27
de outubro de 2012 | N° 17235PESQUEIRO |
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Talibã, Lobato & Lopes Neto
Semana
passada li que no Afeganistão atual estão saindo livros de história, para uso
escolar, que omitem eventos dos últimos 40 anos. Processos complicados como a
ocupação soviética em 1979, os governos comunistas de Cabul, a guerra civil dos
anos 1990, tudo isso foi para o espaço.
A
intenção, dizem os críticos, seria agradar o Talibã, por sinal nascido desses
episódios todos; o governo defende a iniciativa dizendo que se trata de
encontrar unidade para o país, cindido entre etnias, religiões, culturas, etc.
(Talibã,
o senhor sabe, é aquele movimento fundamentalista islâmico, tido em geral como
terrorista, que em seus anos de governo, de 1996 a 2001, proibiu internet,
televisão, etc.; aquele que, a título de impor seu mando e sua religião, em 2001
dinamitou duas estátuas do Buda, uma com 1800 e outra com 1500 anos de idade.
Eu disse mil e oitocentos anos de idade, não me enganei não.)
O
Afeganistão está tão longe de nós que permite uma reflexão amena. Eu
perguntaria ao prezado leitor o que acha da coisa: será correto eliminar dos
livros escolares momentos tão fortes como os que mencionei acima, em nome de
unificar o país? Pensa aí, leitor, que eu já volto.
O
passado vergonhoso
E
aí? Pensou?
Sei,
logo vi: tanto o prezado leitor quanto eu achamos que não cabe eliminar do
relato do passado qualquer de seus movimentos, por complexos que sejam, por
problemáticos que tenham sido seus desdobramentos. Até mesmo por vergonhosos
que sejam. Todos eles merecem figurar na história que passamos aos mais novos,
porque é disso que se compõe a melhor experiência humana: conhecer o passado,
lidar com ele, aprender com ele. Em se tratando de uma nação, de uma família ou
até mesmo de um indivíduo, a regra geral é que conhecer vale mais do que
sonegar a informação. Assim temos andado para a frente.
Até
aqui o ameno; agora passemos ao problemático: o que fazer com os livros de
Monteiro Lobato que estão em causa, correndo o risco de serem proibidos de
circular?
O
senhor leu ou ouviu falar: continua em apreciação, no mesmo Supremo Tribunal
Federal que julga o mensalão (assim que se encerrar, sugiro nova pauta: julgar
a compra de votos para a reeleição de FHC, com a mesma força de mídia; que
tal?), um processo do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental contra o livro
Caçadas de Pedrinho (primeira edição em 1933), por este conter passagens como
esta: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem
uma macaca de carvão”.
Pausa
para uma ponderação: não é a mesma coisa um livro de história e um livro de
literatura. Certo. De um livro de história se deve exigir que exponha com
precisão e o máximo de lisura os fatos, os processos, os conflitos que fizeram
o passado; além disso, a abordagem a um livro de história costuma ser amparada
em perspectiva crítica, que relativiza as coisas, observa os limites de
qualquer relato historiográfico, sempre parcial, sempre dependente de um certo
método, etc.
Já
um livro de literatura entra na corrente do ensino por outro lado: não se
espera dele a verdade dos fatos, mas a imaginação, a criação de enredo e
linguagem que movem as fronteiras do conhecido em direção ao potencial; por
certo a literatura também nasce e prospera sob restrições, a começar pelas do
autor mesmo, sua cabeça e suas crenças.
Entretanto,
há muitos pontos em comum entre os dois casos. Assim como a disciplina de
História ensina a entender o passado a partir das injunções do presente e
mediante uma espécie de visitação aos fatos, a disciplina de Literatura (ou
Língua, mais genericamente) ensina a entender a cultura em que vivemos, em suas
dimensões passadas e presentes, mediante a visitação aos fatos imaginados pelo
autor com base na percepção da vida real, expressos nos romances, nos poemas,
nos contos, etc.
Para
nem falar que História e Literatura, assim como a história e a literatura, são
essencialmente práticas discursivas, que só existem através da linguagem. E sem
lembrar ainda que história e literatura envolvem a imaginação, em direção aos
fatos históricos ou em direção aos sonhos dos escritores, mas também no rumo
dos sonhos sonhados no passado e dos fatos inventados pelos ficcionistas e
poetas. Vizinhança forte.
E,
bem: para o leitor bem aparelhado, literatura é arte e é sempre, ao mesmíssimo
tempo, história em forma concentrada, extrato de história.
