LUIZ
FELIPE PONDÉ
Uma vida para doentes mentais
Um
cidadão responsável em nosso mundo afirma sua integridade pagando a conta do
Visa
Vivemos
uma vida para doentes mentais. A Romênia já nos deu Cioran, Eliade, Ionesco. Agora
nos dá Matéi Visniec, e a É Realizações traduziu várias de suas peças.
Entre
elas, "A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais" nos dá a
conhecer um medíocre escritor, convidado a contar a história do comunismo a
doentes mentais dias antes da morte de Stálin.
Mas,
para além do aspecto específico de uma reflexão sobre a conhecida praga do
marxismo, chama atenção a reflexão sobre o mal que o autor faz em suas obras,
principalmente na face contemporânea e histórica.
Os
romenos são grandes "filósofos do mal". Tenho um profundo preconceito
por quem acha que não existe o mal. Este tipo de antropólogo de boutique que
confunde relativismo cultural com discussão moral séria.
Segundo
o que nos dizia Cioran, na Romênia, ninguém se dava ao luxo de suspeitar da
existência do mal, porque o fatalismo pessimista daquele povo era por demais "empírico":
séculos de violência.
Segundo
o autor, o mal em sistemas totalitários é fácil de ser identificado: a perda da
liberdade, da privacidade, do horizonte, enfim, do tônus da vontade. Mas, na
França em que vive desde seu exílio em 1987, o mal não é tão fácil de ser
identificado. Para Visniec, aquilo que as ditaduras marxistas não conseguiram
realizar plenamente, a formatação do homem para a condição de gado ou de doente
mental, a "liberdade de consumo" das democracias ocidentais estão
conseguindo. Este é o "nosso mal".
Como
o leitor bem sabe, suspeito de toda crítica à sociedade de mercado quando feita
por alguém que supõe conhecer uma melhor forma de vida e que afirma que esta
melhor forma passa pelas ideias idiotas que alimenta em sua cabecinha intelectualmente
provinciana e autoritária. Mas este não é o caso de Visniec.
Tendo
vivido sob o regime totalitário marxista, ele carrega a marca de quem conheceu
o mal na intimidade que só a forma banal do cotidiano traz.
Para
as sociedade ocidentais funcionarem, temos que comprar. Para comprar no nível
que a máquina econômica nos pede, temos que, mais do que comprar, consumir
sempre e cada vez mais. Portanto, ao consumirmos "livremente" e com
alegria, somos o gado pacificado que os regimes marxistas tentaram criar e não
conseguiram. Um cidadão responsável neste mundo afirma sua integridade pagando
a conta do Visa em dia.
Só alguém
sem alma pode ver um shopping center no fim de semana e não ter vontade de
vomitar. Um certo mal-estar com relação à sociedade de consumo é necessário se
você quiser manter sua saúde mental em dia. A sociedade que consome sem um mínimo
de mal-estar é uma sociedade de doentes mentais.
O
problema é que não conhecemos nenhuma experiência histórica real na qual a
liberdade política tenha sobrevivido ao extermínio da liberdade de iniciativa
econômica.
Por
outro lado, a vida humana é precária e tudo tem um custo real. Não conhecemos
nenhuma forma de criar ciência, conforto, técnica, direitos humanos sem o uso
de dinheiro. E assim voltamos ao consumo: o consumo garante a sobrevivência da
economia no nível exigido pelo nosso desejo de conforto, ciência, técnica,
direitos humanos.
Visniec
se choca com uma Europa que tudo que parece querer é comprar. O Leste Europeu,
quando ficou livre, gritou "Prada!". A liberdade conquistada foi para
ir ao shopping no fim de semana e comprar toda essa gama de lixo que se compra,
com a "boca cheia de dentes esperando a morte chegar...".
Nenhum
intelectual parece entender que somos banais como doentes mentais.
Visniec
pensa que temos que buscar novas utopias. O interessante é lembrar que a
felicidade representada pelo "sou livre para comprar" também foi uma
utopia na Europa. O euro é o nome dessa utopia.
Melhor
abrirmos mão da ideia de utopia. Quanto mais rápido desistirmos de um mundo
melhor, mais rápido perceberemos que a consciência, de fato, é um ônus.
E
também, como dizia Yeats, "os melhores não têm convicções enquanto que os
piores estão sempre cheios de intensidade passional". O desafio hoje é pensar
sem utopias.
ponde.folha@uol.com.br
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