de coleta (atividade que a professora também realiza), quem contata e recruta os novos voluntários e quem fica responsável pela divulgação.

Se não está envolvida com a reciclagem ou com a universidade, Rejane dedica tempo aos três cães apadrinhados em lares temporários e aos cinco adotados nas entidades para as quais destina a ração comprada. Além de Cabrita, Rejane tem em casa Joaquim, um vira-latas de seis anos que tem medo de crianças devido aos maus tratos sofridos, Valente, que perdeu a pata traseira direita, Fumaça, resgatada depois de ficar dias presa a uma corrente curta e sem comida, e Flor, atropelada ainda filhote ao ser abandonada na estrada pelo ex-dono.

- Tenho consciência de que o Engenharia Solidária não resolverá o problema como um todo. As políticas públicas, como as proibições da venda de animais em pet shops e da criação comercial de animais, é que resolverão. Mas faço a minha parte para um mundo melhor - sintetiza.

Mãe de dois filhos, a designer Roberta e o engenheiro de produção Roberto, Rejane já mantinha a venda online de livros universitários para contribuir com entidades protetoras de animais. Mas está convicta de ter dado um novo sentido à vida ao criar o Engenharia Solidária. Ela chora ao ressaltar o projeto como o seu verdadeiro legado, e não se imagina distante dele. Pelo contrário, quer seguir sendo exemplo para a família, os amigos e os alunos, demonstrando que sempre haverá um tempo livre para dedicar-se a uma causa social.

ME SINTO MUITO MAIS ÚTIL

A assistente administrativa aposentada Rosangele Calliari Bedin, 63 anos, se tornou voluntária seis meses depois do início do projeto. Simpatizante da causa animal, ela encontrou no Engenharia Solidária o caminho que buscava para o voluntariado. Hoje, é braço direito de Rejane e dedica pelo menos quatro dias da semana à coleta e à seleção do material a ser reciclado.

- O projeto é muito gratificante porque conseguimos ajudar muito a causa animal. Me sinto mais útil desde que comecei a fazer parte do Engenharia Solidária. E a Rejane nos motiva. É uma pessoa muito disponível e engajada, que não para um minuto. É um exemplo de vida.

ALINE CUSTÓDIO


23 DE FEVEREIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

EDUCAÇÃO HIPSTER OU NÃO?


Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Di

O ano letivo engrena e chega a um novo momento para pensar na imensa tarefa de educar. Se você é mãe ou pai responsável, deve ter medo. Se você for um professor de qualidade, pode estar apreensivo. Quem sabe a responsabilidade da escola na definição do futuro de alguém tem apreensões.

Não existe receita. Vamos trazer dados objetivos para que cada mãe e cada pai, cada escola e cada professor possam acrescentar sua visão de mundo e complementar (ou contradizer) o que proponho a seguir.

1) Alguém é educado da mesma maneira que alguém peca na liturgia católica: "Por pensamentos e palavras, atos e omissões". Você educa pelo que diz, pelo que omite, pelo que faz e até por pensamentos, já que eles provocam marolas no olhar ou são pais de gestos concretos. Ao dirigir, você está educando um filho que está na cadeirinha do banco de trás. Ao entrar na sala de aula, sua roupa, seu tom de voz, sua postura, seu sorriso ou seu azedume estão educando. O chamado "currículo oculto" é, quase sempre, o mais poderoso da educação.

2) Educação deve ser um equilíbrio entre o prazer lúdico que produz muito conhecimento e, por vezes, a insistência do esforço que não está acompanhado de resultado imediato. Focar em sorrisos 100% do tempo atende o aluno-consumidor e não ao ser humano maduro. É errado supor que tudo deva ser sofrimento e equivocado dizer que só tem valor quando fazemos com gargalhadas. A "chatice" nunca é um bom projeto, mas o gosto do esforço deve e pode ser estimulado.

