quarta-feira, 10 de outubro de 2012



DEMÉTRIO MAGNOLI
TENDÊNCIAS/DEBATES

O esqueleto que sorri

No seu "Era dos Extremos", Eric Hobsbawm, tão lido no Brasil, falsifica a história para absolver Stálin. Sua versão da 2ª Guerra foi aquela fabricada em Moscou

"Eu entendi isso, Edward. Esse esqueleto nunca sorrirá novamente." Leszek Kolakowski, filósofo polonês exilado, concluiu com essas palavras sua réplica ao historiador Edward P. Thompson, que o acusara de trair os ideais socialistas.

O ano era 1974, seis depois da invasão da Tchecoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia. Thompson rasgara sua carteirinha do Partido Comunista britânico em 1956, na hora da invasão soviética da Hungria, mas interpretava o stalinismo como apenas um deplorável desvio no curso da história rumo ao radioso futuro comunista. Kolakowski, porém, sabia mais -e tinha um norte moral melhor.

Eric Hobsbawm nunca renunciou à sua carteirinha do partido.

Aos 23 anos, ele assinou com Raymond Williams um panfleto de apoio ao pacto Molotov-Ribbentrop, entre a URSS de Stálin e a Alemanha de Hitler. Na maturidade, atravessou impávido as fogueiras da Hungria e da Tchecoslováquia.

Em 1994, aos 77 anos, pouco depois da queda do Muro de Berlim, publicou "Era dos Extremos", uma interpretação do século 20 consagrada a desenhar um sorriso no esqueleto já enterrado do stalinismo.

Hobsbawm, notável narrador do século 19, autor da trilogia das "eras" que desvendou para o grande público a trama da história contemporânea, entregou-se então à falsificação deliberada para restaurar o argumento imoral de Thompson.

A "era dos extremos" é uma tese paradoxal, cuja síntese emerge na sua introdução: "A vitória da URSS sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela Revolução de Outubro. Sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA) provavelmente seria um conjunto de variações sobre temas autoritários e fascistas, mais que de variações sobre temas parlamentares liberais."

O totalitarismo stalinista, assegura-nos o historiador, podia ter seus defeitos, mas representava o socialismo e, sem ele, a humanidade teria sido tragada, em definitivo, pelo vórtice do fascismo.

O tribunal final da História, constituído por um único juiz, o próprio Hobsbawm, oferece um veredicto de absolvição dos processos de Moscou, do gulag, da supressão absoluta da liberdade. A matéria pútrida do "socialismo real" salvou-nos, a todos, de um destino pior, que era tecido pelo capitalismo em crise.

A narrativa inteira se organiza persuasivamente ao redor da tese, investindo na aposta segura de que o leitor médio carece das informações indispensáveis para refutá-la.

O regime de Stálin destroçou o comando das forças armadas soviéticas nos expurgos dos anos 30, aumentando a vulnerabilidade do país à invasão alemã. A URSS não triunfaria sobre Hitler sem a vasta ajuda militar americana.

No primeiro e crucial ano do conflito, a aliança firmada pelo pacto Molotov-Ribbentrop converteu a URSS em fornecedora principal de matérias-primas e combustíveis para a máquina de guerra nazista.

A história de cartolina de Hobsbawm é uma contrafação da história da Segunda Guerra, inspirada diretamente pelas narrativas oficiais fabricada por Moscou no imediato pós-guerra. O esqueleto precisa antes mentir, para depois sorrir.

A trilogia das "eras", narrativas eruditas escritas em linguagem cristalina, foi a porta de entrada de centenas de milhares de leitores para as delícias da história. "Era dos Extremos" singrou no oceano de autoridade das obras precedentes.

No Brasil, país onde Hobsbawm tem mais leitores do que na Grã-Bretanha, o livro beneficiou-se de uma recepção laudatória, patrocinada por intelectuais inconformados com as marteladas críticas dos berlinenses daquele 9 de novembro de 1989.

Fora daqui, porém, nem todos aceitaram sorrir junto com o esqueleto de uma mentira.

Num ensaio de 2003, o historiador Tony Judt escreveu o epitáfio incontornável: "Hobsbawm recusa-se a encarar o mal face a face e chamá-lo pelo seu nome; nunca enfrenta a herança moral e política de Stalin e de seus feitos. Se ele pretende seriamente passar o bastão radical às futuras gerações, essa não é a maneira de proceder".

DEMÉTRIO MAGNOLI, 53, sociólogo e doutor em geografia humana, integra o Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP (Gacint-USP)

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