quarta-feira, 31 de outubro de 2018


31 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

É hora de o vencedor falar



A minha jaqueta preta, uma ótima jaqueta preta, bem quentinha, eu a tiro do roupeiro todos os anos nesta data, exatamente hoje, dia do Halloween. É quando começa a temporada de dias frios por aqui. Não é inverno ainda, mas a temperatura cai e fica lá embaixo por seis meses. Durante todo esse tempo, se estou na rua, estou dentro da minha jaqueta preta. O inverno pode se tornar bastante monótono.

Nos dias em que há tempestade de neve e você não pode sair de casa, há ainda o risco de cabin fever. Em tradução literal, cabin fever seria "febre da cabana", uma espécie de loucura temporária que dá na pessoa quando ela fica presa em algum lugar por mais de dois dias. Para quem acha que está com esse troço, a prefeitura de Boston disponibiliza psicólogos que vão até a casa da pessoa para conversar e acalmá-la.

Um dos três maiores filmes de terror de todos os tempos, O Iluminado, é, de certa forma, sobre uma cabin fever radical. O personagem de Jack Nicholson fica confinado com a mulher e o filho em um grande hotel nas montanhas durante o inverno e se transforma em assassino.

Eu, quando começam os dias frios, sempre penso no Brasil. Porque aí, no lado de baixo do Equador, ocorre o oposto: o sol chega e os dias se tornam azuis e amarelos, as mulheres vestem minissaias sumárias e, no fim da tarde, às vezes olham para o vazio e suspiram comprido e têm pensamentos misteriosos, talvez inconfessáveis, e, durante as noites mornas, a gente sente preguiça e toma chopes cremosos com os amigos e dá risada? Ah, no verão, a vida não é mais feita de pontos de exclamação, só de reticências?

Lembro dos tempos daquele slogan "Sol, sal, sul, Imcosul". A Imcosul era uma loja de departamentos que patrocinava a cobertura de verão da TV e dos jornais. As pessoas se mudavam para o Litoral durante três meses, e a Zero Hora publicava alentados cadernos de praia, contando como a vida era mais excitante à beira-mar. Eu escrevia nesses cadernos. Uma vez, eu e o Fraga inventamos histórias em quadrinhos da deliciosa personagem Jô e lançamos o concurso Jô da Praia, com as mais belas garotas da orla. Tudo muito ameno, tudo muito bom, nos verões do Brasil.

Mas, agora, dizem que não é mais assim. Os brasileiros andam brabos por causa de política e, nossa!, como são brabos os brasileiros! Fiquei sabendo de coisas bem feias cometidas pelos dois lados dessa Guerra Fria cabocla. É como se o clima político fizesse com que todos fôssemos acometidos de uma estranha cabin fever tropical. Nós não éramos assim!

Mas chegou um momento em que não adianta mais apontar quem começou ou quem é o culpado. Chegou o momento de ceder. As pessoas precisam calar mais do que falar. Mesmo que você tenha razão, não diga nada. Por favor!

Só há uma pessoa que tem de vir a público e se manifestar claramente: o vencedor. O papel de Bolsonaro, neste momento, é apaziguar os espíritos. Ele deve fazer com que seus apoiadores deixem de provocar, deixem de responder, deixem de reagir. Se Bolsonaro quer mesmo governar para todos, precisa dar o exemplo pelos seus. O Brasil precisa de paz. Precisa de um verão em que a vida aconteça devagar, em que o ritmo seja do mar que vai e vem, em que o olhar enigmático das mulheres e o gol em impedimento sejam as únicas fontes de discussão na mesa do bar.

DAVID COIMBRA


31 DE OUTUBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

A REFORMA IDEAL E A POSSÍVEL

As mudanças no sistema previdenciário precisam ser feitas logo e justificadas com base na realidade dos números, que são preocupantes, não de argumentos demagógicos

Em entrevistas a redes de televisão, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) admitiu a possibilidade de apoiar a reforma previdenciária já aprovada em comissão especial do Congresso ainda no ano passado. O tema deve ser definido em encontro com o presidente Michel Temer na próxima semana, mas o fato de ter sido incluído entre as prioridades já é promissor. Embora o país precise de uma reforma mais ampla do que a debatida no Congresso, como vem sendo defendida inclusive pelo futuro chefe da Casa Civil do novo governo, Onyx Lorenzoni, é melhor que o encaminhamento seja feito desde já, antes mesmo de janeiro de 2019, sem que o assunto recomece do zero.

Um aspecto favorável é que as mudanças em discussão no Congresso dependem apenas de um sinal positivo do futuro governo para os parlamentares serem convencidos a retomá-las, votando-as logo. Lamentavelmente, as denúncias envolvendo o atual governo acabaram dando origem a pressões que, na prática, foram atenuando a proposta original. Categorias importantes de servidores públicos aproveitaram-se da fragilidade do governo para se preservar das alterações. Ainda assim, a simples fixação de uma idade mínima para a aposentadoria, embora de forma gradativa e lenta, é um passo importante para definir um cenário de equilíbrio nas contas do setor público.

O país precisa comemorar o fato de a população brasileira estar vivendo mais, mas o sistema de seguridade não pode deixar de se preparar para enfrentar essa transformação na mesma velocidade em que ela ocorre. Os desequilíbrios do sistema previdenciário são uma fonte importante de pressão do déficit do setor público, que fechará abaixo das previsões neste ano, mas ainda em patamares elevados. O rombo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é estimado hoje em R$ 218 bilhões. O do regime previdenciário dos servidores da União, em R$ 87,5 bilhões. Em ambos os casos, é preciso fazer algo para contê-los.

Um dos aspectos positivos da proposta em tramitação no Congresso é o de determinar que também os Estados criem fundos de previdência complementar para os futuros servidores, a exemplo do que foi definido pela própria União. Em ambas as instâncias da federação, as mudanças no sistema previdenciário precisam ser feitas logo e justificadas com base na realidade dos números, que são preocupantes, não de argumentos demagógicos, sem qualquer relação com a realidade.

terça-feira, 30 de outubro de 2018



30 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

A saída para o governo Bolsonaro

Vejo alvíssaras nas primeiras declarações de Bolsonaro como presidente eleito. Bolsonaro não é bom de discurso. Ele é gritão e tem a língua presa. E é glutão, come parte das palavras, como se estivesse apressado para concluir a frase. Isso na forma. No conteúdo, às vezes, é pior. Parece não haver filtro entre o que Bolsonaro sente e o que pensa, ele esbraveja no plenário da Câmara coisas que o popular esbraveja no bar.

Ou seja: não se pode esperar muito quando Bolsonaro fala.

Mas agora algumas coisas parecem ter mudado, o que é muito saudável. Afinal, um presidente da República, que ele será, não pode se comportar como um deputado do baixo clero, que ele foi. Sem contar que o homem levou uma facada na barriga. Alguém que leva uma facada na barriga acaba se tornando mais cauteloso mesmo, seja na ação, seja no verbo.

O verbo de Bolsonaro, depois da vitória, foi moderado. Repetiu muito os caríssimos termos "liberdade" e "democracia", e não usou da agressividade que o caracterizou nesses 30 anos de atuação política. Nada daquela exuberância arrogante. Ao contrário, tratava-se de uma alegria contida, quase reflexiva.

Mas não foi esse comportamento o que mais me animou em seu pronunciamento. O que mais me animou foi a ênfase que ele deu em um slogan repetido algumas vezes durante a campanha: "Mais Brasil e menos Brasília".

Essa frase pode ser a chave do bom sucesso do governo de Bolsonaro. Porque o Brasil é um país difícil de administrar. A eleição para presidente da República é o centro da nossa democracia, mas, depois de eleito, o presidente precisa aprender a governar com o Congresso. Sem apoio parlamentar, o presidente não consegue aprovar projeto algum, e seu governo fica emperrado.

Sabedor disso, o Congresso empareda o Executivo. O presidente tem de se submeter ao chamado governo de coalizão, que nada mais é do que a velha política de trocar cargos por votos, o surrado toma lá dá cá, que submergiu o país na corrupção oceânica descoberta pela Lava-Jato. Bolsonaro diz que não vai se entregar a essa política. Mas como ele domaria o Congresso?

Muitos temem que tal impasse desperte arroubos golpistas em Bolsonaro. Já que o Congresso não aprova nada, ele vai lá com os militares, fecha tudo e passa a aprovar o que bem entender. Ou seja: torna-se ditador. Isso não vai acontecer. Não há clima nem condições práticas para que aconteça.

A alternativa pode ser, exatamente, "mais Brasil e menos Brasília". Se Bolsonaro promover uma reforma tributária que dê real autonomia a Estados e municípios, ele pode escapulir da pressão fisiológica do Congresso, porque transferiria poder da União para os Estados e os municípios. Quer dizer: o congressista não iria ao Planalto e aos ministérios implorar por verbas, porque as verbas já estariam na sua região-base.

Seria uma bênção. Esse é o sistema administrativo dos Estados Unidos, um país tão grande e variado quanto o Brasil. E funciona. Cada Estado é como se fosse um pequeno país, cada cidade tem suas leis, a comunidade decide como quer viver. E, quando existem distorções, quando um município necessita de ajuda, a União acorre.

Uma reforma federativa profunda. Uma reforma tributária radical. Por essas duas portas, o governo encontraria saídas. Mas, para isso, Bolsonaro teria de trasladar parte do poder que tem o presidente. Será que algum político, em algum lugar, em algum tempo, é capaz da grandeza de renunciar a qualquer fatia do seu poder? Não é da natureza dos políticos. Mas? Vá que Bolsonaro esteja sendo sincero. Um pouco de ilusão também faz bem ao coração.

DAVID COIMBRA


30 DE OUTUBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

DISPOSIÇÃO PARA O DIÁLOGO NO ESTADO

O Legislativo gaúcho terá papel fundamental em relação aos projetos do governo Eduardo Leite. Os deputados precisarão pensar mais no coletivo e menos nos interesses setoriais e individuais

É promissor para um Estado historicamente dividido sob o ponto de vista político que Eduardo Leite (PSDB), eleito governador com mais de 3 milhões de votos dos gaúchos, privilegie a disposição total para o diálogo. A partir da confirmação da escolha de seu nome para o Piratini, o futuro gestor do Estado tem insistido na intenção de buscar resultados por meio da conversação, sem abrir mão de suas convicções. A particularidade de a campanha eleitoral ter ocorrido sem confrontos e sem polarização, fato inédito na história recente, favorece o entendimento.

O clima favorável começou com o gesto nobre do governador José Ivo Sartori de se dirigir ao sucessor cumprimentando-o pela vitória, abrindo caminho para um período de transição marcado pela cordialidade. Em sua atual e na nova composição, a Assembleia precisa incorporar esse espírito. O Legislativo gaúcho terá papel fundamental em relação aos projetos do governo Eduardo Leite. Os deputados precisarão pensar mais no coletivo e menos nos interesses setoriais e individuais.

O Estado só avançará se cada um abrir mão de algo na busca do coletivo. E há desafios enormes pela frente. O Rio Grande do Sul já é hoje o que o Brasil pode ser se o país não fizer as reformas que o Estado não fez. Neste cenário conturbado, o governador eleito tem a seu favor, em grande parte graças ao trabalho da equipe do atual governo, a compreensão das enormes dificuldades fiscais do setor público gaúcho. 

O governo que chega ao fim em dezembro deixa o terreno preparado tanto para projetos de reformas importantes com o objetivo de conferir maior eficiência à máquina pública quanto para as negociações com o Planalto relacionadas ao plano de recuperação fiscal do Estado. Avançar nesses pontos com o Legislativo é precondição para que o futuro governo gaúcho possa colocar em prática seus projetos de campanha. Entre eles, inclui-se a questão da segurança pública, apontada como prioridade absoluta pelo candidato vencedor ao longo da campanha.

Em suas primeiras manifestações depois da apuração das urnas, o governador eleito disse que pretende compensar a falta de maioria parlamentar assegurando a governabilidade com base numa agenda bem definida. O Estado precisa ganhar tempo para avançar, reduzindo o peso da carga do setor público para favorecer a retomada do crescimento, num ambiente de mais segurança e mais estabilidade.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018



29 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O PT elegeu Bolsonaro presidente

Bolsonaro pode se revelar um bom presidente, Bolsonaro pode até se revelar um governante muito melhor do que os que o antecederam, mas, como personagem político, ele é um ser primitivo. Bolsonaro é autor de declarações abjetas, entre elas o elogio a um torturador. Não existe nada mais desumano, mais repulsivo do que a tortura. E Bolsonaro teve a desfaçatez de homenagear um torturador durante uma sessão da Câmara dos Deputados.

Como um homem capaz desse gesto se elegeu presidente e, mais, como ele se elegeu com uma votação maciça e irretorquível?

É difícil de explicar, sobretudo se o analista levar em consideração como aconteceu a campanha de Bolsonaro. Os empresários só aderiram a ele de última hora: o dinheiro estava do outro lado. O partido de Bolsonaro era, até a eleição, inexpressivo. Seu tempo de propaganda de TV era quase nada. Seu fundo partidário, nulo. E a imprensa, quase toda, estava contra ele.

O que, então, elegeu Bolsonaro?

Resposta: foi o PT. Foi você, petista, ou simpatizante do PT, ou apenas esquerdista, foi você que elegeu Bolsonaro.

Você começou a elegê-lo durante o impeachment de Dilma, quando gritava que tinha havido golpe. Você não entendeu o que estava acontecendo. Em um único domingo, 6 milhões de brasileiros saíram às ruas para pedir a queda de Dilma. E você foi à manifestação para contar o número de negros que dela participavam. Sério: houve quem contasse negros para tentar diminuir as oceânicas manifestações contra Dilma, comandante de um governo notoriamente corrupto, que arrastou o Brasil para a maior crise econômica da sua história.

O povo queria a saída de Dilma, e você não compreendeu. O povo também chegou à conclusão de que Lula é muito culpado por toda a corrupção que apodreceu os governos do PT. E você gritou, primeiro, "não tem provas", depois, "Lula livre". Lula não pode ser libertado, porque ele foi corrupto, liderou um governo corrupto, em que muitos se beneficiaram da corrupção. E há incontáveis provas disso, entre testemunhos, e-mails, fotos e documentos.

Você criticou Sergio Moro e a Lava-Jato, enquanto o povo festejava que, pela primeira vez na história, corruptos e corruptores eram presos no Brasil. Você exigiu a candidatura de Lula, mesmo sabendo que o PT foi o partido mais entusiasta na aprovação da Lei da Ficha Limpa.

Essa pressão do PT sobre a sociedade se manteve desde o impeachment até o meio da eleição. Quando, finalmente, a candidatura de Lula foi vetada pela lei, o PT lançou um candidato que se assumiu como uma espécie de suplente em campanha.

- Lula era quem deveria estar aqui - disse Haddad, em muitas de suas manifestações.

É inacreditável.

Se o PT tivesse se depurado, se tivesse admitido a culpa de seus líderes, se tivesse reconhecido que a Lava-Jato é um bem para o país, Bolsonaro não seria presidente. Mas os petistas teimaram, os petistas insistiram, os petistas encheram o saco da população durante quatro anos, mantendo o país sob a ameaça do retrocesso, de acabar com a Lava-Jato, de libertar Lula. A cada vídeo de Chico Buarque e de Caetano Veloso, a cada tuíte engraçadinho de Gregório Duvivier ou furioso de Marcelo D2, a cada postagem que você, petista fez debochando de Sergio Moro, uma estrelinha se apagava no céu e um eleitor se acendia do lado de Bolsonaro.

Você, petista, elegeu Bolsonaro presidente do Brasil.

DAVID COIMBRA


29 DE OUTUBRO DE 2018
EDITORIAL

OLHAR PARA A FRENTE 

Em uma clara mensagem das urnas, com 11 milhões de votos de diferença, o Brasil que escolheu Jair Bolsonaro se manifestou de forma contundente a favor de mudanças profundas em um modelo político que há décadas fundamenta a governabilidade em coalizões artificiais e interesses de ocasião. As urnas também evidenciaram que a maioria do país decidiu rejeitar, mais que um candidato improvisado no vácuo de Lula, os métodos de seu partido e seus satélites, que aparelharam o Estado para fazer valer o domínio político, substituíram um projeto de país por um projeto de poder e se mostraram lenientes com a corrupção, além de inertes diante do avanço da criminalidade.

Neste início de semana, porém, a votação de domingo já foi para o calendário da História. Há tantos desafios pela frente, que o novo presidente tem de começar a trabalhar imediatamente na direção que a maioria do eleitorado avalizou. E o Brasil escolheu um candidato que explicitou com todas as letras o compromisso de reduzir o tamanho do Estado e o poder de Brasília, de eliminar privilégios, de privatizar em massa empresas estatais e de dar fim ao balcão de negócios como método de obter maioria no Congresso.

A partir de agora, apesar de todas as restrições que se possa ter à trajetória e a posições do deputado, Bolsonaro passa a ser o presidente eleito de 209 milhões de brasileiros. A democracia falou e, em alto e bom som, optou por Bolsonaro. Portanto, como todos coabitam a mesma nação, o eleito precisa de um voto de confiança para implementar seu plano de governo, e dar impulso a um país atolado na estagnação econômica, no gigantismo estatal e nas práticas cartoriais, clientelistas e intervencionistas. Para tanto, Bolsonaro deverá superar o discurso da campanha e, sem contradizê-lo, dar sinais de que trabalhará para todos os brasileiros, não apenas para os que o apoiaram.

A hora é de desarmar espíritos em nome do bem comum e de enterrar discursos do medo, como o de que a democracia está ameaçada. O Brasil polarizado deve depor os ranços e ódios para que se chegue a consensos mínimos e se possa endereçar as reformas com que o eleito se comprometeu, e sem as quais o país marchará para uma crise ainda maior, com agravamento do desemprego e da violência.

A favor de um denominador comum, o novo governo chegará ao Planalto sem estar em débito com as tradicionais forças políticas e com o aval de mais de 56 milhões de eleitores. Apesar do amplo apoio, nenhum eleito conquista um cheque em branco. Para aprovar as mudanças no Congresso, Bolsonaro precisará confirmar na prática o compromisso de respeito à Constituição, além de moderar sua linguagem e ajustá-la à liturgia da Presidência, como, aliás, demonstrou já no primeiro discurso como eleito. O uso da faixa presidencial no Brasil de hoje exige, por exemplo, a condenação explícita a atos violentos e a preconceitos de toda espécie, a defesa do meio ambiente, a inclusão de todos os brasileiros e a absorção, com naturalidade democrática, das eventuais divergências, aí incluídas as manifestadas pela imprensa e pelo Judiciário.

Não é pouco o que Bolsonaro tem diante de si para fazer jus à confiança e empolgação da maioria dos eleitores. Vencedor, ele precisa recuperar também a imagem externa do país, desgastada pela criminalidade, pela corrupção e por seu próprio palavreado destemperado. Se o eleito não incorrer nos mesmos equívocos de líderes petistas, que confundiram a vitória nas urnas com um passe livre para a apropriação do aparato público, ele já terá dado um grande passo. A direção está clara. Jair Messias Bolsonaro deve agora fazer valer seu compromisso público com a Constituição, reafirmado no discurso da noite de domingo, e, governando para todos, recolocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento.

OPINIÃO DA RBS

29 DE OUTUBRO DE 2018
ELEIÇÕES 2018

Por que o Rio Grande do Sul nunca reelege governador


Foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, que o Brasil passou a conviver com a possibilidade de reeleição. Desde então, o país oferece a chance de recondução para presidente, governadores e prefeitos - no Estado de São Paulo, por exemplo, Geraldo Alckmin já cumpriu quatro mandatos. Mas uma unidade federativa foge à regra: em duas décadas, o Rio Grande do Sul jamais reelegeu um governador.

A derrota de José Ivo Sartori (MDB) já foi experimentada por antecessores de partidos, visões e posições diversas no espectro político (veja quadro abaixo). Há quem considere a realidade gaúcha especialmente complicada, o que tornaria a tarefa mais difícil para quem é situação, e quem avalie que essa realidade tenha a ver com particularidades dos gaúchos. Para Gustavo Grohmann, cientista político e professor de Ciência Política da UFRGS, o fato de três dos seis governadores do período serem emedebistas pode ser uma pista para entender o fenômeno:

- O gaúcho é, antes de mais nada, do contra. É um traço da cultura política local que tem influência, mas de uma maneira interessante, porque isso normalmente não se reflete em votos para a oposição, mas em uma terceira via. Enquanto Antônio Britto (PPS) e Olívio Dutra (PT) brigavam, em 2002, Germano Rigotto (MDB) se elegeu, e o mesmo aconteceu com José Ivo Sartori, que apareceu com 3% das intenções de voto e cresceu diante do embate entre Tarso Genro (PT) e Ana Amélia Lemos (PP), em 2014. Quando surge uma polarização forte, o gaúcho parece preferir um terceiro caminho, mais suave.

Para analistas, a grave crise do Estado foi um dos principais complicadores para a tentativa de reeleição de Sartori.

- Penso que há uma combinação perversa de déficit fiscal crônico, baixa capacidade de investimento e uma burocracia disfuncional que fragiliza os governos diante da sociedade - diz o cientista político Fernando Schüler.

É quase folclórica a ideia de que o gaúcho precisa ter lado desde cedo. O cientista político Benedito Tadeu César entende que, mais do que o embate entre direita e esquerda ou entre progressistas e conservadores, o Estado cresceu politicamente com o confronto entre o trabalhismo, representado por Getúlio Vargas e Leonel Brizola, e o antitrabalhismo:

- Historicamente, temos esse confronto. Analisando grosseiramente, podemos dizer que temos um terço de trabalhistas convictos, um terço de antitrabalhistas convictos e um terço que se posiciona ao centro. Neste caso, quem decide a eleição é o centro político, que às vezes pende mais para o trabalhismo ou mais para o antitrabalhismo, e acaba funcionando como um fiel da balança. Quem angaria esses votos, ganha.

Quem chegou mais perto da reeleição no RS foi também o primeiro a tentá-la: em 1998, Britto conseguiu 49,2% dos votos - quatro anos antes, quando também havia disputado com Olívio, alcançou 52%. Quem ficou mais distante do segundo mandato foi Yeda Crusius, do PSDB, que teve apenas 18% dos votos em 2010, terceira colocada no pleito que elegeu Tarso ainda no primeiro turno. Para Benedito César, a explicação para os dois casos é parecida:

- Yeda tinha uma personalidade muito difícil e se indispôs com todo mundo, principalmente com os prefeitos. Sem o apoio dos prefeitos, é muito difícil se eleger. Muito da não reeleição do Britto é por ter perdido o apoio de suas bases, e a Yeda repete isso 10 anos depois. E, no caso da Yeda, soma-se o momento do PT, de sucesso do governo Lula, que emplacaria a Dilma nacionalmente e o Tarso no Rio Grande do Sul.

GUSTAVO FOSTER


29 DE OUTUBRO DE 2018

CLÁUDIA LAITANO

Da boca para fora

No último sábado, um homem invadiu uma cerimônia religiosa em uma sinagoga em Pittsburgh, no Estado americano da Pensilvânia, gritando "todos os judeus devem morrer". Robert Bowers, de 46 anos, matou 11 pessoas e feriu outras seis, incluindo quatro policiais. A vítima mais velha, Rose Mallinger, tinha 97 anos - idade suficiente para ter visto o antissemitismo "da boca para fora" da sociedade europeia se transformar em perseguição e culminar no massacre de mais de 6 milhões de judeus. O pior ataque antissemita em décadas nos Estados Unidos encerrou uma semana tensa, em que vários pacotes-bomba foram enviados a políticos e personalidades que criticam o presidente Donald Trump.

Bowers costumava escrever posts antissemitas em uma rede social, o que não chega a ser uma exceção nos dias de hoje - mesmo aqui no Brasil. Isso significa que todos os malucos que escrevem bobagens racistas em redes sociais são criminosos em potencial? É provável que não, mas a esta altura é impossível não começar a relacionar a violência retórica das redes com o acirramento dos ânimos fora delas - especialmente quando políticos aprendem que jogar gasolina nesse discurso anárquico e inconsequente pode render popularidade e votos.

Se a experiência americana com um presidente abertamente racista, misógino e pró-armas nos ensina alguma coisa, é o quanto um líder é capaz de inspirar negativamente - por atos, palavras e Twitter - não apenas seu próprio país, mas todo o planeta. Quanto mais Trump legitima a brutalidade como estilo de linguagem e liderança - quando se refere a refugiados, quando se dirige a jornalistas ou mesmo quando dialoga com países estrangeiros -, mais autoriza que outros façam o mesmo. Muitas vezes com armas ainda mais perigosas do que as bravatas de rede social.

Em 2019, teremos no Brasil um presidente que se elegeu movido pelo discurso do ódio. Nas poucas vezes em que se expôs ao debate público, Jair Bolsonaro demonstrou muita dificuldade para articular um raciocínio claro e consistente com relação a temas como economia, saúde, educação ou mesmo segurança pública.

O que seduziu seus eleitores não foram suas ideias propriamente ditas, mas sua habilidade para aliar a rejeição ao petismo a um discurso moralista, que se provou muito sedutor, principalmente junto a eleitores homens e evangélicos. Seu maior cabo eleitoral foi uma fake news: o famigerado kit gay, que nunca existiu - uma das muitas contradições de alguém que se elegeu pregando a honestidade.

Mas odiar um partido e impor uma pauta moral única não pagam aluguel nem resolvem os problemas de ninguém. Para governar o país inteiro, Bolsonaro vai ter que aprender uma ou duas coisas sobre quase tudo e também vai precisar desenvolver algum tipo de agenda positiva. O Brasil não aguenta mais tanto ódio nem tantas bravatas. Um ambiente saturado de palavras raivosas ditas "da boca para fora" tende a transbordar e se torna potencialmente explosivo, como vimos durante as últimas semanas.

Torço para que o presidente eleito Bolsonaro aprenda com os erros de Donald Trump - em vez de se inspirar neles. Porque quando os corvos do ódio estão à solta, ninguém está a salvo e tudo pode acontecer. Inclusive assistirmos à História andando para trás. Como aconteceu com a quase centenária Rose Mallinger em seu último minuto de vida.

*O colunista Luis Fernando Verissimo está em férias.- CLÁUDIA LAITANO

sábado, 27 de outubro de 2018



27 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Feridas e jacarandás

Não vi em minhas décadas de vida uma eleição, uma campanha, que resultasse em tanta ruptura, divisão, hostilidade, afastamento até de pessoas que se amam, ou são amigas, ou são famílias antes amorosas. Vários conhecidos meus relatam pessoas que simplesmente se afastaram da casa, das pessoas queridas, de alguns amigos, de hábitos com que foram criados, para aderir a um ou outro partido, uma ou outra ideologia. Muitas vezes sem sequer entender direito os termos usados, o histórico de tudo, a situação do próprio país. Claro, nem todos, nem a maioria, mas tenho amigos que declararam no Face, por exemplo, que, se eu votasse em que consideram o inimigo, deveria deletá-los: eu não estaria mais no seu círculo de amizades.

Pode isso? Pode, sim. Está acontecendo, e confesso que é difícil de entender. Como misturar afetos, às vezes longos e positivos, com política - essa nave incerta e insegura que já mudou de rumo e ainda vai mudar, porque a vida é assim, os povos são assim, a política, essa velha madrasta, age assim?

Talvez estejamos muito cansados de tanta decepção. Muito desiludidos, e muito iludidos. Talvez sejamos imaturos, não sofremos o suficiente. Talvez estejamos muito alienados, povo não educado é povo não informado, e serve de massa de manobra desde que a humanidade tenta se organizar em bandos, tribos, aldeias. Povo educado, ao contrário, faz escolhas mais tranquilas e racionais - sem esse monstruoso preconceito do "nós" e "eles". Alguém já disse que sou repetitiva: é intencional. Bato em assuntos que me interessam ou afligem, como família, educação, democracia. Por falar nisso, que democracia é essa que alija amigos ou família, que se julga dona da verdade e abusa da chibata da intolerância?

E tem os que resolvem partir. O mundo hoje é uma aldeia global etc, etc, etc. Mas: se os bons forem embora, quem vai tomar conta desta nossa pátria, que apesar de muitos atrasos e desmandos ainda é fascinante e acolhedora, e muito mais será quando se corrigirem tanto quanto possível a miséria, a ignorância, a doença, o isolamento - e estes ódios rasteiros, essa desinformação turbulenta, essa balbúrdia de conceitos e emoções? Quem sabe não estejamos nos levando suficientemente a sério: chibata verbal, conceitual ou emocional, a agressividade e o despudor como forma de protesto, a perigosa incitação à revolta estão sendo manejados como brinquedo de gigante em mãos de criancinhas. Podem machucar mais do que se imaginava. Podem quebrar, destruir, arrasar até o que nem de longe se pretendia.

Graças aos deuses, essa fase vai acabar. Talvez comecem outras batalhas, outras ignomínias, outros descaminhos e desconsertos, mas ainda paira no ar, com os jacarandás, as crianças, a lucidez e os afetos bons, a bela Senhora Esperança. (E talvez se curem as insensatas feridas destes tempos.)

LYA LUFT

27 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As consequências da avalanche


É um premiado filme sueco de 2015, chama-se Força Maior. Uma família (pai, mãe e um casal de crianças) tira seis dias de férias para esquiar nos Alpes. Na manhã do segundo dia, estão almoçando ao ar livre, no deck do hotel, cercados por outros hóspedes, quando, nas montanhas ao fundo, um filete de neve começa a escorrer. Não parece perigoso. 


Minutos depois, aquele deslizamento sem importância cresce em dimensão. Avalanches controladas são comuns, mas aquela demonstra estar ligeiramente descontrolada. Até que, de forma súbita, a neve fica prestes a invadir o deck. Pânico. Algumas pessoas gritam e muitas correm, incluindo o pai da família, que dispara sozinho a fim de se abrigar, deixando para trás a mulher e os dois filhos.


Poderia ter sido um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e, assim que se dissipou, os que correram retornaram aos seus lugares, inclusive o pai. A família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual. Descobriu-se que aquele homem, ao se desesperar, segue impulsos egoístas e se desgoverna.



Neste domingo se encerra uma avalanche. Nas últimas semanas, fomos soterrados por textos, vídeos, áudios, fotos, fake news, ofensas e postagens absurdas que invadiram as redes. O que se deseja, depois da esquizofrenia toda, é que o que se configurava uma tragédia demonstre ser apenas uma névoa seca que não deixe mortos e feridos pelo caminho. Se o presidente eleito tiver um mínimo de responsabilidade, será diplomático a fim de reunir todos no mesmo deck de novo, e a vida seguirá com suas avalanches controladas, e não fatais.


Mas será que nossas relações pessoais sobreviverão sem sequelas? No filme, a atitude inesperada e covarde do pai transfigura os laços e, dali por diante, inaugura um distanciamento difícil de transpor. Será que nós, que passamos os últimos dias trocando farpas com amigos e familiares por causa de nossos antagonismos, conseguiremos restituir 100% o afeto que havia antes?


A não ser entre aqueles que construíram uma base de amor e respeito muito sólida, creio que essa eleição tão polarizada fragilizará alguns vínculos. Não estávamos apenas defendendo um candidato ou outro, e sim diferentes visões de mundo, e com isso desnudando raivas, angústias, preconceitos, medos, maledicências, liberalidades, perversidades. Como não se espantar com pessoas que, no convívio social, pareciam ser afins, mas que, diante de um confronto sem precedentes, revelaram uma faceta bastante incômoda?


Ninguém sairá perdendo se o novo presidente conseguir restabelecer o crescimento do país sem colocar em risco a integridade de seus habitantes, mas uma baixa já ocorreu: a da admiração por pessoas próximas que, equivocadamente, julgávamos imunes a certas pequenezas.

MARTHA MEDEIROS

27 DE OUTUBRO DE 2018
CARPINEJAR

Barco furado do amor

Você está na praia dourando a pele salgada, confortavelmente sentado na cadeirinha, com um coco gelado na concha das mãos e mastigando pastéis de camarão, como sonhou um dia, a sua esposa enxerga ao fundo do mar banhistas andando de caiaque, não caia na cilada de dizer "sim" para um "que tal?". Nem fique em silêncio, recuse antes que venha a indesejável insistência: "Vamos lá? Será divertido!".

Descobrirá que o amor não precisava dessa humilhação. Podia passar sem esse mico em seu romance.

Partirá do ponto morto do guarda-sol para uma batedeira frenética em cima das águas - sem aquecimento, sem alongamento. Não há como remar, os farelos dos pastéis ainda permanecem nos dentes.

Para piorar, você estará de colete salva-vidas laranja, que esvazia a sua masculinidade. Parece uma criança com boia no raso.

Para piorar, você não tem sincronia nenhuma. O caiaque ficará girando no mesmo lugar, como um carrossel desastrado, para diversão dos outros. Não avança para dentro, muito menos consegue desistir e retornar à margem.

Para piorar, ela diz que é fácil e só é seguir os movimentos dela. Mas a dinâmica tem a complexidade de uma aula de dança, só que sentado.

Para piorar, a esposa perderá a paciência e tentará lhe ensinar didaticamente a segurar o remo. Não vai corresponder às expectativas, e discutirão no meio do nada. Ela queria tirar uma foto longe de todos, perto dos rochedos, mas não dá nem para chegar perto do objetivo, muito menos demonstrar um pouco de diversão e contentamento: já que está suando bicas e desconfortável com a própria incompetência. No máximo, será uma selfie de seu afogamento.

Para piorar, não completará os 30 minutos pagos do percurso. Abandonará o passeio antes da hora, na largada, para desgosto eterno. Seu rosto murchará em fracasso e baixará a cabeça no resto do dia. Para piorar, a esposa o ajudará a descer do caiaque, já que se enrolou com as cordas do colete e se prendeu no cinto.

Para piorar, o instrutor elogiará a coordenação de sua mulher, o quanto ela nasceu para o esporte, que é uma pena não ter um parceiro à altura. Terá que engolir a cantada a seco, com uma risada amarela, da mesma cor da areia.

Para piorar, nunca mais será convidado a nada.

CARPINEJAR

27 DE OUTUBRO DE 2018
PIANGERS

Melancolia no domingo à tarde


Esses dias, minha mãe me mandou fotos de quando eu ainda era pequeno e gordinho. As fotos estão desbotadas, estou no colo dela. Ela era uma menina sorridente. Minha mãe era jovem e bonita quando me teve. Continua bonita, mas não tão jovem. Ela era jovem demais. Uma menina cheia de vida e sonhos pela frente, mãe solteira.

Acho que durante anos não fui o filho que poderia ser para minha mãe, não fui agradecido por tudo o que ela fez por mim. Só entendi tudo o que se faz por um filho quando me tornei pai. Você aprende a ser filho depois que tem um filho. Você se torna grato. Quando vi aquelas fotos fiquei emocionado, pensando em tudo o que a minha mãe me deu. 

Ela me deu sua juventude, seus sonhos profissionais, seus relacionamentos amorosos. Disse não para promoções, para viagens longas a trabalho. Tinha que cuidar de mim sozinha. Disse não para amores que não estavam preparados para criar o filho dos outros. Disse não para sua própria vida, para me transformar naquilo que sou. Ela pegou uma célula, transformou-a em gente. E, depois, em homem.

A minha ingratidão foi terrível e me arrependo dela. Fui um adolescente metido e revoltado. Eu achava que sabia de tudo. Achava que a minha mãe não sabia de nada, que ela nunca tinha sido jovem. Os filhos olham para os pais como se fossem tiranossauros, obsoletos e desatualizados, irritados por qualquer bobagem. Só enxergamos essas coisas anos depois, quando nossos próprios filhos nos olham assim.

Eu lembro das coisas que a minha mãe repetia. "Seja educado. Seja honesto. Trate bem as pessoas. Seja gentil. Tente ser bom com todos ao seu redor. Se esforce para fazer amigos." Conselhos adolescentemente ignorados e desafiados. E aqui estou eu, repetindo os mesmos conselhos para minhas filhas. E aqui estou eu, sendo adolescentemente ignorado. Com uma esperança boba de que um dia se lembrem dos conselhos, ao ver nossas fotos desbotadas. Que notem tudo o que oferecemos, sem perceberem. Que não nos deem nada em troca, mas passem adiante. Passem adiante aquilo que nossas mães nos deram.

PIANGERS

27 DE OUTUBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

BRASIL BIPOLAR

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Estamos afogados na polarização. O maniqueísmo é uma heresia no catolicismo, mas se transformou em virtude no maior país católico do mundo. São escassos os argumentos e abundantes as opiniões. Coaxam os adeptos polarizados de forma monocórdica no pântano raso das redes sociais. Robôs ladram e a caravana não passa, emperrada em palavrões. Pena que tantos jovens tenham descoberto o território da política como o aniquilamento do outro. Alienação e agressividade política são armas perigosas. Sufocar um campo tão importante pela falta ou pelo excesso é um desastre.

Nunca se viu algo assim? Vivemos os tempos derradeiros e, após o processo de eleição, veremos os quatro cavaleiros do apocalipse cavalgando por sobre o Congresso? O fim do meu mundo nunca é o fim do mundo, e precisamos da perspectiva histórica.

O Brasil tem tradição de violência e polarização. A agressividade da nossa história é forte e salta aos olhos dos documentos coloniais, imperiais e republicanos. A morte dada a Zumbi dos Palmares com o castigo final de cortar o pênis do líder do quilombo e costurá-lo na boca é um indício de como a Terra de Santa Cruz não era a fazenda bucólica de flores de certas correntes sobre o passado. A sanha de ódio (e de medo) levou a três séculos de punições públicas e exemplares de escravos. O desembarque de centenas de milhares de seres humanos no cais do Valongo do Rio era a estetização trágica de um mundo muito agressivo. Sociedades de tradição escravocrata costumam ser historicamente agressivas, pois a destruição pública de muitos contamina o tecido social.

Canudos sofreu quatro expedições militares e final dramático, um genocídio de sertanejos. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul virou um festival hediondo de degolas e estupros. Cangaceiros violentos como Lampião foram punidos com o corte das cabeças. Fizeram uma foto macabra do evento como registro e comemoração. Criminosos fluminenses punem desvios colocando a vítima dentro de pneus e tocando fogo, ato batizado de "colocar no micro-ondas". Se pudesse optar, Joana D?Arc teria preferido sua fogueira de 1431 ou os pneus?

Nosso tema não é a violência, porém, como ela aflora em momentos polarizados. Violência existe diariamente. De quando em vez, ela se torna política em polarização. Em 1935, o país estava partido ao meio entre as propostas da Aliança Nacional Libertadora de esquerda e instituições alinhadas à direita, como a Ação Integralista Brasileira. Como é frequente, aproveitando-se do clima de insegurança gerado pela polarização, Getúlio Vargas destruiu a frágil democracia inaugurada pela Constituição de 1934. Resolveu-se a polarização pela repressão, entregando Olga Prestes aos nazistas e encarcerando, entre tantos, Graciliano Ramos. O curioso é que os mesmos socialistas que, com razão, gritavam contra os porões da ditadura no Brasil, no Exterior, apoiavam campos de concentração soviéticos, ou fingiam que não viam para maior conveniência política. Talvez por isso sejam inóspitos os polos: ambos costumam ser marcados pela cegueira seletiva. A lógica é sempre a mesma: o meu inferno é mais gostoso do que os outros.

Entre 1961 e 1968, recrudesceu a polarização política. Os campos da esquerda e da direita se enfrentavam em campanhas marcantes e regidos por uma gramática de respostas mútuas: Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964) versus Marcha da Família com Deus e pela Liberdade (19 de março, seguida de mais de 40 marchas em outras cidades). 

Mais uma vez eliminamos a polarização pela repressão. A solução para que o Brasil melhorasse e evitasse os males da violência do golpe civil-militar de 1964 seria o sufocante AI-5? Qual a solução para sair da ditadura que matava, torturava e concentrava renda? Deveríamos seguir os modelos ditatoriais de Cuba para alguns, ou a ditadura maoista na China ou até, pasmem, a mais primitiva e retrógrada ditadura europeia do pós-II Guerra: a Albânia? Nem toda a direita brasileira era golpista e nem toda a esquerda defendia ditaduras. Generalizações são pouco científicas. O ano de 1964 foi o final do enfrentamento entre duas propostas dominantemente autoritárias. 

A direita duvidava que o mundo do voto pluripartidário e da liberdade de imprensa conseguiria impedir o risco do avanço comunista. A esquerda usava slogans como o da UNE: "De que adianta democracia se a panela está vazia?" Venceu a proposta que estava mais armada com os óbvios resultados trágicos. Havia muitos projetos para salvar o Brasil em 1964, poucos eram comprometidos com a ideia clássica de sociedade aberta. Ambos, claro, eram os representantes mais legítimos das profundas aspirações do povo brasileiro, que deixava de ser muito consultado a partir de então. Para que voto se eu posso conduzir o proletariado ou as senhoras com rosários e panelas ao Paraíso?

Os anos de chumbo terminaram com inflação passando de 200% e desemprego alto. O Brasil encerrou o período de exceção ajoelhado diante do FMI. Raiou o glorioso sol democrático. Curioso: o novo governo Tancredo-Sarney era tão legítimo como o de Geisel, pois chegou ao poder pelo mesmo sistema indireto de colégio eleitoral. Porém, como sempre, poder de quem eu simpatizo é legal e repressão contra quem eu detesto é um mal necessário.

Só aqui em Macondo é que pode terminar um ciclo ditatorial com o poder entregue ao líder do partido durante a ditadura: Sarney. Tradição mantida: independência proclamada pelo herdeiro do trono português, República feita a golpes de sabre por um monarquista, revolução contra as oligarquias de 1930 liderada por um oligarca, Getúlio Vargas. Sarney foi a farsa de tragédias anteriores.

A Constituição de 1988 vinha selar o alvorecer democrático com seus direitos amplos e propostas de cidadania plena. Apenas um exemplo, em um país de maioria negra, finalmente, uma lei que criminalizava o racismo. Lembro-me de ter chorado ao ver Ulysses Guimarães promulgá-la, há 30 anos. Era um dia histórico e eu tinha 25 anos, sonhos, cabelos e esperança.

Novo ciclo de divisão: o cenário Collor e Lula. As ideologias se enfrentavam com a atenuante de não existirem redes sociais. Que saudade da polarização expressa em artigos de jornal. Parece-me hoje uma Belle Époque comparada ao padrão digital de 2018. Bom voto a todos. Acho que minha fé na democracia é como a fé em Deus de muitos: eu não vejo, mas sinto que seria bom. Tal como tantos, eu também espero um milagre. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


27 DE OUTUBRO DE 2018
COM A PALAVRA

Roman Krznaric acredita no poder da empatia para transformar indivíduos e sociedades. Nascido na Austrália e radicado na Inglaterra, o filósofo deu um giro pelo Brasil neste mês, incluindo uma escala em Porto Alegre, para o lançamento do livro Carpe Diem - Resgatando a Arte de Aproveitar a Vida (Zahar, 280 páginas, R$ 59,90 o impresso e R$ 39,90 o e-book) e falou também sobre a capacidade de se colocar no lugar do outro. Ao lado do filósofo e escritor suíço Alain de Botton, Krznaric é um dos idealizadores da respeitada The School of Life ("A Escola da Vida"), com sede em Londres e filiais em outras grandes cidades, como São Paulo. A instituição se dedica ao desenvolvimento da inteligência emocional, aplicando psicologia, filosofia e cultura ao cotidiano.

VOCÊ É UM DOS IDEALIZADORES DA SCHOOL OF LIFE E TAMBÉM DO MUSEU DA EMPATIA, FAMOSO, ENTRE OUTROS PROJETOS, POR CONVIDAR AS PESSOAS A CALÇAREM OS SAPATOS DE OUTRAS PARA QUE SE SINTAM COMO ELAS. VOCÊ AFIRMA QUE A EMPATIA É ALGO QUE SE PODE APRENDER. PARTICULARMENTE, SEMPRE PENSEI QUE, OU VOCÊ TEM, OU VOCÊ NÃO TEM EMPATIA.

A ideia da inteligência emocional remonta à década de 1990, quando o conceito foi criado pelo psicólogo Daniel Goleman. A boa notícia é que ela pode ser aprendida - é uma habilidade como a de dirigir um carro ou andar de bicicleta. A empatia, a capacidade de se colocar no lugar de alguém, entendendo seus sentimentos e perspectivas, é um dos componentes-chave da inteligência emocional. Como melhorar nesse aspecto? Em termos práticos, tem algo que todos nós podemos fazer: conversar com um estranho uma vez por semana. 

Converse com o tipo de pessoa com quem você normalmente não fala - o cara que lhe vende o jornal pela manhã, a pessoa que limpa o seu escritório... Por que fazer isso? Estamos todos carregando, dentro de nós, preconceitos, suposições, estereótipos sobre as pessoas. Julgamos os outros a partir da aparência, do que parecem ser. A conversa com um estranho é a primeira de muitas formas de praticar a empatia, porque você começa a perceber que as outras pessoas são, talvez, um pouco como você. É a prática do ato de ouvir. É assim que começamos a nos conectar com os outros, entendendo como eles veem o mundo e desafiando nossos preconceitos e suposições.

VIAJANDO TANTO, IMAGINO QUE VOCÊ TENHA A CHANCE DE CONHECER MUITOS ESTRANHOS, O TEMPO TODO.

Sim, conheço muitos. Mas você também pode viajar e não conhecer ninguém. Você tem que ter aquela coragem de sair de si mesmo e conversar com as pessoas. Olhe em volta. Mantenha seus olhos abertos, como um antropólogo. Você pode fazer isso na sua própria rua. Você pode ter uma conversa com o seu vizinho de porta ou com pessoas próximas com quem você nunca falou sobre amor. Por que não? Descubra o que elas pensam.

DE QUE OUTRAS MANEIRAS SE PODE EXERCITAR A EMPATIA NO DIA A DIA?

Se você está em uma discussão tensa, há três coisas que pode fazer para ouvir bem. A primeira é estar de fato presente, disponível para a outra pessoa. Escute-a, não a interrompa, não a julgue. A segunda é prestar atenção aos sentimentos dela. A terceira é ouvir quais são as necessidades dela. Você pode perguntar: do que você está precisando? É como mágica. Mesmo que você não consiga concordar, tudo bem, mas a voz dela estará sendo ouvida. Isso tende a reduzir a tensão. Vocês começam a criar vínculos. Quando você pergunta por que as pessoas se divorciaram, grande parte delas diz que foi porque o marido ou a esposa não as escutava. Existe um grande espaço na vida familiar para que se pratique a empatia, ouvindo e falando sobre sentimentos e necessidades. 

Com meus filhos, estou, com frequência, completamente enganado a respeito de como eles estão se sentindo ou o que estão pensando. É preciso muita conversa para entender realmente do que se trata, para entender o que eles sentem, para ver o mundo do ponto de vista do outro. Se você quiser que seus filhos sejam empáticos, não lhes dê uma palestra sobre empatia. Pratique a empatia com eles, molde-os, mostre a eles pela maneira como o casal se trata e conversa. É como uma criança aprende: observando o que acontece ao redor dela.

O QUE VOCÊ SABE SOBRE O CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO ATUAL?

Estou no Brasil neste momento de grande polarização política. Sei sobre Bolsonaro (Jair Bolsonaro, candidato do PSL à Presidência), sobre a campanha no WhatsApp e no Facebook... É incrível. O que me chama a atenção é que, não importa o resultado da eleição ou o que aconteça, esta é uma sociedade que terá de encontrar caminhos, criar pontes para lidar com essa divisão entre um lado e outro, e a empatia é uma das formas de fazer isso. Como podemos dialogar em torno dessa divisão? Quando você se coloca no lugar de uma pessoa para tentar entendê-la, o que não significa ter de concordar com ela, precisa criar espaços para dialogar. Tive um projeto em que eu organizava o que chamava de "refeições para conversar". Convidávamos pessoas de origens e trajetórias bem diferentes: muito ricas e muito pobres, negras e brancas, cristãs e muçulmanas... Em vez de lhes dar um menu de comida, entregávamos um cardápio de conversação. 

"O que você aprendeu sobre os diferentes tipos de amor na sua vida?" "De que maneira você gostaria de ser mais corajoso?" "Como suas prioridades devem mudar ao longo dos anos?" A ideia era que essas pessoas conseguissem estabelecer uma conexão e conversar por horas, não apenas um minuto, tentando atravessar a distância entre elas. Construir empatia. Não importa quem vença o segundo turno, a polarização vai continuar existindo e será necessário encontrar um jeito de a sociedade se conectar outra vez. É muito difícil um país funcionar baseado no ódio e no medo. Esses projetos de conversação são, acredito, o tipo de coisa em que os brasileiros deveriam pensar para tentar ajudar a reduzir a polarização. Trata-se de humanizar as outras pessoas.

EMPATIA, E NÃO POLÍTICA, PODE MODIFICAR NOSSA SOCIEDADE. COMO VOCÊ CHEGOU A ESSA CONCLUSÃO?

Quando eu atuava como cientista político, costumava pensar que você muda o mundo com novas leis, eleições e políticas públicas. Ainda acredito nisso de certa forma, mas o que aprendi, com os anos, é que mudanças fundamentais na sociedade acontecem por meio da empatia. Se você olhar para a história... Por exemplo, vivo na Inglaterra, e no século 18 houve o primeiro grande movimento social mundial contra a escravidão. Foi um movimento baseado na empatia. Ex-escravos foram chamados para falar em diferentes locais do país para que as pessoas pudessem encontrá-los e ouvir a voz deles. Elas podiam se colocar no lugar de um escravo. 

E esse movimento foi tão poderoso que levou a novas leis para abolir a escravatura e o tráfico de escravos. É um dos muitos exemplos na história que mostram que a empatia abre a porta para a nossa preocupação moral, enquanto leis e direitos mantêm essa porta aberta. É como vejo muitas mudanças fundamentais acontecendo, particularmente na luta pelos direitos humanos e pela justiça social. É claro que esse não é o único modo com o qual a história se constrói, mas é algo fundamental. Em um país onde houve uma guerra civil, como a Croácia, é essencial criar projetos de empatia para aqueles que estavam se matando uma geração atrás voltem a se falar de novo. A empatia é a base da construção da paz e de uma sociedade tolerante.

A EMPATIA VEM DIMINUINDO OU AUMENTANDO?

Existem evidências de declínio empático em diversos países. Na Grã-Bretanha, por exemplo, estudos mostram que há menos cuidado dos cidadãos em relação a pessoas que são diferentes, como os imigrantes. Ao mesmo tempo, a cultura digital está piorando tudo: quanto mais interações via Facebook você tem, mais narcisista você tende a se tornar. No mundo digital, é como se estivéssemos em uma câmara de reverberação, recebendo apenas notícias que reforçam nossos pontos de vista e nos conectando preferencialmente com pessoas que compartilham dos nossos pontos de vista. Acredito que há grandes desafios para o desenvolvimento da empatia nesse contexto. Por outro lado, há crescente valorização da importância da empatia. Por exemplo, em muitos países a empatia é um conteúdo ensinado às crianças na escola.

NOS TORNAMOS MAIS INDIVIDUALISTAS PELO QUE VOCÊ CHAMA DE CULTURA DA DISTRAÇÃO DIGITAL?