3) A sala de aula e as atividades culturais declaradas são importantes, porém existe a autonomia do indivíduo. O desejo de consumo, por exemplo, é quase igual para todos os alunos ao emergirem do Ensino Médio. Nenhuma aula disse que o smartphone X era o melhor, mas o mundo inteiro disse algo assim. Isso deve nos deixar um pouco menos preocupados: fazemos muito, não controlamos tudo. Nem todos os desejos e as repulsas dos alunos derivam do gosto dos pais ou da orientação dos professores.

4) Muitos pais de classe média e alta dão celulares bem cedo para os filhos sob o argumento de que "todos os colegas possuem um". A ida para a Disney segue lógica similar. Uma roupa da moda acaba sendo imposta porque a criança/adolescente ficaria deslocada/do em outro traje. Quem pensa assim está produzindo uniformidade, time, torcida ou batalhão militar. Uma parte do sucesso no futuro dependerá de autonomia, inteligência, originalidade. Em resumo, querer tudo igual torna seu filho e sua filha iguais em demasia e, como tal, mais aptos à repetição. Ser "hipster" no sentido original e positivo da palavra é uma estratégia boa de sucesso. Pensar de forma autônoma dá mais futuro.

5) Se alguém de 14 anos fosse maduro e equilibrado, soubesse aprender por si e fosse sábio, pais e professores poderiam ser dispensados. Um médico é procurado por doentes. Educar é lidar com imaturidade, inconstância, crises artificiais, egoísmos, narcisos feridos, incapacidade de ver o outro e uma insegurança brutal que se traveste de arrogância. Pais e mães têm poder sobre os filhos porque os filhos necessitam do poder. São seres únicos, ainda que sejam na teoria e na prática incapazes judicialmente. Professores estão ali para fazer parte do processo longo, penoso e desgastante de pressionar o carvão para que surja algum diamante. É por serem difíceis que a criança e o jovem necessitam de você.

6) Não cansarei de repetir: não educo para suprir dores da minha educação, para sublimar o que ouvi no passado ou para ressignificar minhas frustrações. Educo um ser único, especial, parte da minha biografia, todavia autônomo nas coisas boas e ruins. Educo para o futuro, educo-me junto, reaprendo valores, entendo que gerações anteriores tinham vantagens e defeitos e, por fim, pratico a suprema lição ecológica: amparar o animal selvagem ferido é, exclusivamente, para reinseri-lo na natureza. O grande objetivo de toda educação é liberar o educando no mundo selvagem e complicado. O cativeiro protege e imbeciliza. A jaula é desejo de controle do proprietário, raramente um anelo do bicho. Bichos/animais no mesmo parágrafo que alunos e filhos? Se alguma fera lê o Estadão eu peço desculpas. Foi um pleonasmo didático.

7) Há pais, professores, mães e outros educadores que criam fronteiras e regras bem demarcadas. Há quem prefira laços mais frouxos. Há os que ligam de meia em meia hora e há os que se controlam. As linhas variam e dependem de muitos fatores. Só existe uma questão que jovens não perdoarão no futuro: a indiferença. Dá para superar um pai controlador, difícil encarar o omisso. Educar é um projeto enorme e duradouro. Já escrevi que há mais gente fértil no mundo do que vocações autênticas de pai e de mãe. Há mais gente com diploma de licenciatura do que professores de verdade. Sua linha pode variar. O que nunca será esquecido é se você esteve presente, integral, empenhado e com todo o seu corpo e alma no momento. Pode errar junto, nunca distante.

A escola e a família podem muito, mas não podem tudo. Você é responsável e seu papel fundamental, todavia o mundo lhe excede, o futuro não lhe pertence e o ser humano não é determinado pelos pais e professores. Tente fazer o melhor, haverá erros e lacunas enormes, mas tudo pode ser reparado se existiu um projeto genuíno de estimular liberdade, conhecimento, curiosidade e valores coerentes. O resto? Devemos dar uma chance profissional a terapeutas e psicólogos. A vida sempre será o maior professor de todos nós. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL