domingo, 30 de novembro de 2014

FERREIRA GULLAR

Necessidade

É fascinante que tudo seja imprevisível. Faz da vida uma aventura, e o jeito é torcer por um 'happy end'

Como costumo dizer, estou a cada momento descobrindo o óbvio. É que, às vezes, o óbvio, por ser óbvio, esconde o mistério, ou, pelo menos, é o que me parece.

Uma das coisas óbvias que descobri é que muito troço na vida resulta, em boa parte, do acaso.

Sei que há pessoas que pensam o contrário, pois acreditam que tudo o que acontece já estava determinado. Acho isso difícil, quando mais não seja porque, sem falar no resto, só de gente no planeta há atualmente muitos bilhões. Já imaginou o que seria prever e determinar tudo o que deve ocorrer com essa quantidade de gente a cada minuto?

Bem, não vou discutir esse tema porque não é ele que me traz a essa conversa com você. Acho fascinante --ainda que um tanto assustador-- o fato de que o que pode nos acontecer seja imprevisível. Faz da vida uma aventura, e o jeito é torcer por um "happy end".

Mas o melhor mesmo é não se preocupar com isso e deixar o barco correr solto. Isso não significa não tentar fazer com que tudo dê certo, ou seja, que busquemos o melhor, a felicidade, a alegria.

É como no futebol: a função do técnico é treinar o time para que faça mais gols do que leve. Assim na vida como no jogo.

E era exatamente aí que eu queria chegar: a quantidade de acaso que entra na criação da obra de arte. Já falei sobre isso, citando como exemplo o nascimento do poema.

Antes de escrevê-lo, o poeta tem diante de si a página em branco e, numa página em branco, qualquer coisa pode ser escrita.

Como o poema ainda não existe, o poeta não sabe o que vai escrever nem como começar a escrevê-lo. Diante da página em branco, ele se defronta com um número incalculável de probabilidades, mas, no momento em que escreve o primeiro verso, essa probabilidade --ou seja, o acaso-- se reduz.

E à medida que o poema vai se formando, o acaso vai sendo reduzido e só entra ali o que se ajustar ao que já está escrito, o que for necessário à sua realização.

Sim, porque, como na vida, o que realizamos e se mantém é o que se faz necessário. Isto é, trata-se de uma relação dialética entre o acaso e a necessidade.

No poema, como na vida: por acaso, você encontra alguém, mas essa pessoa só se tornará sua companheira se você e ela necessitarem um do outro.

Mas voltemos à poesia. Por esta ou aquela circunstância, ocorre ao poeta determinada palavra que faz nascer o verso inicial do poema. Se em vez desse verso surgisse outro, o poema não seria o mesmo.

Mas não importa, desde que, nessa dialética, resulte um poema capaz de encantar o leitor e, se o consegue, torna-se necessário a quem o lê, incorpora-se a sua vida.

O mesmo ocorre com a pintura: na tela em branco tudo pode surgir, dependendo das primeiras pinceladas que o pintor lance ali.

E, na pintura, ocorre algo que dificilmente ocorre no poema: o pintor pode, estando o quadro pronto, borrar tudo e começar de novo, como aconteceu com um retrato meu pintado por Iberê Camargo: quando pensava que, enfim, ele concluíra o retrato, borrava tudo e começava outra vez. O poeta dificilmente faz isso: se o fizer, terá de começar de novo, enquanto, na pintura, o apagado não se apaga.

Com um poema meu ocorreu um fato que o ajudará a entender o que digo. Escrevi-o pouco antes de partir para o exílio e, lá chegando, verifiquei que o havia perdido.

Inconformado, decidi escrevê-lo de novo e o fiz. Pois bem, ao voltar para casa, reencontrei numa gaveta o poema supostamente perdido. Li-o e fiquei surpreso, porque ele era diferente do que escrevi depois.

A conclusão inevitável é que, se não o tivesse dado por perdido, não o teria escrito outra vez e, assim, a primeira versão passaria por ser a única forma possível de escrevê-lo.

E, de fato, não era, porque o poema, como tudo o mais na vida, resulta de uma soma de fatores circunstanciais que se oferecem à opção do poeta no momento em que o escreve.

Seu núcleo é, certamente, algo essencial que o poeta quer expressar, mas, como ainda não o fez, busca fazê-lo com as ideias e palavras que, naquela situação, lhe ocorrem. Logo, se o momento for outro, o poema não será exatamente o mesmo.


MAURICIO STYCER

Agitação na madrugada

Novo jornalístico da Globo às 5h e apostas noturnas do SBT tentam estender a vida útil da televisão

A maioria dos leitores possivelmente não vai assistir, mas a estreia de um novo jornalístico, às 5h, nesta segunda-feira (1º), diz muito a respeito das transformações pelas quais a televisão aberta está passando no Brasil.

Até a última sexta-feira, a Globo começava o seu dia às 6h, com o "Globo Rural". Era seguido pelo "Bom Dia", às 6h30, emendando com o "Bom Dia Brasil", que terminava às 8h40.

Com "Hora Um", apresentado por Monalisa Perrone, a emissora altera drasticamente a sua grade matinal. Além do novo noticiário, com uma hora de duração, os outros dois jornalísticos ganham 30 minutos a mais cada um, criando uma faixa de programas noticiosos das 5h às 9h. O "Globo Rural" deixa de ir ao ar durante a semana.

A emissora justifica a mudança sob o argumento de que precisa "atender a um público que cada vez acorda mais cedo para trabalhar". É possível imaginar que há mais fatores em jogo.

Em primeiro lugar, mostra uma reação da Globo à concorrência. Tanto SBT quanto Record têm jornalísticos que começam às 6h. O "Notícias da Manhã", da emissora de Silvio Santos, muita vezes supera o "Globo Rural" em matéria de ibope.

E, ainda que o valor comercial do horário seja baixo, comparado a outros, parece claro, diante do movimento aparentemente irreversível de esvaziamento da audiência da TV aberta, que qualquer fiapo de oportunidade deve ser aproveitado.

