quarta-feira, 31 de março de 2021



31 DE MARÇO DE 2021
JEFERSON TENÓRIO

Tornar-se leitor como ato político e transgressor

Ler é mais importante do que escrever. Embora a escrita seja um modo de interferir na realidade, a leitura organiza o mundo dentro de nós. Desacomoda. Desestabiliza as certezas e põe o nosso modo de existir em xeque. A leitura te dá ferramentas para sair da caverna de Platão e enxergar a vida com mais lucidez. No entanto, o verdadeiro leitor é aquele que volta para a caverna e pensa sobre o escuro.

É em tempos sombrios que a leitura nos ajuda a entender esse pileque homérico no mundo. O verdadeiro leitor, munido de Shakespeare a Carolina Maria de Jesus, é capaz de enxergar de olhos fechados ou mesmo que de olhos abertos tenha pela frente apenas uma paisagem na neblina.

Eu guardo palavras e frases dentro mim, porque este foi meu modo que encontrei para viver. Quem tem livros em casa tem o universo. Mas quem carrega uma biblioteca dentro de si nunca está só. Num país em que desde a infância te dizem que você não pode ser leitor, porque há coisas mais urgentes, ler é um ato de transgressão e rebeldia.

No entanto, a leitura não evita equívocos políticos, porque conheço uma pá de gente culta, preconceituosa e insensível capaz eleger um presidente genocida. Capaz de concordar com práticas de extermínio em massa. Ainda assim, acredito na leitura, porque ali existe a possibilidade da mudança, a possibilidade de não sermos tratados como rebanhos, nem como gado indo para o abate.

Tornei-me leitor por teimosia. Tornei-me leitor para discordar da vida. Fui um leitor tardio, pois a pobreza imperativa me dizia a todo o momento que eu não tinha o direito ao livro, porque, antes dele, é preciso comer, é preciso ter onde morar, é preciso se esquivar da violência e do racismo. Tornar-me leitor foi o ato mais transgressor da minha vida.

Mas vejam bem, não foram os livros que me salvaram. O que me salvou foi o que fiz com minhas leituras. Mas posso dizer que a legião de livros que hoje habitam a minha casa me colocou de pé e me trouxe até aqui. E foram esses mesmos livros que sempre disseram: continue, Tenório, continue.

JEFERSON TENÓRIO

Lula, Moro, Bolsonaro, Gilmar, toda essa confusão

É difícil pensar no Brasil, porque por aqui é tudo muito confuso. O homem que mais odeia Sergio Moro e que mais trabalhou para sua desmoralização não é nenhum dos que ele condenou. É Gilmar Mendes, o mesmo que, em 2016, manteve as investigações sobre Lula com Sergio Moro. Mas Gilmar Mendes, que chorou ao elogiar a defesa de Lula, foi quem suspendeu a nomeação de Lula como ministro de Dilma e quem chamou o governo do PT de cleptocracia.

No entanto, não foi Gilmar Mendes quem mais mal fez a Sergio Moro: foi Bolsonaro, que, em 2018, prestou continência a Moro no aeroporto de Brasília. Na época, Bolsonaro era candidato e tentava angariar popularidade com a popularidade de Moro e da Lava-Jato. Eleito, acabou com a Lava-Jato e quase acabou com Moro.

Ao desmontar a Lava-Jato, Bolsonaro ajudou Lula, que, no discurso, é seu maior adversário. No discurso, porque, na verdade, a eventual presença de Lula na eleição é o maior trunfo de Bolsonaro.

Lula, portanto, não é o grande adversário de Bolsonaro. Ao contrário, é quase um aliado. O grande adversário de Bolsonaro é o bolsonarismo. Porque não foi Bolsonaro quem criou o bolsonarismo, foi o bolsonarismo que criou Bolsonaro.

O bolsonarismo até apresenta um conjunto de ideias, que, embora sejam praticamente todas péssimas, formam um sistema de pensamento - grotesco, sim, atrasado, sim, mas é um sistema. Já Bolsonaro não é capaz de formular ideia alguma, além de armar a população, se é que isso pode ser classificado de ideia.

Não fosse pelo bolsonarismo, que exige sempre posturas agressivas, grosseiras e ofensivas ao senso comum, talvez Bolsonaro se comportasse como uma, digamos, "pessoa normal". No trato da pandemia, por exemplo, ele poderia simplesmente ter seguido a direção para qual apontavam seus dois primeiros ministros da Saúde, que eram médicos, em vez de ficar receitando cloroquina, ele que não entende patavinas de medicina. Se Bolsonaro tivesse ficado quieto, se tivesse deixado seu ministro agir, hoje estaria consagrado. Mas o bolsonarismo fazia com que ele se manifestasse, e cada vez que ele se manifesta é uma tragédia. Ou uma comédia.

Enquanto isso, juízes e promotores da Lava-Jato estão prestes a ser condenados e aqueles que eles condenaram estão prestes a ser absolvidos, o que significa que tudo aquilo que se sabe que aconteceu, os bilhões roubados, alguns deles até devolvidos, as contas escusas no Exterior, os subornos, as tramoias, os malfeitos, a corrupção caudalosa, tudo aquilo que foi revelado sobejamente durante seis anos se tornará subalterno ao presuntivo método irregular de investigação.

Tudo muito confuso. Melhor não pensar no Brasil.

DAVID COIMBRA 


31 DE MARÇO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

A BUSCA DE CONSENSOS

É notório que uma das principais dificuldades para manejar a crise da covid-19 no país é a falta de alinhamento entre o governo federal e os demais entes federados. Se esta harmonia parece ser difícil de ser obtida em nível nacional, seria de se esperar que ao menos no Rio Grande do Sul fosse possível alcançá-la, para o bem dos gaúchos. Discordâncias eventuais são legítimas e até esperadas, mas o ideal sempre em episódios traumáticos como o atual seria uma convergência mínima entre as principais autoridades, para que não sejam passadas mensagens conflitantes à população.

É bem-vinda, portanto, a sinalização de trégua entre o governador Eduardo Leite e o prefeito de Porto Alegre, de Sebastião Melo, pelo menos no tema da pandemia. Espera-se que o apaziguamento, selado ontem pela manhã em um café da manhã no Palácio Piratini, com a presença ainda do presidente da Assembleia, Gabriel Souza, e do chefe da Casa Civil do Estado, Artur Lemos, seja permanente e produza resultados práticos. Ou seja, que a bandeira branca permita confluência de ações entre Estado e administração municipal da Capital, uma unidade que também deveria se repetir em relação a todas as demais prefeituras do Rio Grande do Sul e o Executivo estadual.

Tensionamentos e divergências são normais em uma democracia. Mas, quando à frente está um insidioso inimigo comum e o momento é de uma gravidade inédita, o grande dever dos gestores públicos responsáveis é buscar consensos e pontos em comum, objetivando o bem-estar da população e, ao mesmo tempo, a preservação do tecido econômico. Não há, como ainda pregam algumas vozes isoladas, dicotomia entre saúde e economia. Encontrar as formas mais adequadas de preservar ambas, com o melhor resultado para os gaúchos de todos os municípios do Rio Grande do Sul, é uma tarefa que deveria unir. Jamais separar.

Leite e Melo, como democratas, têm de, como fizeram ontem, dialogar e procurar, com bom senso, as melhores medidas ao alcance. O indicado será que, a partir de agora, por exemplo, arestas sejam aparadas na conversa franca, sem que seja necessário buscar o Judiciário, o que sempre desgasta ainda mais as relações. Melo assume no início de abril a presidência do Consórcio dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) e, com isso, ganha uma representatividade ainda maior, da região mais populosa e densamente povoada do Rio Grande do Sul. Mais do que desejável, é essencial que partam para um bom entendimento. 

É positivo o gesto de Leite de convidá-lo para participar das reuniões do Gabinete de Crise do Piratini. Permitirá ao prefeito da Capital ter uma visão mais ampla do Estado e, ao mesmo tempo, opinar. A seriedade da crise sanitária, que gera centenas de mortes todos os dias no Estado, exige que toda a energia seja direcionada para deter o vírus e suas consequências sinistras na saúde, nos negócios e nos empregos, e não para disputas improdutivas.



31 DE MARÇO DE 2021
REDUÇÃO DE CUSTOS

BC autoriza transferências bancárias pelo WhatsApp

O Banco Central autorizou, ontem, o funcionamento de recursos que permitem pagamentos pelo aplicativo de mensagens WhatsApp. O Facebook, dono do app, foi aprovado como um "iniciador de pagamentos", de maneira que os usuários do serviço poderão transferir recursos entre si.

Em nota, o BC informou ainda que foram concedidas autorizações para dois arranjos classificados como abertos de transferência, de depósito e pré-pago, domésticos, instituídos pela Visa e pela Mastercard.

"Esses arranjos e instituição de pagamentos têm relação com a implementação do programa de pagamentos vinculado ao serviço de mensagens instantâneas do WhatsApp (Programa Facebook Pay). As autorizações permitem que ele seja utilizado para realizar a transferência de recursos entre seus usuários", diz o BC em nota divulgada ontem à noite.

O BC esclarece que as autorizações não incluem os pleitos da Visa e Mastercard para funcionamento dos arranjos de compra vinculados ao Programa Facebook Pay, que seguem em análise.

"O BC acredita que as autorizações concedidas poderão abrir novas perspectivas de redução de custos para os usuários de serviços de pagamentos", acrescenta.

Satisfação

Em nota enviada à imprensa, o WhatsApp disse que recebe com satisfação a aprovação do BC. "Compartilharemos mais informações assim que a função de pagamentos estiver disponível no WhatsApp", disse a empresa.

O WhatsApp lançou em 15 junho do ano passado um serviço de envio e recebimento de dinheiro no Brasil, mas uma semana depois teve o serviço suspenso pelo BC, sob a justificativa de que era preciso avaliar questões de competição e privacidade. Desde então, o BC vinha analisando o pleito e as regras para funcionamento.


31 DE MARÇO DE 2021
CRISE EM BRASÍLIA

Em reunião tensa, chefes das Forças Armadas são demitidos

Grupo planejava entregar os cargos em razão de ingerências políticas de Bolsonaro e novo ministro antecipou as exonerações

Contrariada por não concordar com a politização dos militares, toda a cúpula das Forças Armadas foi substituída pelo governo Jair Bolsonaro. Os chefes do Exército (Edson Leal Pujol), da Marinha (Ilques Barbosa) e da Aeronáutica (Moretti Bermudez) foram demitidos após reunião no Ministério da Defesa, ontem pela manhã, com o novo titular da pasta, general Walter Braga Netto.

O encontro foi marcado por frases duras e tapas na mesa, segundo apuração do jornal Estadão. Pujol entrou paramentado, com bota de montaria, culote e carregando bastão de comandante, enquanto Ilques e Bermudez usavam fardas sociais. Braga Netto chegou com a ordem de dispensá-los. Abriu a reunião com esse comunicado. Justificou que as mudanças eram para "realinhamento" das Forças Armadas com Bolsonaro e a manutenção do apoio ao governo.

Pujol, Bermudez e Barbosa já planejavam entregar os cargos em solidariedade à demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa, no dia anterior, mas os chefes da Marinha e da Aeronáutica consideravam até ficar a depender do teor da conversa. Braga Netto, porém, não deu tempo para o anúncio de qualquer decisão. O novo titular da Defesa já tinha as demissões prontas.

A portas fechadas houve várias contestações sobre a forma da dispensa. Um dos oficiais cobrou duramente Braga Netto ao lembrar que as Forças Armadas são instituições de Estado, e não de governo. Em recentes manifestações, Bolsonaro tem se referido ao Exército como "meu Exército", contrariando a caserna.

O Estadão apurou que o mais exaltado era o almirante Ilques Barbosa. Conhecido por colegas por ser um cavalheiro, muito educado, Ilques perdeu a paciência e elevou a voz. Quando o tom subiu e o clima ficou ainda mais tenso, os ajudantes de ordens foram saindo "à francesa" do gabinete.

Os oficiais já haviam combinado no dia anterior, após a demissão de Azevedo, em reunião entre eles, que não dariam nenhum passo que pudesse violar a Constituição ou caracterizar interferência em medidas tomadas por governos estaduais na pandemia. Também deixaram claro que jamais concordariam com ingerência no Legislativo e no Judiciário.

Divergências

Na lista das seis mudanças ministeriais promovidas por Bolsonaro na segunda-feira, a que mais surpreendeu foi justamente a de Azevedo e Silva, definido por seus pares como competente e sensato. Azevedo e Silva foi assessor especial do ministro Dias Toffoli quando o magistrado presidia o Supremo Tribunal Federal (STF). O encontro do então ministro com Bolsonaro, na segunda-feira, durou três minutos. O tom foi seco.

- Preciso do seu cargo - disse o presidente a Azevedo e Silva.

Auxiliares do general afirmam que ele já desconfiava estar na berlinda por ter sido contrário à tentativa de Bolsonaro de substituir Pujol.

O chefe do Exército e Bolsonaro já vinham se estranhando há tempo porque o comandante sempre resistiu a ofensivas do presidente.

Em novembro de 2020, Pujol declarou que os militares não querem "fazer parte" da política. A afirmação ocorreu dois dias após Bolsonaro dizer que, "quando acaba a saliva, tem de ter pólvora", ao se referir à possibilidade de o país receber sanções por conta do desmatamento na Amazônia.

- Não queremos fazer parte da política governamental ou política do Congresso Nacional e muito menos queremos que a política entre no nosso quartel - disse Pujol em evento online.

Um dia depois, o general do Exército voltou ao tema. Em um seminário, ressaltou:

- Não somos instituição de governo, não temos partido. As Forças Armadas cuidam do país, da nação. Elas são instituições de Estado, permanentes. Não mudamos a cada quatro anos.

Após essas declarações, Pujol, Ilques Barbosa e Moretti Bermudez assinaram nota conjunta em que afirmavam que a separação entre políticas e as forças militares é princípio constitucional.

O maior foco de críticas a Bolsonaro nas Forças Armadas, porém, está na Marinha. Integrantes da força sempre classificaram como inadmissíveis a postura do presidente e os erros cometidos por ele na pandemia - incentivando aglomerações e desestimulando o uso de máscaras.

Agora, o nome mais cotado nos bastidores para o lugar de Pujol é o do comandante militar do Nordeste, general Marco Antônio Freire Gomes, segundo o Estadão. Porém, conforme militares que acompanham a negociação, Bolsonaro teria de "aposentar" seis generais mais antigos do que Freire Gomes. Isso porque eles passam à reserva se um oficial mais "moderno", com menos tempo de Exército, for alçado ao comando.

Repercussão

Em entrevista à colunista de GZH Kelly Matos, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência e general Sérgio Etchegoyen avaliou que as Forças Armadas estão "maduras" e "não se afastarão do papel constitucional". Em rede social, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se manifestou: "Não bastasse a pandemia e o difícil momento econômico, há inquietação entre chefes militares. Espero que as Forças Armadas se mantenham fiéis à Constituição. Mandamento que vale para todos os cidadãos".


31 DE MARÇO DE 2021
MARIO CORSO

Qual será sua Páscoa?

Minha filha Júlia era pequena, tinha quatro anos, quando a professora nos chamou para uma conversa. Lá foi a Diana enfrentar o problema: ela propôs o tema da morte para ser discutido entre os colegas na rodinha. A professora ficou preocupada, com razão, não é uma questão para o maternal.

Conversa vai, conversa vem, descobrimos que o assunto que estava sendo trabalhado no grupo era a Páscoa. Como ela estava em um colégio católico, implicava falar na ressurreição de Cristo. Ali estava a origem do tema: para ressuscitar é preciso antes morrer. A questão da Júlia fazia parte da lógica ampla do que fora proposto.

Já havíamos passado por isso um ano antes. Nas férias, em um passeio, encontramos um passarinho morto. Em todos os outros passeios, Júlia nos pedia para rever a decomposição do finado. E íamos. Era morbidez? Tomamos como uma questão filosófica mal colocada, como as crianças geralmente fazem. É próprio do humano a descoberta da finitude. A aquisição dessa consciência fará questão a vida toda. Alguns fazem fobia, outros hipocondria, outros fazem perguntas. A Júlia era precoce para os grandes temas da vida.

Tal como na rodinha do Maternal, a Páscoa é uma festa que nos confronta com um simbolismo contraditório. Por um lado temos a paixão de Cristo, por outro lado coelhos e ovos de chocolate. Como que isso casa? Na verdade não faz sentido direto: o cristianismo se apropriou de datas e festas pagãs que ficaram latentes em paralelo. No hemisfério norte, de onde isso surgiu, agora entra a primavera, época das antigas festas da fertilidade. Neste contexto, o coelho, reprodutor entusiasta, e os ovos, revelam seu sentido óbvio de multiplicar a vida.

Portanto, podemos viver a Páscoa de duas formas. Com ênfase na mitologia cristã, ou no que sobrou das arcaicas crenças europeias. No momento atual, esta escolha tem até um desdobramento prático. Você pode se comportar do lado da multiplicação da vida, preservando a sua e a alheia, ficando em casa. Ou pode arriscar viagens e visitas a parentes, se aproximando da forma como Cristo terminou seus dias aqui.

A tortura da crucificação, pela maneira como a gravidade age sobre o corpo, impede a respiração plena. Tecnicamente é uma morte lenta por asfixia.

As vítimas da covid-19 morrem por asfixia também. O vírus destrói a capacidade pulmonar até que nem as máquinas conseguem nos suprir de oxigênio. Recentemente, passei mais perto do que gostaria por essa condição. Asseguro que não é nada agradável olhar para os canos de onde vem o oxigênio e saber que às vezes nem com ele conseguimos respirar.

Sugiro uma Páscoa viajando pelas histórias e simbologias que essa data nos proporciona, deixando a geografia de lado. Tenho certeza de que Jesus diria para você ficar em casa nessa próxima semana. Boa Páscoa!

MARIO CORSO


31 DE MARÇO DE 2021
INFORME ESPECIAL

Jair Bolsonaro, Forças Armadas e o tiro no pé

Não precisa usar farda e nem ser especialistas em armamentos para concluir que a troca de comando no Ministério das Forças Armadas, realizada na segunda-feira por Jair Bolsonaro, foi um tiro no pé. A crise deflagrada com as demissões dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica era um desdobramento previsível, mas nem por isso menos preocupante.

Tentar, com movimento brusco e errático de troca ministerial, garantir apoio militar para um governo, cheira a chavismo. E, no Brasil de hoje, não funciona. A reação foi um recado claro, que contraria o falso entendimento de que as Forças Armadas apoiariam integralmente o presidente. Nunca foi assim. A cúpula da instituição preza pelo resguardo do seu papel de Estado, que é incompatível com militância ideológica.

Basta olhar para o comportamento das Forçar Armadas desde a redemocratização. Durante mais de 12 anos, os militares brasileiros conviveram com governos petistas, tendo Lula e Dilma Rousseff como comandantes supremos, de acordo com a Constituição. Nenhuma crise grave foi registrada, tampouco manifestações públicas de apoio ou de repúdio. E até o mastro da bandeira da Praça dos Três Poderes sabe que o vermelho do PT não é a cor favorita de quem veste verde-oliva.

Resta agora aguardar e torcer para que os desdobramentos de mais um movimento afoito de Bolsonaro não descambem em crise grave. As Forçar Armadas têm demonstrado maturidade e senso democrático. Tomara que Bolsonaro faça, enfim, o mesmo.

TULIO MILMAN

terça-feira, 30 de março de 2021


30 DE MARÇO DE 2021
DAVID COIMBRA

A vida pode ser vivida com anestesia

Anestesia geral é uma delícia. Sério. Bem, óbvio que prefiro nunca mais ter de precisar de anestesia geral, mas que é bom, é. Você sabe que vai sentir dor e, antes que a desgranida sobrevenha, toma a anestesia, dorme e só acorda depois que passou. É maravilhoso.

Esse princípio bem que poderia ser aplicado em vários outros males da existência. A namorada brigou com você, arrumou outro, partiu seu coraçãozinho? Corra para o anestesista. Ele vai calcular o tempo que você levará no processo de tristeza-revolta-tristeza-aceitação, e você só acordará depois da aceitação, quando estiver pronto para novo relacionamento.

Não seria lindo?

Eu, agora, duas semanas atrás, tive de tomar anestesia para ser submetido a uma operação na coluna. Então, lá estava eu, deitado na maca, na sala de cirurgia, e o anestesista, Márcio Bolsson de Miranda, começou a me explicar o que aconteceria. Ele foi falando e, enquanto falava, administrou a primeira droga. Já senti algum torpor e, ao erguer levemente a cabeça, vi todos aqueles médicos e enfermeiros ali, me olhando detrás dos seus aventais. O cirurgião, doutor Arthur Pereira Filho, o famoso "Arthur Pavilhão", sorria. 

Os outros sorriam também. Bom sinal. Tive a impressão de que o meu médico, o André Fay, também estava lá, mas depois ele disse que foi ilusão causada pelo sedativo. Tento pensar naquele momento e divisar a realidade da imaginação, mas as lembranças se embaralham. Do que tenho certeza é de que falamos sobre futebol. Arthur Pavilhão participa de um grupo de médicos com cem gremistas, mas o irmão dele Nelson, que também estava lá, é colorado. Isso me levou a pensar: melhor não falar de Grêmio e Inter, para não ferir suscetibilidades de algum cara que vai me cortar com seu bisturi. Achei que foi um pensamento sensato, este.

Só que, em seguida, alguém fez uma observação sobre a situação do país, algo de política, e comecei a deitar falação contra o Bolsonaro. Enquanto falava, já com a voz engrouvinhada, ponderei para mim mesmo: "E se um desses médicos for bolsonarista? Não devia ter falado mal do Bolsonaro nesse momento, os bolsonaristas podem ser rancorosos. E se falasse mal do Lula, para contrabalançar?" Mas, nesse instante, dormi.

Ao acordar, deitado na cama, os médicos me rodeavam, sorridentes, e agora tenho certeza de que o André Fay estava lá. Uma das primeiras frases que eu disse, ainda com voz pastosa, foi:

- Cumprimentem o anestesista! Não estou sentindo dor! Viva o anestesista!

E depois emendei um monte de bobagens. Tenho convicção de que foram bobagens, mas não recordo de que tipo e hoje, ao tentar relembrá-las, me confundo. É que falo bobagens sobre muitas coisas, tudo é possível. De qualquer forma, adormeci outra vez e, quando despertei, foi para continuar a vida normal. Uma vida sem anestesia. Oh, como é dura a vida sem anestesia!

DAVID COIMBRA

30 DE MARÇO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

BOLSONARO EM BUSCA DE OXIGÊNIO

A segunda-feira foi um dia de sobressaltos em Brasília. De supetão e sem uma lógica de implementação clara, o presidente Jair Bolsonaro promoveu seis mudanças no primeiro escalão de seu governo. No mundo ideal, trocas de ministros e de assessores graduados deveriam buscar eficiência na prestação de serviços à população e, secundariamente, a garantia de apoio político que assegure a sustentabilidade da gestão. Não é essa, ao que tudo indica, a inspiração de Bolsonaro.

Os recentes desgastes gerados pelo caos na saúde, pela erosão da imagem do Brasil no Exterior, com reflexos nefastos na economia, pelo puxão de orelhas do Congresso e pela carta assinada por empresários e economistas com críticas ao governo indicam uma queda de apoio, confirmada pelas pesquisas de opinião. A reação de Bolsonaro foi embaralhar as peças do seu tabuleiro em busca do oxigênio que falta hoje nos hospitais brasileiros.

As duas mudanças mais ruidosas foram as dos ministros das Relações Exteriores e da Defesa. A demissão do chanceler Ernesto Araújo é resultado da pressão direta do centrão e da cúpula do Congresso, turbinada pela condução desastrosa da diplomacia brasileira. Pontualmente, a queda de Araújo é positiva para o Brasil, mas seria ingenuidade esperar que signifique uma guinada automática do Itamaraty. Chega ao cargo Carlos Alberto Franco França, diplomata de pouca expressão que estava na assessoria especial da Presidência. Resta esperar que ele consiga, no novo cargo, se relacionar de forma altiva e harmoniosa com a comunidade internacional.

Já a saída do general da reserva Fernando Azevedo e Silva, conforme análises costuradas em Brasília, teria sido motivada pela ânsia de um maior alinhamento das Forças Armadas com o Planalto, o que seria, além de uma agressão à Constituição, uma afronta ao papel institucional dos militares, que vem sendo exercido de forma correta desde a redemocratização.

Não é de hoje que o perfil de Jair Bolsonaro revela suscetibilidade a teorias conspiratórias de todos os tipos e, especialmente, à maior das assombrações, o impeachment. Os movimentos de ontem comprovam que o presidente passou enxergar a luz amarela assumindo tons de vermelho.

Até o fechamento desta edição, os brasileiros, entre atônitos e surpresos, tentavam decifrar a trama por trás dos movimentos visíveis na capital federal.

Independentemente dos desdobramentos gerados pelos estrondosos tremores de terra de ontem em Brasília, o país acorda hoje com problemas reais a resolver. Menos barulho e mais resultados, é disso que o país precisa. Já.


30 DE MARÇO DE 2021
POLÍTICA +

Seis trocas e novas interrogações

Pressionado pelo centrão, o presidente Jair Bolsonaro demitiu, enfim, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e aproveitou para mover outras peças no tabuleiro do ministério. Araújo foi substituído pelo diplomata Carlos Alberto Franco França, cuja credencial mais vistosa é ser um homem discreto e gentil. "Normal", na definição de aliados que já não suportavam os maus modos de Araújo.

Bolsonaro aproveitou a onda e mandou para o Vale dos Caídos o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que não quis lhe entregar a cabeça do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, nem deu guarida a seus planos de usar as Forças Armadas para derrubar restrições impostas pelos governadores na pandemia. Na breve carta de despedida, Azevedo e Silva escreveu: "Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado".

Visto que as Forças Armadas são instituições de Estado, pode-se deduzir nas entrelinhas que o ex-ministro da Defesa preservou o Exército, a Marinha e a Aeronáutica de aventuras que não encontram guarida na Constituição. Ao longo do dia, especulou-se que os chefes das Forças Armadas pediriam para sair, mas até as 21h o Alto Comando não havia formalizado a debandada.

A saída de uma peça-chave do tabuleiro provocou uma dança de cadeiras que envolveu três postos no governo, mas nem assim sobrou cargo para o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Com a indicação do general Walter Braga Netto para a Defesa, foi preciso puxar outro general, Luiz Eduardo Ramos, para a Casa Civil.

O mesmo centrão que sacudiu a árvore para derrubar Araújo e vem dando sinais de que seu apoio não é incondicional herdou a Secretaria-Geral de Governo e indicou a deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) para comandar a articulação política do governo.

