09
de outubro de 2012 | N° 17217
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Caixinha de fósforos e surpresas
Minha
mulher tinha a mania de colocar os fósforos usados de volta para a caixinha.
Assim
que riscava, guardava os palitos velhos com os novos.
Nunca
colocava fora, apesar da facilidade do lixinho branco em cima da pia.
Nem
acho que era pressa, mas hábito. Tentei adverti-la uma vez, duas vezes, até que
estava sendo desagradável e desisti (quando marido se assemelha a um pai, é o
momento de calar a boca).
Mesmo
disposto a me adaptar e não comprar briga, eu me irritava com aquela roleta-russa
toda manhã. É evidente que pegava de imediato uma série de fósforos queimados –
não sei se você sabe, mas sou o autor da Lei de Murphy na Câmara de Vereadores
de Porto Alegre.
O
azar me premiava. Jamais retirava de cara a cabeça ruiva da caixinha amarela. Sacrificava
preciosos minutos para preservar a chatice da esposa.
Acender
incenso, acender fogão, acender vela reivindicavam o suspense do sorteio, a
contagem de votos da eleição. E muita paciência para não gritar um bom desaforo
ao longo da porta.
Aquilo
era ainda mais claustrofóbico para quem aprendeu a tabuada separando grãos de
feijão e fósforos. Reproduzia o terror das provas orais, das superações matemáticas.
A
caixa não se abria como uma caixa, e sim se aprofundava como uma gaveta
desorganizada, uma bolsa de mulher, um armário de solteiro. Solicitava o dobro
de cuidado para revirar o fundo e contornar as pontas com o tato.
Eu
me enxergava penalizado, diferente de qualquer pessoa normal, que apenas
riscava o fulgor e não pensava.
Sofri
dois anos com minha indisposição.
Somente
hoje reparei que gosto imensamente da dúvida, da possibilidade de colher um
fogo extinto ou um fogo vivo.
É uma
ansiedade feliz. Uma expectativa pequena, porém agradável.
Encaro
o fósforo e confiro se ele tem a pólvora intacta, se vai explodir sua cabeleira
loira e azul. Faz sentido, porque liberdade significa manter nossa disposição
para se surpreender dentro da rotina.
Presto
uma maior atenção na chama, no seu desenho e som. Descubro que o fósforo é um
relâmpago em miniatura, tão bonito quanto os raios que cortam os morros e céus.
Solto uma risada infantil assim que ele mantém sua auréola firme.
Amar
a si próprio é esse movimento: não se resignar, não se conformar com o que foi
feito, não mergulhar na repetição desanimada dos dias: olhar cada lembrança de
frente e ver se ainda queima. Olhar cada palavra de frente e ver se ainda
queima. Olhar cada atitude de frente e ver se ainda queima.
E
incendiar a nossa vida na vida do outro.
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