O SBT tem mostrado isso em outra ponta antes pouco valorizada da grade --o início da madrugada. Depois de muito tempo em terceiro lugar na média geral de audiência, a emissora conseguiu superar a Record nos últimos meses, ajudada, em parte, por seu desempenho em horários tardios.

Principal novidade do SBT em 2014, o "The Noite", com Danilo Gentili, não apenas levantou o ibope do horário como atraiu interesse comercial.

A agitação na madrugada, tanto em uma ponta (o fim de noite) quanto em outra (o início da manhã), coloca pimenta em uma discussão interessante.

A Record defende que o filé-mignon da TV, para anunciantes, se concentra entre 7h e meia-noite. Assim, analisando os dados de audiência deste período, proclama ser a vice-líder do mercado.

O argumento ignora o fato de que a emissora exibe diariamente, da 1h15 às 6h, programação paga da Igreja Universal, o que derruba drasticamente a sua audiência no período.

No início de outubro, entrevistei José Roberto Maciel, vice-presidente-executivo do SBT. Exibindo números de audiência e de faturamento publicitário crescentes, ele disse ao UOL que ignorar a madrugada "cria uma falsa percepção no mercado".

Dados do Ibope para a Grande São Paulo (cada ponto equivale a 65 mil domicílios), em outubro, mostram que da 0h às 6h a Globo teve média de 5,1 pontos, seguida por SBT (3,7), Record (1,4) e Band (0,9).

Os investimentos para alcançar o público da madrugada e ampliar o mercado do horário são movimentos que, se submetidos à fria análise dos números, talvez não se justifiquem. Mas são mais um indicativo de que a TV aberta segue firme na luta contra os que enxergam o seu fim próximo.


mauriciostycer@uol.com.br
CLÓVIS ROSSI

Um começo bem medíocre

Nova equipe liga o piloto automático em vez de pensar nas ideias novas prometidas na campanha

Não poderia ser mais medíocre o primeiro ato do segundo mandato de Dilma Rousseff.

Primeiro porque ela própria nem se dignou a aparecer na apresentação em sociedade de sua nova equipe econômica.

Se eu não fosse inimigo número um de teorias conspiratórias, até diria que a indicação não foi dela.

Por isso, preferiu ficar em algum gabinete palaciano (ou em alguma masmorra, se me mantivesse na teoria conspiratória) em vez de endossar com a presença o novo duo (o terceiro, Alexandre Tombini, não é novo; continua na função de presidente do Banco Central).

É ridículo. Se a candidata dizia, durante a campanha, que a governo novo correspondem ideias novas, o primeiro ato teria que ser, obrigatoriamente, o enunciado das tais novas ideias, no pressuposto de que elas de fato existam.

Medíocre também foi o anúncio de que a prioridade do novo/velho governo será obter um superavit fiscal. Dou o devido desconto ao fato de que não cabia mesmo a Joaquim Levy/Nelson Barbosa/Tombini anunciar ideias novas que fossem além da economia.

Essa era a tarefa inalienável da presidente.

Ainda assim, há alguém aí que acredita que o Brasil terá todos os seus problemas resolvidos graças à prioridade concedida ao superavit fiscal anunciado?

Levy fez apenas o papel para o qual foi convocado, o de falar aos agentes de mercado, que, de resto, nem sequer foram eleitores de Dilma. Nem pensar em falar aos eleitores da própria presidente e ao público em geral, que não fazem parte do que os argentinos gostam de chamar de "patria financiera".

É a fala de um burocrata, quando a estagnação em que se encontra a pátria --e não apenas na economia, mas também em educação, saúde, mobilidade urbana, segurança pública, infraestrutura e um vasto etc.-- exige um estadista.

O novo governo mostrou-se refém dos detentores dos papéis da dívida pública. São eles que exigem um superavit fiscal que permita continuar tratando a dívida como algo sagrado que não se pode tocar.

Não, caro ortodoxo aí no sofá, não estou pregando o calote, embora ache que, se empresas e indivíduos podem renegociar suas dívidas, por que o governo não pode?

O que estou defendendo é que pelo menos se pense nas tais "ideias novas" do slogan de campanha.

Ideias, como, por exemplo, uma taxação excepcional sobre o patrimônio, cujo resultado seria dedicado a eliminar ou reduzir a dívida pública. É a proposta de Thomas Piketty, a nova estrela da economia mundial, em seu livro "O Capital no Século 21".

Manter o piloto automático (aumentar ou manter o superavit primário para pagar a dívida) é condenar o país à mediocridade por sabe-se lá quanto tempo.

Até a "Economist", a revista que pediu a cabeça de Guido Mantega e saudou, com muitas ressalvas, a escolha da nova equipe econômica, diz que "o crescimento [da economia] cairá a princípio e pode não se recuperar por um ano ou dois".


Você acha que o país está em condições de jogar fora nem que seja apenas um ano?
ELIO GASPARI

O Enem na rota do escândalo

O comissariado finge que não vê as fraudes que ocorrem no exame, esse é o caminho para fabricar uma encrenca

Quando Paulo Francis denunciou as petrorroubalheiras do tucanato, ganhou um processo. Quando o senador Tasso Jereissati denunciou as petrorroubalheiras do comissariado, o assunto foi varrido para baixo do tapete. Agora, diante da captura de 33 pessoas de uma quadrilha mineira que fraudava exames vestibulares e que neste ano vendeu para 15 ou 20 candidatos os gabaritos da prova do Enem, o Inep, responsável pela lisura do exame, informou o seguinte: "Qualquer pessoa que tenha utilizado métodos ilícitos para obter vantagens no Enem será sumariamente eliminada do exame".

Bingo. Seria mais divertido se o Inep dissesse o contrário. O problema está na outra ponta, nos 8,7 milhões de candidatos que se inscrevem para o exame e ficam sabendo que competem com gente que comprou a prova. O Enem tem uma tradição de vazamentos. Em 2009 os cadernos do exame foram furtados na gráfica, e o MEC suspendeu o exame. Em 2010 achou-se um vazamento de questões na Bahia. No ano seguinte, outro, no Ceará. Neste ano houve denúncias em Teresina e Fortaleza. Além delas, a Polícia Federal chegou à quadrilha mineira que teria vendido as provas a 15 pessoas de Mato Grosso. Coisa de profissionais com 20 anos de experiência e intercâmbio tecnológico com chineses. A turma operava com exames antes da criação do Enem.

As provas podem vazar de duas maneiras, pelo furto das questões antes da prova ou pela transmissão das respostas durante sua realização. Pelo primeiro método o comprador não corre riscos imediatos. Na fraude eletrônica, arrisca ser apanhado em flagrante. Desde 2010, quando acontecem os casos de vazamento de questões, o Inep argumenta que eles foram pontuais. Claro, o segredo do negócio está na sua pontualidade. A polícia americana levou dez anos para achar, por acaso, um falsário que imprimia notas de um dólar e as usava, com cuidado, só para pagar suas modestas despesas.

A onipotência do MEC diante dos vazamentos do Enem cria nos milhões de jovens que fazem o exame a sensação de que, se tivessem conhecido a pessoa certa, com a quantia certa, poderiam comprar a prova. Sabendo-se que a doutora Dilma já prometeu a realização de dois Enems a cada ano e não cumpriu, a credibilidade do governo é duvidosa. Nos Estados Unidos os jovens têm sete oportunidades anuais para fazer esse teste.

Comparar as fraudes do Enem com as petrorroubalheiras é um exagero do ponto de vista financeiro, mas, no efeito, o dano é maior. Não só porque atingem diretamente mais gente, mas porque o governo reage aos problemas de forma ofensiva, fazendo de conta que ele é da Polícia Federal. (As petrorroubalheiras também eram, afinal, tudo ia às maravilhas na empresa.) Se Paulo Francis e Tasso Jereissati tivessem ao menos sido ouvidos, a doutora Dilma não estaria na encrenca em que está. Ouvidos eles foram, mas achou-se que o caso poderia ser varrido para baixo do tapete.

AGONIA

Pelo andar da carruagem, o ministro Teori Zavascki só começará a tocar a lista dos congressistas enrolados nas roubalheiras da Petrobras em fevereiro, quando a nova legislatura estiver instalada.

Há dois sinais nesse sentido. Um, jurídico, baseia-se no fato de que muitos dos parlamentares não se reelegeram ou não disputaram a eleição. O foro especial do julgamento no Supremo Tribunal Federal só se aplica a deputados ou senadores no exercício do mandato.

O segundo é prosaico. O ministro Teori Zavascki, que está cuidando do caso, fez uma viagem cerimonial à Argélia. Se a bomba estivesse para explodir, ele não teria tal tempo livre.

TRIUNVIRATO

Os ministros da Fazenda (Joaquim Levy), Planejamento (Nelson Barbosa) e o presidente do Banco Central (Alexandre Tombini) estão sendo apresentados como um triunvirato que cuidará da política econômica do governo. Tomara que dê certo. Em Roma houve duas dessas experiências. Só um dos triúnviros, Lépido, conseguiu sair vivo depois de perderem as disputas em que se meteram. César e Otávio, que comeram os outros, continuam não acreditando em triunviratos.

CONFISSÃO

O "amigo Paulinho" disse que repassou R$ 1 milhão ao senador Humberto Costa, líder do PT na Casa. Se o caso chegar a um tribunal, essa afirmação, sem prova, é insatisfatória. Em junho, "Paulinho" depôs na CPI da Petrobras. Lá ele disse:

1) Que não fez nada, nunca soube de nada, e nunca se meteu com políticos.

2) Que tinha o equivalente a mais de R$ 1 milhão guardados em casa, como reserva para uma viagem.

O comissário Humberto Costa achou esse depoimento "satisfatório".

O ACIDENTAL NA QUEDA DO MURO DE BERLIM

Está na rede o livro "The Collapse" ("O colapso - A abertura acidental do Muro de Berlim"), da professora americana Mary Elise Sarotte. Historiadora, produziu um trabalho na qual há uma lição de História, de técnica jornalística e uma tese minuciosamente provada: em 1989 o Muro de Berlim caiu por completo acidente. O mundo comunista ruía, o regime da Alemanha Oriental entrara em colapso, o país estava tomado por milhões de manifestantes, mas na noite de 9 de novembro o Muro caiu sem que houvesse qualquer articulação. Foi uma coisa do povo, pelo povo, para o povo. Como disse uma das jovens que liderou os protestos, não foi a queda do Muro que deu a liberdade aos berlinenses, foram os berlinenses, livres, que derrubaram o Muro.

A espontaneidade do episódio é conhecida, mas Sarotte puxa todas as pontas, numa narrativa emocionante. O burocrata que anunciou (vagamente) que a passagem estava aberta não sabia do que estava falando. O guarda que abriu o primeiro portão fez isso porque ordens desconexas de superiores não lhe deixaram alternativa. (A outra seria atirar.) Os berlinenses foram para os portões sem qualquer maquinação.

A jovem química Angela Merkel saíra de uma sauna, atravessou para o lado ocidental, visitou uma tia e voltou para casa. O chanceler Helmut Kohl estava em Varsóvia e, quando um assessor, de Bonn, disse-lhe que os portões estavam abertos, achou que ele havia bebido. Um dos primeiros jovens a passar para o outro lado era um dissidente que tentou a sorte.


(A namorada achou que ele pirara e ficou em casa.) A plataforma da qual o jornalista Tom Brokaw, da NBC, mostrou ao vivo a dança sobre o Muro, estava lá por pura coincidência. Uma jovem dissidente que organizara as primeiras manifestações em Leipzig, fora para a cadeia e estava em Berlim, passou para o outro lado na primeira noite. Ela nascera em 1968.

sábado, 29 de novembro de 2014


30 de novembro de 2014 | N° 17999
FABRÍCIO CARPINEJAR

Menino da verdade

Tenho uma multidão de Pinóquios. Coleciono o boneco de madeira. É meu presente predileto. Os amigos já viajam com a encomenda em vista. Nunca é demais, arrumo espaço no teto, nas paredes, nas prateleiras. Jamais me decepciono. Sempre vibro quando recebo mais um modelo, ainda mais se é títere, com os fios embaralhados, para me sentir esperto em tirar o nó.

Na infância, eu apenas ganhava bolas de futebol. E tampouco me cansava. Cheguei ao cúmulo de contar com dez bolas no quarto – impossível era andar no escuro.

Adepto dos presentes monotemáticos, gosto de algo até me fartar. Eu transformo predileção em obsessão; preferência em mania.

Pelo menos ninguém precisa se preocupar em me adivinhar. Facilito o trabalho no Natal. Ainda faço cara de surpresa sendo um presente igual ao outro.

O que não considero justo é deduzir que sou mentiroso porque adoro Pinóquio. Ele não poderia ser sinônimo da trapaça e do engano. Faz travessias inimagináveis para honrar suas promessas e guardar o que é justo.

Pinóquio é o contrário da sua fama: é o esforço que todos passamos para alcançar a verdade. É a insistência da verdade. É a teimosia da verdade. O caminho não é linear. Não nascemos, somos fabricados. Nascer só acontece depois de amar. Temos que nos perder para valorizar o que encontramos.

Pinóquio é tradução de sofrimento infantil. É um exemplo de honestidade – ele erra para aprender, assimila a si mesmo –, o doce e o amargo – tropeçando com a mais pura das intenções.

É a demonstração da lealdade ao seu pai Geppetto e ao seu começo.

Pois crescer não é amadurecer. Tem gente que cresce e jamais amadurece. Pinóquio amadurece dentro do sofrimento.

Pinóquio sou eu.

Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não tive infância, busco restaurar uma tranquilidade que não conheci nos anos de alfabetização.

Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que confiava em grilos e amigos imaginários, que sempre acreditei no invisível para dividir minhas aflições.

Quando peço Pinóquio de presente, estou dizendo que sofri gozação dos colegas, que me chamaram de burro e asno, que troçaram da minha aparência, que me maltrataram com frequência, a ponto de me colocar de cabeça para baixo na janela da escola, que mesmo assim resisti e fui buscar meu coração no interior do oceano e da baleia.

Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não me escondi na fantasia, por mais que a realidade não me favorecesse, que aceitei quem sou, de madeira, frágil e imperfeito.

Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não desisti de ter esperança, não me escondi na depressão, não parei de caminhar. Avancei sem entender. Fui adiante aguardando a solução do meu mistério.

Não sei quantos Pinóquios necessito receber para acalmar o choro da criança que fui. Mas um dia, se Deus quiser, eu me torno um menino da verdade.




30 de novembro de 2014 | N° 17999
CLÁUDIA LAITANO

Lembrancinhas

O presente perfeito deveria saltar aos olhos como um grande pacote vermelho sobre um jardim coberto de neve inconfundível, inescapável. Todo nosso carinho condensado em um único objeto, que por acaso custaria exatamente o que podemos pagar e nem um centavo a mais. Nenhuma hesitação, fila ou mesmo uma data compulsória determinando o dia e o motivo da entrega. Um presente tão espontâneo e único quanto o afeto que inspirou a vontade de presentear.

Ao abrir o presente perfeito, o destinatário seria tomado de surpresa e incredulidade. Como alguém poderia ter adivinhado que era exatamente aquilo que povoava seus sonhos? Neste momento, os olhos de quem dá e os olhos de quem recebe se cruzariam em um breve e intenso instante-presente, cheio de cumplicidade e reconhecimento mútuo.

Mais do que agrado protocolar, sinal de gratidão ou simples obediência ao ritual das datas comemorativas que exigem trocas de gentilezas, o presente perfeito seria aquele que se dá e se recebe com alegria. Na maior parte das vezes, porém, escolher presentes é tão prazeroso quanto cumprir um compromisso obrigatório. Queremos nos livrar da tarefa como de uma reunião de condomínio ou de uma ida ao supermercado: com eficiência, mas no menor tempo possível.

Compra-se rápido, talvez, porque descarta-se mais rápido ainda. Adivinhar o que uma pessoa gostaria de ganhar tornou-se o menor dos problemas hoje em dia. Todo mundo deseja alguma coisa – ainda que não por muito tempo. Vivemos cercados de possibilidades de consumo, desejos insatisfeitos e frustrações difusas, habituados a preencher com objetos diferentes tipos de vazios. Nesse ambiente, torna-se cada vez mais difícil emprestar a algo que se pode comprar algum tipo de significado que não seja o de ser consumido e substituído logo em seguida.

Para transformar uma mera troca de mercadorias em uma verdadeira troca de presentes, é preciso um pequeno exercício de subversão. Dizer não às compras apressadas, burocráticas, obrigatórias, cansativas. Mas se for impossível escapar delas, que cada presente chegue ao destinatário acompanhado de um gesto ou palavra surpreendente, pessoal, intransferível.

Talvez nossas tias não estivessem apenas nos enrolando quando diziam, envergonhadas, com um pacotinho vermelho da Sloper na mão: “É só uma lembrancinha, viu?”.


Porque, no fim das contas, o presente perfeito, o que vale a pena dar e ganhar, é aquele que se transforma em lembrança assim que a gente o abre.

30 de novembro de 2014 | N° 17999
ANTONIO PRATA

Direitos do Homem (sensível)

Se você é um ogro machista e homofóbico, você tem representantes no Congresso, na imprensa, tem vários amigos no clube. Se você é LGBT, você tem representantes no Congresso, na imprensa, tem vários clubes de amigos(as). Agora, se você está no meio do caminho, se é apenas um homem sensível lutando para ver respeitados certos direitos básicos de sua pacata heterossexualidade, não tem político a quem pedir socorro e periga não emplacar sequer reclamação na seção de cartas do jornal.

Que “direitos básicos” são esses? Ora, muitos, que viemos perdendo aos poucos, da adolescência pra cá, conforme nos apaixonávamos por mulheres inteligentes, elegantes e criteriosas, diante das quais, sensíveis que somos, fomos fazendo concessões. Usar regata, por exemplo: não pode. Calçar tênis de corrida, socialmente: nem pensar. Sair por aí, poxa vida, de pochete: divórcio.

A menção à regata, ao tênis de corrida e à pochete pode dar a impressão de que as reivindicações deste desassistido grupo pendem para a ogrice. De que nosso sonho é deixarmos de ser homens sensíveis e irmos nos transformando, paulatinamente, no Homer Simpson. Não é por aí. Alguns dos nossos anseios têm a ver com o Homer: outros têm a ver com a Marge – ou com a Lisa? Por exemplo: andar de patins. Pronto, falei.

Eu sempre quis andar de patins, mas nunca tive coragem de assumir esse desejo. Vejo as pessoas deslizando pelas ciclofaixas como se tivessem asas nos pés, posso sentir o vento batendo em meu rosto, soprando a brasa da inveja e acendendo um pensamento: nossa, se eu fosse gay ou sueco, eu comprava um patins hoje mesmo. Acontece que não sou. Sou apenas um rapaz latino-americano, um pobre-diabo espremido entre o feminismo e o machismo, o hífen solitário no meio do Fla-Flu, com medo de ir de moletom e chinelo à padaria e pôr em risco o meu casamento, com medo de saracotear sobre rodinhas e pôr em dúvida a minha masculinidade.

Fôssemos uns machistões, não haveria problema. Teríamos casado com mulheres frágeis e tolas, que só nos diriam “amém, meu bem” e nossa vida conjugal seria um eterno domingo de Rider e latão: “Mais salaminho, pitucão?”, “Sim, pituquim”. Mas não, nos apaixonamos pelas bisnetas da Simone de Beauvoir: aí, queridão, conseguir emplacar um Chapecoense x Criciúma como programa pra noite de quarta, fica difícil.

Fôssemos uns seres evoluídos, superiores às infantilidades latinas e libertos das amarras do gênero, não ligaríamos para as opiniões dos nossos pares: compraríamos os patins (reais e simbólicos) e sairíamos por aí, todos pimpões. Mas não, nós queremos ser vistos como mui machos, centroavantes, pegadores: aí, realmente, patins, fica difícil.


Difícil, mas não impossível. A união é o primeiro passo. A divulgação dos nossos anseios, iniciada aqui, é o segundo. O terceiro é elegermos um representante. Ou, quem sabe, conquistar o apoio de um já eleito? Será que o Jean Wyllys não se interessaria em defender a causa? Em ouvir nossas reivindicações e incorporar HS, as iniciais de “homem sensível”, à sigla da diversidade sexual: LGBTHS? Prometemos ajudar na luta por um mundo livre, onde cada um ame quem quiser, escolha o gênero em que se sentir mais à vontade e possa até, um dia, – por que não? – sair por aí de pochete.

30 de novembro de 2014 | N° 17999
PAULO SANT’ANA

A vingança da vida

Não sei se o que ocorre comigo acontece também com meus leitores e leitoras: eu fui surpreendido pela minha idade, 75 anos, não percebi que ela estava se aproximando e até hoje, ilusoriamente, acredito que tenho ainda 35 anos.

É que nós só vemos defeitos nos outros, minimizando tudo de ruim que nos acontece, por um também defeito de nossa vaidade.

Uma colega minha dos tempos de faculdade se encontrou comigo e me disse que ela, esses dias, se encontrou com um antigo ex-namorado.

E que, depois de conversar com ele durante uns 30 minutos, saiu pensando o seguinte: “Ele agora é careca e gordo. Não perdi nada”.

Na verdade, o careca e gordo saiu pensando o mesmo de minha colega, ele não perdeu nada.

Ou seja, velhos e gordos são os outros, por isso é que escrevi no início desta coluna que não nos damos conta de nossos defeitos e desvantagens.

Um colega meu das minhas proximidades aqui no jornal me contou que, 25 anos atrás, se mudou para a Tristeza, nosso querido arrabalde. E que, ao chegar à nova casa, disse à sua mulher: “Que bom que mora na casa do lado um casal de velhinhos”.

Pois aconteceu a vingança da vida. Esses dias, mudou-se para a casa do lado de onde mora meu colega um casal de jovens, e o rapaz deve ter dito para a esposa jovem o seguinte sobre o meu colega que se mudou para o local há 25 anos: “Que bom, querida, que mora ao nosso lado um casal de velhinhos”.

Aqui se faz e aqui se paga.

Paulo Brossard de Souza Pinto, colega de colunismo aqui de ZH, recebeu, na quarta-feira passada, das mãos do ministro Gilmar Mendes, uma comenda do Instituto Brasiliense de Direito Público, na qual se exalta a importância de Brossard no Direito Constitucional brasileiro.


Que merecida e adequada homenagem! E nós nem tínhamos nos dado conta por aqui. É a tal coisa, santo de casa não faz milagre.

30 de novembro de 2014 | N° 17999
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

Os negros da América

Vi algumas das manifestações dos americanos contra a decisão do Grande Júri de Missouri de não processar o policial que matou o rapaz negro em Ferguson. Mais de mil negros e brancos foram às ruas em protesto, aqui em Boston, e outros milhares fizeram o mesmo em dezenas de cidades do Atlântico ao Pacífico. Os Estados Unidos são uma federação de fato e de direito, mas são também uma nação única e compacta em determinadas discussões.

Essa cidadezinha, Ferguson, está atarraxada quase no centro dos Estados Unidos, à margem do Mississippi, o grande rio que corta o país de Norte a Sul, que os índios chamavam de o Pai das Águas. É um lugar pequeno, de pouco mais de 20 mil habitantes, mas que mobilizou todo o país.

O que me leva a pensar: Brasil e Estados Unidos são dois irmãos gêmeos completamente diferentes. Vou me ater à questão dos negros. Brasil e Estados Unidos, dois gigantes territoriais da América, receberam escravos africanos e os mantiveram em cativeiro por cerca de três séculos. Isso marcou terrivelmente os dois países, porque criou uma classe inferior de cidadãos. Os descendentes dos africanos ainda lutam para se libertar de tudo o que significou a escravidão ao norte e ao sul do continente.

Mas aí começam as sutis e profundas diferenças. Mora na filosofia, como diria Caetano. Os ingleses fundaram os Estados Unidos em nome da liberdade. Manter homens sob escravidão era contraditório. E por que os africanos eram escravizados? Porque eram negros, apenas por isso. Os 15 Estados do Sul que queriam continuar com a sua “instituição peculiar”, como a chamavam, justificavam-na com uma série de teorias racistas que asseguravam que negros eram inferiores aos brancos. Os negros seriam menos humanos, seriam mais animais.

Não se sustentou, é claro. A falta de base filosófica, aliada, é óbvio, a toda a conjuntura econômica, que colocava em oposição o Norte industrializado e livre ao Sul agrário e escravagista, levou à Guerra de Secessão de 1860. Essa foi talvez a maior guerra civil de todos os tempos: mais de 620 mil homens morreram.

O sangue de 620 mil homens lavou grande parte do pecado americano pela escravidão. Não há nada de transcendental nisso. O que estou dizendo é que a Guerra Civil expôs o Mal. É como o nazismo na Alemanha. O nazismo acabou há 70 anos, mas os alemães purgam esse pecado todos os dias, desde aquela época, e o fazem através de filmes, livros, debates, monumentos e museus que lembram o Holocausto.

Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! A Bíblia diz que, se não há arrependimento, não há perdão. E aí, mais uma vez, não estou sendo transcendental, não estou sendo religioso, estou sendo racional. Mora na filosofia: essa é uma sentença sábia da Bíblia, porque, para haver arrependimento, é preciso haver contrição e, para haver contrição, é preciso haver dor.

A escravidão causou dor aos Estados Unidos. Os americanos sangraram e sofreram. Isso fez com que a luta dos negros se tornasse nacional e, finalmente, constitucional, com a conquista dos direitos civis, nos anos 60 do século passado.

A escravidão nunca doeu no Brasil. Nunca.

Há mais descendentes de escravos no Brasil do que nos Estados Unidos, mas talvez haja mais negros nos Estados Unidos do que no Brasil. Nos Estados Unidos, os negros são 12% da população. No Brasil, quantos seriam “100% negros”, como está escrito naquelas camisetas de praia? É uma parcela mínima da população. No Brasil, nos misturamos. Alegremente nos misturamos. Quantos serão os decendentes de escravos? Uns 40%? Metade da população? Muito mais do que isso? Impossível saber. Somos todos um pouco negros no Brasil. E também todos um pouco brancos e todos um pouco de tudo.

Os descendentes dos escravos, no Brasil, não são identificados pela cor da pele. Porque há, no Brasil, os Friedenreich, filhos de imigrantes alemães com a lavadeira negra, meninos bons de bola, com olhos azuis e carapinha no cabelo. Há, no Brasil, mulatos disfarçados como Machado de Assis, brancos que queriam ser negros, como Vinícius, os olhos verdes da mulata, o cabelo loiro do sarará.

Nós somos mestiços. Nós somos todos mais ou menos.

Entre nós, os descendentes dos escravos são os pobres.

Há igualdade entre os pobres no Brasil: todos são, democraticamente, desgraçados. Pobres loiros, pobre pretos, pobres pardos, pobres são pobres e ponto.

Assim, a questão racial ficou diluída na pobreza comum. De quem é a culpa pelos mais de três séculos de escravidão? De ninguém? Ou de todos?

Há racismo no Brasil, é evidente que há, em toda parte do mundo há racismo e aversão às diferenças, só que, no Brasil, a pobreza não tem cor. Nos Estados Unidos tem, e é negra.


Americanos e brasileiros, pobres e ricos, negros e brancos, somos todos seres humanos. O Brasil nunca discutiu o que fez com os seres humanos negros na maior parte da sua história. O Brasil nunca admitiu seu crime. Nunca sofreu. Nunca sentiu culpa. E a culpa é nossa. Nossa máxima culpa?

30 de novembro de 2014 | N° 17999
L. F. VERISSIMO

Improvisos

Mike Nichols e Elaine May formavam um par cômico. Os dois em início de carreira. Parte do número deles consistia em pedir que alguém da plateia sugerisse um tema sobre o qual improvisariam. E, mais, que o público também sugerisse o tom e o estilo do improviso. Por exemplo: a queda do Império Romano contada como uma opereta da Belle Époque, ou Guerra e Paz numa versão gospel.

Os dois inventavam, na hora, cenas, diálogos e letras de acordo com os pedidos, e nunca eram menos que brilhantes. Quando o duo se desfez, Mike Nichols foi ser um diretor de teatro e cinema famoso, Elaine May uma roteirista, diretora e atriz não tão famosa. Nichols morreu na semana passada. May, me informa o Google, ainda está viva.

Imaginei como eles atenderiam a um pedido para contar o que se passa no Brasil, hoje, no estilo de um filme noir americano dos anos 40.

– O sujo do Al (“Maleta”) Youssef está contando tudo. Dando nomes, cifras, tudo. Eles chamam de delação premiada. Eu chamo de canalhice.

– Precisamos matar esse canário.

– Difícil. Ele está na gaiola. – Gaiola? – Prisão.

– Ah. Não tem ninguém da nossa gangue lá dentro que possa envenená-lo?

– Você está brincando? Toda a nossa gangue está lá dentro!

Dilma indecisa quanto à formação do seu ministério, num solilóquio shakespeariano:

“Ser ou não ser de esquerda, quando a direita me chama como um abismo...

Ser autêntica e atrair a ira de um Congresso rebelde e de um mercado que treme como num sismo?

Ou esquecer ideais e aceitar os conselhos de alguém que não sou eu

E escolher o Levy e a Katia Abreu?”

A falta d’água, em São Paulo, recontada como uma parábola bíblica:

“E Deus apareceu para Alckmin e disse: ‘Suas preces foram ouvidas, choverá 40 dias’. E Alckmin disse: ‘Sério?’. E Deus disse: ‘Palavra de Deus’. E instruiu: ‘Construa uma arca, pois a chuva trará um grande dilúvio que cobrirá São Paulo, e só os que estiverem na arca sobreviverão’. E Alckmin disse: ‘Senhor, obrigado pela boa intenção, mas...’.

E ponderou: em vez de fazer chover por 40 dias e submergir São Paulo, por que Deus não regulava a quantidade do que cairia sobre o Estado, como sempre fizera, e mandasse apenas o bastante para encher os reservatórios? Não era preciso nada espetacular como 40 dias de chuva, ou pouco prático como uma arca em que coubesse todo mundo.

Ou quase todo mundo. Sim, porque haveria a questão política: quem incluir e quem excluir da arca? Quem salvar do dilúvio para reconstruir São Paulo quando as águas baixassem? Não poderia ser só gente do PSDB, por mais que isso fosse o recomendável. Outra coisa: só seria possível construir a arca com auxílio do governo federal. Deus teria que aparecer para a Dilma, também, e convencê-la a ajudar. Depois, haveria a questão de dividir os créditos pela obra. O PT fatalmente iria querer ser reconhecido. E outra coisa... Mas Deus já estava se afastando, dizendo ‘Esquece, esquece...’


Alckmin ainda gritou: ‘Quem sabe 10 dias de chuva? Quinze?’. Mas Deus já tinha desaparecido”.
WALCYR CARRASCO
28/11/2014 21h20 - Atualizado em 28/11/2014 21h26

Preço fixo

A lei que proíbe descontos acima de 5% nos livros deu certo na Europa. É uma proteção válida

Estive na Feira de Frankfurt neste ano, onde dei uma palestra sobre a criação do personagem. É a maior feira de livros do mundo. Ser convidado pela própria direção do evento lustrou meu ego. Não imaginava um espaço tão grande dedicado somente a livros. Eram 8.000 metros quadrados, divididos em vários pavilhões, por nacionalidades. Na noite anterior mal dormi, por ser minha primeira palestra em inglês. Tenho um sotaque pavoroso. Depois, concluí: numa feira com tantas nacionalidades presentes, quem não tem? Para meu alívio, ganhei aplausos. Foi bom. Quando a gente reflete sobre um tema, aprende um pouco mais, não é?

Me surpreendeu conviver com um vibrante mercado editorial. Conheci mais. Soube que Alemanha, França, Inglaterra, Espanha têm a lei do preço fixo para livros. Nas promoções, os descontos só podem chegar a 5%. Pode parecer errado. Quem não quer desconto? O problema é maior – e merece atenção.

Desde sempre, livrarias e sites, como o Submarino, vendem livros com descontos em promoções especiais. A entrada da Amazon no país aumentou a política de descontos.

Para ganhar mercado, a Amazon chega a vender livros por um valor mais baixo do que compra das editoras. Exatamente. Perde dinheiro na venda. Um dos últimos casos foi Guga, um brasileiro.  Na Amazon, saía menos que o preço da editora. A chegada da Amazon teve vários lances de bastidores. Inicialmente, exigiam 70% das editoras. Para elas, sobraria 30%. Como o autor costuma ganhar de 10% a 15% do preço de capa, houve imensas dificuldades de negociação. Ficaram, até onde sei, nos 50% de praxe. Aí veio a outra questão: a estratégia para dominar o mercado com preços mais baixos.

Do ponto de vista de quem compra, ótimo. Inicialmente. Essa política comercial leva a um domínio absoluto. Sou cliente da Amazon americana há anos e sei quanto é competente. Oferece livros dentro de meus interesses de leitura. Os pedidos chegam rapidamente. Os sites, mesmo o nacional, funcionam agilmente. A Amazon produziu uma quebradeira entre as livrarias. Imaginem o que acontecerá no Brasil, principalmente com as pequenas.

Quando meu livro Juntos para sempre saiu pela Editora Arqueiro, seguidores do Twitter me escreviam – não havia nenhum exemplar em sua cidade. A distribuição da Arqueiro é das melhores. Mas as pequenas livrarias dependem de um trabalho de formiguinha de distribuidores regionais.

 Portanto, se a Amazon perder dinheiro para ganhar mercado, ganhará o domínio absoluto da venda de livros no Brasil. Pelo menos é o que pensam os editores. Eles já se movimentam. Recentemente, o Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) e a Associação Nacional de Livrarias (ANL) organizaram um seminário sobre o tema. Paralelamente, algumas editoras pararam de vender à Amazon.

– Se continuar assim, em pouco tempo dependeremos só dela. A Amazon ditará as regras – diz um editor.

O catálogo Avon, um dos maiores canais de venda de livros do país, também pratica preços abaixo do mercado. Mas a Avon é uma empresa de cosméticos, escolhe somente alguns títulos para promover.

O maior comprador de livros no país é o governo. Por meio de seu programa de incentivo à leitura, o PNLL, compra e distribui não só didáticos, mas literatura, a escolas, bibliotecas. Obviamente, uma compra governamental, pelo volume, ganha descontos especiais. Digo por mim: certa vez vendi 2 milhões de exemplares de um único título, Os miseráveis, traduzido e adaptado por mim. A editora fez um preço superespecial, e todos saímos sorrindo.

A luta pela lei do preço fixo é uma tentativa para conter a Amazon. Há ressalvas: o preço só valeria por alguns meses, no calor do lançamento; compras governamentais ficariam de fora.

A lei deu certo nos países europeus, com uma válida proteção do mercado. É preciso ter agilidade para implantá-la. Poucos editores confessam, mas são obrigados, ao adquirir os direitos de um best-seller de calibre, a comprar um pacote de títulos sem expressão, a traduzi-los e a lançá-los. Isso tira espaço de autores nacionais. Gráficas também estão quebrando. Há editoras que imprimem seus livros na China. Não entendo como imprimir na China e transportar o livro para cá seja mais barato. Mas é. A luta pelo preço fixo pode parecer contrária ao leitor. Mas só num primeiro momento. Seu resultado será a defesa de nosso mercado cultural.



29 de novembro de 2014 | N° 17998
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

FAZER POR FAZER? MELHOR NÃO

Os ingênuos podem supor que a alegria que sentimos ao fazer o que fazemos depende da importância que os outros dão ao que é feito. Felizmente, não é assim, porque senão, aos que fazem as tarefas chamadas menores, só restaria a frustrante sensação da insignificância. E com ela, o sentimento de inferioridade.

Como o percentual de façanhas extraordinárias é muitíssimo pequeno, parece lógico concluir que a fonte geradora de alegria pessoal depende mesmo é da qualidade do que fazemos, seja lá o que façamos.

Quando se trabalha em equipe, um conceito básico é que as tarefas de execução mais simples, aquelas que dispensam grande qualificação técnica e para as quais se consegue habilitação mais rápida, essas nunca poderão ser rotuladas como secundárias, sob pena de ruir todo o sistema. O exemplo que considero perfeito desta situação é o da faxineira do bloco cirúrgico. Quem definiria sua atividade como secundária, se uma infecção, decorrente de má assepsia, pode empurrar todo o brilhantismo técnico da cirurgia para o ralo da complicação, às vezes, irreparável?

Aprendi, em funções de chefia, que a construção de um grupo diferenciado principia com a valorização da parcela de cada um, não apenas porque o reconhecimento profissional é um ingrediente indispensável na construção da autoestima individual, mas, principalmente, porque dele depende a espontaneidade do comprometimento.

Os simplificadores atribuem aos baixos salários todo o problema do desempenho medíocre, mas é um equívoco ignorar que não há estímulo econômico que coloque encanto no que se faça sem prazer. O mau humor de alguns profissionais bem remunerados e a tocante entrega afetiva de operários que mal ganham para a sobrevivência são a prova de que nos alimentamos também de uma energia maior que nos impulsiona e gratifica. E que, sem ela, nos transformamos em colecionadores de ressentimentos.

Era um enterro de uma pessoa querida e fiquei impressionado com o entusiasmo com que o coveiro rebocava os tijolos para o fechamento do sepulcro. Havia uma irretocável precisão de gestos quando cortava os fragmentos dos tijolos para que coubessem no espaço entre as peças maiores e, por fim, a colocação da pasta de cimento que preenchia todos os vãos, com notável destreza. Cheguei mais perto para ler o nome no crachá e percebi que o Valdemar adorava o que fazia e só não assobiava de contentamento em respeito à família que voltara a soluçar à medida que a colocação da lápide representava a materialização do adeus.

Quando começou a debandada, senti a necessidade de agradecer ao Valdemar. Naquele “de nada!” meio sussurrado havia uma dose de surpresa e incompreensão, mas apesar da vontade de abraçá-lo, não senti ânimo para explicar que vê-lo trabalhar com tanto gosto tinha sido a única coisa memorável de um dia muito triste. Sem ter ideia de qual seja o salário de um coveiro, preferi arquivar aquele desempenho como modelo de adaptação a uma tarefa difícil e até imaginei-o festejando em segredo: “Vocês podem não entender, mas eu duvido que alguém lacre uma sepultura como eu!”.


A propósito disso, lembrei-me de uma passagem extraordinária, que descreve um diálogo que presumivelmente ocorreu entre Madre Tereza, que cuidava de leprosos, e um empresário texano. O milionário, vendo-a banhar carinhosamente um daqueles pobres pacientes, disse: “Irmã, eu não faria este trabalho nem por um milhão de dólares”. E ela respondeu: “Eu também não, meu filho”.

29 de novembro de 2014 | N° 17998
NÍLSON SOUZA

DESAGRAVO

De vez em quando, me ponho a pensar em como reagiriam personagens ilustres que já partiram se voltassem e vissem o que ocorre nos logradouros públicos que receberam seus nomes. Em Porto Alegre, certamente haveria muita perplexidade.

Imagino, por exemplo, o general Lima e Silva dando uma banda pela Cidade Baixa e passando pelo local onde morava na antiga Rua da Olaria, que agora leva o seu nome. Ou o padre Chagas conhecendo a madrugada fervente da rua que o homenageia no Moinhos de Vento.

Mas o personagem que mais me comove neste confronto imaginário entre a memória e a realidade é Mario Quintana. Na zona norte da Capital, batizaram um bairro com o nome do poeta – e não passa semana sem que a brandura do alegretense que suspirava fumaça e almoçava quindins seja associada, no noticiário policial, aos crimes lá cometidos. Nesta semana mesmo, ao ler sobre o assassinato de um jovem naqueles tristes quintanares, surtei um plágio:

Olho o mapa da cidade

Há um bairro com meu nome

Nele, um corpo estendido

(É nem que fosse o meu corpo)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de chão batido

Onde a miséria habita

Há tanta esquina maldita

Tanta vingança nas paredes

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua assombrada)

Que nem em pesadelos verei...)

Quando eu voltar, um dia desses,

Poeira ou sombra animada

No escuro da madrugada,

Serei um pouco fantasma

Invisível, silencioso

Que fará tudo mudar

Com a força do olhar

E um apelo clamoroso

Se querem me homenagear

(Neste precário lugar)


Melhorem a vida do povo