Em outro movimento que ainda precisa ser interpretado na plenitude, Bolsonaro rebaixou o ministro da Justiça, André Mendonça, ao cargo que ele ocupava antes, de advogado-geral da União, para preencher a lacuna aberta com a demissão de José Levi. O novo ministro da Justiça será Anderson Torres, amigo pessoal do senador Flávio Bolsonaro, delegado da Polícia Federal e até então secretário da Segurança Pública do Distrito Federal. Quem o conhece define como um delegado "linha-dura".

ROSANE DE OLIVEIRA

30 DE MARÇO DE 2021
NÍLSON SOUZA

O ano da neve

Para cumprir um compromisso profissional, estou pesquisando sobre acontecimentos do ano de 1984, eternizado pelo célebre romance do britânico George Orwell que revelou o Big Brother para o mundo. Não me refiro ao polêmico programa televisivo que agora, mais do que nunca, imita a realidade: pessoas confinadas em casa, ansiosas, estressadas, cada uma querendo mandar as outras para o paredão. O BB do livro, como sabemos, é ainda mais perverso. Simboliza um governo despótico, que usa a tecnologia para vigiar, controlar e oprimir a população.

Não é sobre isso que estou pesquisando. Busco fatos reais. De memória, me recordo que 1984 foi o ano em que nevou em Porto Alegre - e eu não vi, porque estava em São Borja, na cobertura jornalística da visita de Tancredo Neves ao túmulo de Getúlio Vargas. Era muuuuito frio naquele agosto, mas as únicas "neves" que apareceram por lá estavam no sobrenome do visitante. Tancredo me lembra também que 1984 foi o ano das Diretas Já e da frustração daquele coro que se ouvia nas ruas e praças do país: "Um, dois, três; quatro, cinco mil: queremos eleger o presidente do Brasil".

Ficou para bem mais tarde e, sinceramente, parece que ainda não aprendemos a fazer boas escolhas.

Mas deixemos o clima e a política de lado. Apenas quero relatar nesta crônica as minhas agruras para consultar jornais da época com arquivos e hemerotecas fechados por causa da pandemia. Estou constatando que, infelizmente, os registros digitais são escassos, pouco acessíveis e inconfiáveis. Começo a pensar que os pesquisadores do futuro vão lamentar para sempre a morte dos impressos.

É sabido que na era da informação instantânea o jornal de papel já nasce desatualizado, pois a internet, o rádio e a televisão sempre chegam antes. Mas quando alguém precisa saber o que exatamente aconteceu no chamado antigamente, ou mesmo logo ali, em 1984, pode ficar dias rolando telas que dificilmente vai encontrar registros precisos e detalhados. Não é saudosismo, é constatação.

Se os arquivos dos jornais locais ou o Museu Hipólito José da Costa não abrirem suas portas logo, acho que também sentirei ganas de mandar alguém para o paredão.

NÍLSON SOUZA

30 DE MARÇO DE 2021
INFORME ESPECIAL

A dor de quem fica

Com voz triste e em tom baixo, Magnus Wichmann faz um desabafo, um dia depois de assistir à cremação do corpo da mãe, Líria, 70 anos, filha de Teixeirinha. Ela é mais uma vítima da covid-19 em Porto Alegre.

"Eu tinha um posicionamento político que mudou completamente. Minha mãe é um grande exemplo desses montes de notícias falsas e condução das pessoas, da opinião das pessoas mais velhas que está sendo feita no país. Ela acreditava em todas as teorias da conspiração, ela não se protegeu como deveria por causa dessas notícias que vinham no Whats dela. A culpa muito dela ter ido é dessas pessoas que emitiam essas notícias de que a covid não era nada, que era uma gripe pequena. Ela chegou a cogitar de se não vacinar..."

Do bem

A União Espírita Caminho da Luz recebeu itens para montar 29 cestas básicas, que foram repassadas a famílias atendidas pela instituição. A doação foi realizada pelo Clube de Tiro e Caça de Bagé. Entre os produtos doados estão arroz, óleo, feijão, macarrão, farinha de trigo, açúcar e sal.

O Comitê Popular de Enfrentamento à Covid-19 arrecadou 10 toneladas de alimentos em drive-trhu realizado no Largo Zumbi dos Palmares, na última sexta-feira. Agora, a campanha continua com um financiamento coletivo para arrecadar alimentos que serão doados a comunidades de Porto Alegre. As doações podem ser feitas através do link https://apoia.se/abraceportoalegre. O comitê é formado por movimentos sociais, associações e sindicatos de trabalhadores, organizações estudantis, entidades e partidos políticos.

TULIO MILMAN

segunda-feira, 29 de março de 2021


29 DE MARÇO DE 2021
DAVID COIMBRA

Como fazer um guri comer polvo

Duas semanas depois de passar por uma cirurgia na coluna, decidi comemorar o fato de desfrutar de rápida recuperação e me sentir bem e inteiro, apesar de ainda estar um pouco fraco e muito remendado.

Decidi que, para o jantar, pediria nada menos do que o polvo do Pampulhinha. Não é pouca coisa.

O polvo do Pampulhinha é um acontecimento da cidade, algo único nos 249 anos de história de Porto Alegre. É um dos melhores pratos portugueses que já provei na vida, e aí incluo os provados em Portugal.

Restam raros restaurantes portugueses e alemães em Porto Alegre, uma lástima. A cidade vai crescendo e perdendo suas peculiaridades, vai se afastando das suas origens e se tornando, a cada dia, mais igual a todas as outras.

O polvo do Pampulhinha, no entanto, resiste. Trata-se de uma refeição para ser compartilhada entre quatro pessoas, no mínimo. Gosto de colher aquele molho denso e vermelho com o qual é servido e empapar uma daquelas grandes batatas que vêm de acompanhamento e amassá-la, transformando-a quase em um purê. Então, capturo uma porção da batata amolecida no molho e espeto um naco do polvo e... oh... que delícia é a primeira garfada.

É claro que, em seguida, sorvo um gole de vinho verde, tenho de ser fiel às tradições açorianas.

Estou consciente, no entanto, de que polvo não é uma comida fácil. É como certas músicas, que você precisa ouvir várias vezes até gostar delas como devem ser gostadas. Ou um livro mais profundo, que demanda uma concentração extra na leitura, até que você o aprecie em todas as suas camadas de compreensão.

O polvo é assim, porque chega à mesa com seus oito longos braços, é um animal quase completo que se apresenta no prato. Por isso, muitas pessoas rejeitam o polvo, preferem a segurança de um filé, que em nada lembra a doce vaca da qual veio. Crianças, por exemplo, não são adeptas de polvos e outras comidas com tentáculos e ventosas.