Lobato
na berlinda
Como
encarar o caso concreto de Lobato? Sou contra a censura ao livro. Em primeiro
lugar, porque tenho muita dificuldade em aceitar censura à arte, em geral; em
segundo, porque Monteiro Lobato é um grande escritor, que estimula a
inteligência em muitos e variados níveis; em terceiro, porque passagens como a
citada, que agora não seriam escritas por ninguém em sã consciência
republicana, não são o centro de interesse do texto.
Digo
melhor: se há pontos de vista que agora consideramos problemáticos por conterem
preconceito, e há, também é fato que o que predomina no livro é bem outra
coisa.
Tecnicamente
há uma questão importante: quem expressa os juízos racistas em Lobato é o
narrador, esta entidade invisível mas decisiva, porque é quem conta a história
e estrutura o conjunto do narrado. Certo, o narrador não é, imediatamente, o
autor empírico, o cidadão que empunha a caneta para escrever; mas o narrador,
particularmente o que se move na terceira pessoa, expressa uma visão de mundo
que em regra se aproxima do que pensa o autor.
Isso
é bem diferente da presença de um personagem racista que expresse, como
personagem e portanto como uma parte do conjunto; pense em O Cortiço, em que o
racismo se apresenta cruamente, na boca de uns e outros.
Tudo
considerado, sou convicto de que não se pode apagar Monteiro Lobato da história
da cultura brasileira. Tem racismo? Aponta isso em nota, oferece material anexo
ao texto para que o professor discuta isso de peito aberto, e vamos lá. Alguém
já disse que, se formos bloquear tudo que no passado expressou pontos de vista
que hoje são tidos como incorretos, bem, não sobra muita coisa, nem a Bíblia,
Homero, Platão, Shakespeare, Cervantes e por aí vamos.
O
cadinho Lopes Neto
João
Simões Lopes Neto: o autor dos magníficos Contos Gauchescos e das Lendas do Sul
pode ser evocado a propósito desse debate. Uma obra sua, até agora inédita mas
em vias de aparecer (estou preparando este material para publicação, em
parceria com Carlos Francisco Sica Diniz e Fausto Toledo), traz material que dá
o que pensar.
É o
livro Terra Gaúcha. Escrito entre 1904 e 1908, aproximadamente, é concebido
para leitura escolar; sua inspiração direta é Cuore, isto é, Coração, de
Edmondo de Amicis. Os dois têm como protagonista e narrador um menino em
situação de aula, que vive e narra o cotidiano escolar.
Pois
bem: em Terra Gaúcha, há um momento em que Mayo, o menino narrador (de seus 10
ou 11 anos), fica em casa, adoentado, e recebe a visita de três colegas. Em
certo momento, os quatro se colocam diante de um espelho, sorridentes e
abraçados, amigos que celebram o encontro.
O pai de Mayo está por perto e
observa que a cena representa o presente do Brasil: os quatro são diferentes
(um é um caboclo, de aspecto indiático; outro é ruivo; o narrador é moreno de
pele clara; e o quarto é um mulato), cada qual de uma “raça”– o termo que se
usava na época.
Então
o pai expressa um desejo seu: “No Brasil as gentes se ligarem internamente pelo
sangue, como já está acontecendo, quando os descendentes de diversas raças
formarem uma nova raça uniforme, o brasilês há de ser o primeiro povo da terra
porque terá no seu corpo, na inteligência e no sangue as melhores qualidades de
cada um dos outros povos; terá a resistência do português, o aprumo do
espanhol, a vivacidade do francês, o pendor artístico do italiano, a calma do
inglês e a tenacidade do alemão, e a vitalidade do africano, e a valentia e o
amor à liberdade dos índios”.
“Brasilês”
é o brasileiro, para quem Simões Lopes Neto defendia, pela boca desse pai, a
miscigenação étnica como uma vantagem. Era o oposto do eugenismo, que tanto
cartaz tinha e que ecoa parcialmente em Monteiro Lobato. Que eu saiba, ninguém
mais teve posição assim, na primeira década do século passado.
Bem
depois viria Gilberto Freyre, e mais adiante Darcy Ribeiro, também eles
eufóricos na celebração da mistura. Mas em sua geração, que é em parte a mesma
de Lobato, o velho e bom escritor pelotense foi voz isolada em seu
antirracismo.
Grande
figura, escritor fino, cidadão de pensamento social avançado, Simões Lopes Neto
continua a nos surpreender.
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