Pois bem. Acontece que entre os comensais que iriam partilhar o polvo comigo estava o meu filho. Ele quase já não é mais criança, tem 13 anos. Mas essa idade, você sabe, é ainda mais complicada, em termos de vontades e manhas, porque é a flor da pré-adolescência. Além disso, ele iria comer polvo pela primeira vez na vida. Então, outro pai poderia se perguntar: será que esse menino não repudiará o polvo? Mas não eu. Eu sabia como o Bernardo reagiria. Ele iria comer talvez até com estranhamento, mas sem protesto. E, depois, iria gostar.

Foi o que aconteceu. O Bernardo, ao deparar com aquele tentáculo no prato, ergueu as sobrancelhas e comentou:

- Olha só isso...Depois, cortou um pedaço, levou à boca e exclamou:

- Que delícia!

Eu, do outro lado da mesa, estufei o peito de orgulho. Porque aquilo era obra minha. Eu, desde que o meu filho nasceu, digo para ele: "Nós comemos de tudo!" É uma máxima que repito sempre que há vacilo diante de qualquer alimento, seja a prosaica alface, seja o esquisito mocotó. Inclusive, certa feita, quando ele tinha uns quatro anos, essa legenda se voltou contra mim. Durante um almoço, disse para a Marcinha, quando ela me ofereceu uma coxa de galinha:

- Não... galinha não vou querer... Ao que o guri comentou, com alguma malícia:

- Ué, papai, nós não comemos de tudo? Sacana. Tive de comer a galinha.

Mas o que interessa é que criei um rapazote que come de tudo, não é como aquelas crianças que demandam pratos especiais quando vão jantar na casa de amigos. Que venham, portanto, polvos! Que venham mondongos e pucheros! Que venham ostras ou sopas de tartaruga! Nenhum capricho nos impedirá de usufruir dos prazeres da vida!

DAVID COIMBRA

29 DE MARÇO DE 2021
ARTIGOS

O DESAFIO DA INCORPORAÇÃO DE NOVAS TECNOLOGIAS NA SAÚDE

A pandemia da covid-19 e suas implicações sociais e econômicas têm exposto os sistemas de saúde público e privado como nunca antes visto.

Diariamente, nos meios de comunicação redes sociais e em simples conversas deparamos com os "milagres" da medicina moderna e, ao mesmo tempo, com as mazelas e crueldades de um sistema que nem sempre é justo ou acessível a todos.

Do atendimento ambulatorial a uma grande cirurgia, uma rede de pessoas, materiais e insumos se faz indispensável. Sempre guiadas pelas melhores evidências científicas possíveis, as equipes de saúde buscam oferecer o que for mais eficaz e efetivo aos pacientes. E estes, obviamente, o que for melhor, menos invasivo e indolor a si. Assim, retirar uma "vesícula biliar com pedras" sem precisar "abrir a barriga" é muito melhor quando indicado for! Da mesma forma, corrigir um "defeito no coração" sem a necessidade de "abrir o peito". Isto é possível e viável quando bem avaliado e realizado por profissionais certificados e qualificados. Mas, um elemento é fundamental. A tecnologia! Cara, complexa e que perfaz longo caminho para ser desenvolvida, testada e empregada na rotina. Só que alguém terá que pagar esta conta! 

O doente, o SUS ou a saúde suplementar. E quem determina isso? Normalmente se faz através do Ministério da Saúde e suas agências reguladoras. A cardiologia brasileira recebeu, em 2021, com muita alegria a incorporação do Tavi (Implante Transcateter Valvar Aórtico) no novo rol publicado pela Agência Nacional de Saúde (ANS) e que determina o que as principais operadoras devem custear ou não. Agora, idosos frágeis e sem adequadas condições cirúrgicas e que sofrem de estenose aórtica (estreitamento de uma das principais válvulas do coração), uma doença frequente, incapacitante e potencialmente fatal, poderão ser beneficiados por um procedimento minimamente invasivo, de risco menor e de elevado sucesso. 

Espera-se que esta técnica revolucionária e já disponível em nosso meio também possa se estender para a rede pública e a todos indivíduos que preencham os adequados critérios clínicos e anatômicos. Os desafios para a incorporação de novas tecnologias são imensos. Mas, quando a ciência, o bom senso e a discussão colegiada andam juntas, os objetivos são mais facilmente alcançados e quem mais ganha com isso sempre é o cidadão e a sociedade de uma forma geral.

ROGÉRIO SARMENTO-LEITE, MÉDICO CARDIOLOGISTA E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO DIRETOR DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE HEMODINÂMICA E CARDIOLOGIA INTERVENCIONISTA

29 DE MARÇO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

DE PORTO ALEGRE PARA O MUNDO

São enormes as repercussões, dentro e fora do país, da devastadora reportagem sobre o Brasil publicada pelo The New York Times (NYT) no final de semana. No texto, os jornalistas Ernesto Londoño e Letícia Casado apresentam Porto Alegre, "uma próspera cidade no sul do Brasil", como o "coração de um impressionante colapso no sistema de saúde". UTIs lotadas, disparada na procura por caixões, negacionismo, hospitais sob máximo estresse e famílias destroçadas são alguns dos aspectos retratados.

Os enviados do NYT têm razão especialmente no adjetivo escolhido para caracterizar a capital do Rio Grande do Sul - próspera. Cabe agora à sociedade gaúcha reafirmar essa verdade de forma racional, serena e efetiva. Não nos faltam bons exemplos e atributos positivos. O Rio Grande do Sul e Porto Alegre têm um dos melhores sistemas de saúde da América do Sul, logística de ponta, universidades de reconhecida qualidade, ONGs atuando nos mais variados campos, empresas pujantes de todos os tamanhos, um setor primário cada vez mais sustentável e produtivo, instituições esportivas com trajetória de sucesso, clusters de inovação e de tecnologia, além de uma pulsante pluralidade étnica e cultural, marcada pela convivência harmônica e integrada. Por isso, não se justifica um eventual abatimento diante da referida reportagem. O desafio dos gaúchos, nesse momento de dor e preocupação, é reverter o quadro, com respeito, empatia e altivez. Para isso, é imprescindível que haja união.

Mais do que um desejo difuso, a convergência se impõe como uma meta pragmática e plenamente exequível. São inúmeros casos de movimentos espontâneos da sociedade civil, das mais distintas origens e matizes, da Central Única das Favelas (Cufa) a entidades empresariais, que têm arregaçado as mangas por uma motivação muito mais relevante e prioritária do que a disputa imediata e mesquinha pelo poder. Esses exemplos deveriam ser seguidos, urgentemente, pelos gestores da crise nos níveis federal, estadual e municipal, respeitadas as hierarquias e competências balizadas pela lei e pelas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem dúvida, a falta de sintonia na esfera pública é um dos fatores que nos levaram ao caos, agora retratado também pelo maior jornal dos Estados Unidos. Apesar da injustificável desagregação protagonizada por setores políticos, é necessário ressaltar que cada cidadão é responsável pelo cuidado com a vida, o que vem sendo praticado em inúmeras atitudes e iniciativas, às vezes, infelizmente, nem tão visíveis. De fato, é preciso que esse espírito construtivo se espalhe mais e mais.

As condições para reagir estão ao nosso alcance. Se conseguirmos olhar juntos para o futuro, em breve, poderemos inspirar uma outra pauta: "Como uma próspera cidade no sul do Brasil saiu do caos para a recuperação humana e econômica". Contamos com amplas condições para começar a construir, já, essa nova manchete. O Rio Grande do Sul, com certeza, tem muito mais para mostrar ao mundo.



29 DE MARÇO DE 2021
CLÁUDIA LAITANO

Felicidade é?

Imagine uma escada com degraus numerados de zero a 10. No zero, está a pior situação em que você consegue se colocar, a desgraça absoluta, o alçapão no fundo do poço, um navio encalhado no Suez. No 10, está a felicidade mais luminosa, o Nirvana na Terra, a área VIP da plenitude. Agora, examine friamente o ano que passou e responda: entre o fundo do poço e o Nirvana, em que degrau você ficou mais tempo estacionado em 2020?

Esse modelo, conhecido como Escada de Cantril, foi aplicado por pesquisadores das Nações Unidas para medir o quanto a pandemia afetou a percepção de bem-estar em diferentes países do mundo. Os resultados foram apresentados em uma reportagem publicada em 20 de março, Dia Mundial da Felicidade, na revista The Economist. Os mais felizes, os finlandeses, pontuaram, em média, um pouco abaixo de 8 (ou seja: se o Nirvana existe, ninguém mora lá). Os menos afortunados, os zimbabuanos, um pouco acima de 3. O Brasil, no pelotão do meio, não passaria por média no meu colégio: 6,1.

A grande surpresa da pesquisa foi que os índices de satisfação em 2020, comparados ao período de 2017 a 2019, não apenas se mantiveram estáveis como melhoraram um tantinho. Em média, claro. Alguns países, o Brasil entre eles, mergulharam no baixo-astral. Ainda assim, o mal-estar não parece ter se espalhado tão globalmente quanto o vírus. Pessoas mais velhas, por exemplo, tendem a enfrentar a crise com otimismo e resiliência, mesmo sendo o grupo mais afetado pela covid - enquanto a garotada tem mais dificuldade para lidar com a perda da vida social e a insegurança com relação ao futuro.

Outra conclusão da pesquisa é que os fatores que levam as pessoas a se sentirem mais satisfeitas em relação às próprias vidas são os mesmos que ajudam os países a enfrentar melhor a pandemia - e esses fatores podem ser resumidos em uma única palavra: confiança. Um país em que as pessoas confiam umas nas outras, nas instituições e no governo é um país feliz.

CLÁUDIA LAITANO

29 DE MARÇO DE 2021
INFORME ESPECIAL

Minha máscara, minha vida

Um ponto da carta dos economistas pedindo uma guinada na política de combate à pandemia foi pouco explorado mas, se ganhasse a adesão do poder público, poderia dar uma significativa contribuição para frear a disseminação da covid-19. É o uso de máscaras mais eficientes, como as de padrão PFF2/N95. Nas inevitáveis idas ao supermercado já é possível ver mais pessoas utilizando este modelo. Mas a questão posta é a distribuição gratuita das peças com maior capacidade de filtragem à população com menor poder aquisitivo, junto a campanhas educativas e instruções para reuso.

O preço unitário nas farmácias, por exemplo, é inviável para boa parte dos brasileiros. Há como adquiri-las a partir de cerca de R$ 3 (pela internet ou em alguns tipos de comércio) se a compra for em quantidade maior. Existem fabricantes inclusive no Estado. Como não há perspectiva de medidas de distanciamento com coordenação nacional e a vacinação segue lenta, a disseminação de máscaras mais seguras pode ser uma política efetiva, barata e com impacto de curto prazo.

CAIO CIGANA | INTERINO

domingo, 28 de março de 2021

 

Meu Primeiro Amor - José Augusto

   

 Com Fé a gente chega lá

   

Hora É Agora - Juntos Contra A Fome

sábado, 27 de março de 2021


27 DE MARÇO DE 2021
LYA LUFT

Os bonzinhos

Não, não quero que me julguem boazinha. Nem em criança eu quis ser, embora tanto me exortassem, seja uma menina boazinha, fique quieta, não pergunte tanto, não corra tanto, não sonhe tanto, não desobedeça tanto... Eu achava os bonzinhos chatos, mas também não queria ser das piores.

Não sabia o que queria, e nem sei se hoje, tanto tempo depois, eu sei. Lembro de meu pai, quando lhe perguntávamos: "Pai, você quer alguma coisa?". A resposta era bem-humorada: "Quero o meu sossego".

Talvez seja isso que eu queira, embora há um ano exato em casa, por ser de alto risco, e por querer respeitar essa norma chata mas essencial, o meu sossego, embora tenha sossego demais. Concretamente talvez, mas a cabeça gira em conflitos, perplexidades, intervalos de paz. O que vai ser de nós se as coisas não mudarem depressinha para melhor? Há quem me elogie quando sou mais sincera, há quem julgue que eu devia "espalhar felicidade e esperança"... e lograr meus leitores, meus amigos imaginários, tão presentes na minha vida?

Não creio que otimismo demasiado seja uma boa arma nesta hora, que, com a quantidade de mortos, e a pouca perspectiva concreta, está mais para macabra do que felizinha. O meu recado deve ser entendido como CUIDE-SE.

Desde que comecei a escrever crônica de jornal e artigo de revista, e novamente crônica de jornal, tive o sentimento de que, se tenho voz, devo usá-la para algum fim realista: seja em poemas, seja em prosa, seja falando de amenidades, seja de assuntos como este momento de carnificina, cinismo, insanidade e perplexidade.

Então lá vamos nós, neste abre-e-fecha, faz-não-faz, pode-não-pode, morre-não-morre - mas pode ficar sequelado. Um dos meus mais amados amigos, fraterno, brilhante, generoso, ficou entubado meses, voltou para casa, com cuidadores, mas, me disse um deles outro dia, "nunca mais será o mesmo, aquele que a senhora conheceu não existe mais". E chorei por um morto ainda vivo, tão importante para mim e muitos.

Recebemos ordens contrárias, ou vagas, ou que a toda hora mudam, e assim facilitam a desobediência. Se ele não faz, por que eu tenho de fazer? Por que eu tenho de me privar, de sofrer? Porque de verdade é sofrimento, por exemplo, afastar-se da família. Meus sete netos e netas, mais a esposa de um deles, portanto oito, são uma de minhas maiores alegrias. Dia em que um vem almoçar, outro também, as presenças jovens, bonitas e amorosas, a amizade dos filhos, iluminam a casa, e a vida de alguém para quem família sempre esteve acima de tudo, mesmo quando falhei, bobeei, sei lá.

Está ruim, está chato, está cada vez mais assustador, e assustadoramente impreciso. O jeito é ficar quieto quando se pode, sair e trabalhar com o maior cuidado do mundo, sentir as mãos secas de tanto álcool, ter vontade de pular pela janela e voar nas nuvens, ou como disse uma amiga, praticar salto com vara quando era proibido pisar na areia, mas permitido banho de mar. E não me conformo com a expressão "distanciamento social". Sugere distância entre classes sociais, não é?

Palavras... importam.

LYA LUFT

27 DE MARÇO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Flower power

Em meio ao desespero pandêmico, foi baixado um decreto autorizando supermercados gaúchos a venderem apenas produtos essenciais - o que fosse supérfluo deveria ser coberto por um plástico ou qualquer outra coisa que impedisse o acesso dos fregueses. Entre os supérfluos, estavam equipamentos de áudio e vídeo, eletrodomésticos, presentes, artigos de decoração e flores.

Junte 10 pessoas (hipoteticamente, por favor) e pergunte o que é essencial a elas, e você escutará 10 respostas diferentes. Gestantes, veganos, freiras, nutricionistas, executivos, diabéticos, modelos - cada um elegerá o seu fundamental, seja alimento ou objeto. Isso sem citar o que nos é indispensável ao espírito: amor, fé, amigos, sol, arte - o verdadeiro império dos sentidos, sem os quais nem vale a pena levantar da cama de manhã.

Este longo preâmbulo é para dizer que costumo comprar flores no súper e só não fiquei nervosa com o novo decreto porque dias antes havia investido em orquídeas e elas duram bastante. Não sei como estão as coisas hoje. Os protocolos mudam tão rápido que talvez as floriculturas estejam abertas enquanto você lê este texto, e os supermercados estejam novamente comercializando astromélias, antúrios, margaridas. Não podemos comê-las, não são produtos de limpeza nem contribuem para a higiene pessoal, então seriam essenciais por quê?

Não pergunte a quem prescinde delas. Pergunte a quem, como eu, rastreia com o olhar qualquer ambiente, não em busca de um Van Gogh na parede, mas de um girassol junto à janela. Nasci nos anos 60, fui adolescente nos 70, tenho com o flower power uma relação de paz e amor que vai além das frases de camiseta. Nunca morei em casa, sempre em apartamento, e na falta de um jardim, trazia da rua qualquer pequena espécie que tivesse pétala, caule, cor. 

Quando fui morar sozinha, aos 20 e poucos, o dinheiro era contado, e entre leite e flor, comprava flor, nem que fosse uma violeta. Nunca tive nenhuma inclinação para a botânica, nem muito natureba eu sou, mas não lembro de nenhum momento em que as flores não me tivessem sido essenciais como representação de vida, de apreço ao belo, ao simples, à consciência dos ciclos: murchar e florescer, uma constância. Compreendo perfeitamente a importância delas num cemitério.

Os anos de paz e amor terminaram. Estamos vivendo num mundo doente, raivoso, violento. Nunca foi tão necessário contra-atacar com o alaranjado de uma gérbera, com uma azaleia cor de fúcsia, com o perfume de uma dama da noite, com um lírio branco e sua elegância, com buquês que declaram paixões, que pedem desculpas, que celebram aniversários, com flores valentes que nascem em meio às lajotas das calçadas ou entre as pedras de um muro e que, silenciosamente, imploram: basta.

MARTHA MEDEIROS

27 DE MARÇO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Não fotografei você na minha rolleiflex

Crianças, houve um tempo em que não se tirava foto assim, a torto e a direito - expressão que é de outros tempos. As famílias tinham, em geral, uma só máquina fotográfica, analógica, do tipo que funcionava se dentro dela houvesse um filme. Sim, antes a coisa era desse jeito. Além de o filme ser caro, para comprar precisava saber a asa, o índice de sensibilidade dele. E também precisava saber, em último caso, fotografar.

Crianças, houve um tempo em que não bastava apontar a câmera do celular e click, habemus foto. A câmera analógica exigia uma certa familiaridade com a imagem, o que nem todo mundo tinha. Filho com a cabeça cortada, árvore pela metade, cachorro tremido, noiva desfocada. Os arquivos de fotos analógicas, aqueles guardados em caixas com cheiro de décadas passadas, estão cheios desses registros tão sinceros quanto engraçados. Há mesmo quem nunca tenha conseguido tirar uma foto boa com câmera analógica na vida, entre os quais me inscrevo.

E havia os slides, que vinham da loja de revelação em montinhos de negativos separados das molduras brancas. Encaixar negativo na moldura podia levar uma tarde inteira de trabalho infantil, dependendo da quantidade. Os slides demandavam projetor e uma superfície clara para serem exibidos. Era um tal de tirar os quadros e as tapeçarias - caprichosamente bordadas pela mãe prendada ou por uma tia habilidosa - da parede da sala, deixando só os preguinhos. Que depois figuravam, inconvenientes, no olho de um primo ou no pastel que alguém comia na imagem.

Feito isso, família e amigos sentavam rapidamente para garantir um lugar no sofá ou nas cadeiras da mesa. Retardatários iam para o mochinho. Ao apagar das luzes, começava o 17º Festival das Férias em Capão da Canoa. Sim, porque os slides serviam unicamente para isso: mostrar as férias em Capão. Não sei o que as famílias faziam com o projetor no resto do ano. Talvez ficasse guardado junto com os enfeites de Natal, esperando o momento de brilhar.

Minha casa não tinha um projetor de slides, nem a gente passava férias em Capão. O que não nos livrava de ver as exibições anuais de parentes, amigos dos pais ou pais dos amigos, quando se dormia na casa de uma coleguinha de aula. O slide era a Netflix de então, cada imagem descrita em seus detalhes para uma audiência que, no final da interminável sessão, lutava contra o sono. Os muito novos e os mais velhos, já vencidos.

Nos slides alheios conheci praias próximas ou um tiquinho mais distantes, o antepassado de um parque de águas e até a freeway, grande novidade nos anos 1970, que um pai qualquer fotografou quilômetro a quilômetro, exibindo a viagem em stop motion para a plateia entediada. E se o cara continuou e é hoje um famoso cineasta experimental premiado em Berlim? Pena não lembrar o nome dele.

Crianças, o mundo na era do slide foi assim, mais amador, mais ingênuo, mais tosco. E, embora sem a tecnologia de agora, dá para acreditar que existia vacina para todos no Brasil? Infelizmente, ainda não havia flogão, vlog ou Instagram para provar. E eu sempre fui ruim na câmera analógica, nem retrato mal enquadrado tenho para mostrar.

Mas fotografei na memória, e imprimi nas marquinhas do braço. Essas posso comprovar.

CLAUDIA TAJES