Sim, acho que nos tornamos mais individualistas. Cada pessoa checa seu telefone 110 vezes por dia. O narcisismo está contribuindo para o aumento do individualismo. A indústria da autoajuda diz que a grande questão é "quem sou eu?", "o que há para mim?". Acho que a grande questão do século 21 não é "quem eu sou?", mas "quem é você?". Essa é uma questão sobre empatia: dar-se conta de que aprendemos sobre a vida não apenas pensando sobre nós mesmos ou postando sobre as coisas maravilhosas que estão acontecendo nas nossas vidas, mas nos interessando pelos outros e aprendendo com eles. É por isso que tenho curiosidade pelos estranhos. Conhecer pessoas diferentes da gente é algo energizante, nos dá novas ideias, mas também é parte do jeito pelo qual expandimos nosso círculo moral, nosso "eu" ético. E acho que é muito difícil fazer isso online.

NO LIVRO CARPE DIEM, VOCÊ AFIRMA QUE O ESPÍRITO DESSA EXPRESSÃO FOI SEQUESTRADO, ROUBADO DE INÚMERAS FORMAS, E QUE NÓS DEVEMOS RECUPERÁ-LO SE QUISERMOS VIVER A VIDA AO MÁXIMO. PODE FALAR UM POUCO SOBRE ISSO?

Carpe diem é essa frase latina antiga, de 2 mil anos atrás. Em inglês, é traduzida como "aproveite o dia", como "aproveitar uma oportunidade", uma oportunidade que pode desaparecer, como a chance de trocar de carreira ou de salvar um relacionamento que está se desfazendo. Em português, se eu olhar para a capa do meu livro na edição brasileira, diz "aproveitar" no sentido de aproveitar o prazer. Se formos para a Holanda, poderemos traduzir carpe diem como "colher o dia", como você colhe ou pega uma flor. É mais gentil. Em meu livro, exploro esses diferentes significados. O significado de carpe diem foi sequestrado de várias formas. A primeira foi pela cultura do consumo: lemos "apenas faça isso" como "apenas compre isso" (alusão ao slogan da Nike em inglês, "just do it"). Em vez de aproveitar o dia, aproveitamos nossos cartões de crédito. A liberdade se tornou uma escolha entre diferentes marcas: Nike ou Adidas? IPhone ou Samsung? 

Quando o poeta romano Horácio disse carpe diem pela primeira vez, tenho certeza de que ele não pensava que "aproveitar o dia" se resumisse a conseguir uma barbada em um shopping, ou a comprar com um clique, ou a escolher entre Nike ou Adidas. É sobre tomar grandes decisões na vida, e não sobre tomar decisões de consumo. A segunda forma de sequestro é uma que todos nós conhecemos, a cultura digital. "Faça isso" se tornou "tuíte isso", "compartilhe isso", "poste isso". Antes de viajar para cá, estava pesquisando sobre a vida brasileira nas mídias sociais e descobri uma estatística surpreendente: os brasileiros passam, em média, três horas e 43 minutos por dia navegando nas redes sociais. É um dos índices mais altos do mundo. Incrível. Isso significa que, quando você chegar aos 75 anos, terá passado nove anos da sua vida nas mídias sociais. Imagine chegar ao fim da vida, olhar para trás e pensar: "Eu passei nove anos da minha vida em uma tela". 

Claro que podemos ter relações reais e sentir emoções assim, mas viver é a experiência direta, não é assistir às pessoas vivendo suas vidas em uma novela ou ver os posts dos outros no Facebook. Portanto, este é o segundo sequestro: nos tornamos altamente viciados em redes sociais, e a maior parte dos aplicativos é elaborada de forma a fazer com que a dopamina, ligada ao prazer, invada nossos cérebros. Estamos tentando aprender a lidar com isso. É difícil. Temos que reconquistar o espírito do carpe diem levado pela cultura do consumo e pela cultura digital.

EXISTE ESSA OBSESSÃO CONTEMPORÂNEA COM A OCUPAÇÃO DO TEMPO, E ACREDITO QUE ÀS VEZES, SECRETAMENTE, CRITICAMOS QUEM NÃO RESPONDE À PERGUNTA COMO VOCÊ ESTÁ? COM ALGUMA REFERÊNCIA A TONELADAS DE TRABALHO. ESTAMOS DESPERDIÇANDO NOSSO TEMPO?

Às vezes, as pessoas me perguntam: "Você está ocupado?". Quando respondo que não, elas me olham como se eu fosse um fracasso. O problema é o culto ao gerenciamento do tempo, em que a produtividade e a eficiência são tidas como grandes virtudes humanas. Eu discordo. Acho que o gerenciamento do tempo é uma maneira de nos fazer trabalhar cada vez mais duro e enfiar cada vez mais trabalho em nossas vidas - o que pode ser bom para nossos empregadores, mas não necessariamente para o nosso bem-estar. Acho que mais e mais pessoas estão começando a se dar conta de que a mercadoria mais preciosa é o tempo, e não o dinheiro. Elas querem tempo livre para investir nos mais diversos aspectos de quem são - paixões, talentos, criatividade. Para isso, não podemos estar superocupados o tempo inteiro. Na Europa, há um movimento crescente a favor de uma semana de trabalho de quatro dias. Mais e mais indivíduos prefeririam ter 20% a menos de renda e 20% a mais de tempo. Já está mais do que na hora de mandar esse culto ao rendimento para a lata de lixo da história.

O SITE DA SCHOOL OF LIFE VENDE ALGUNS ARTIGOS, ENTRE ELES AS CARTAS DA RESILIÊNCIA. COSTUMAMOS SUPERESTIMAR NOSSA FRAGILIDADE? E QUANTO AO CONTRÁRIO: SUPERESTIMAMOS O QUÃO FORTES SOMOS?

Acredito que nosso nível de resiliência é uma questão bastante pessoal, que depende de nossas experiências próprias. Muitas pessoas que trabalham em ambientes muito másculos e que se consideram extremamente confiantes são, na verdade, com frequência, frágeis. Talvez eles não tenham "praticado" a vulnerabilidade emocional, então, quando as coisas ficam difíceis - perdem o emprego, divorciam-se -, podem encontrar dificuldade para administrá-las ou não saber como conversar com alguém sobre seus problemas. 

Nesse caso, as pessoas superestimam sua força. Ao mesmo tempo, as pessoas são menos frágeis do que imaginam. Seres humanos são criaturas incrivelmente resilientes. Podemos enfrentar traumas terríveis - como uma morte na família - e, de alguma forma, nos recuperarmos. Mas precisamos ficar atentos à crescente crise da saúde mental. Na Europa, cerca de uma em cada quatro pessoas terá um problema de saúde mental em algum momento da vida. A mensagem que esse dado pode estar nos passando é a de que nossos níveis de resiliência psicológica estão em declínio.

A BUSCA DA PERFEIÇÃO É UM ERRO? ESSE MESMO JOGO DE CARTAS DIZ QUE BOM JÁ É O BASTANTE.

Quando meus filhos gêmeos nasceram, me esforcei muito para ser o pai perfeito. Quando ia a um café e os bebês começavam a chorar, me sentia envergonhado, um pai terrível. Mas aprendi que a filosofia do "ser bom o suficiente" é extremamente útil, nos ajudando a parar de nos sentirmos mal a respeito de nossas falhas e a reconhecer que não precisamos ter uma performance de superstar como pais, parceiros em um relacionamento ou trabalhadores. Tudo depende das pessoas com quem nos comparamos. Se você é um artista e só se compara a Picasso, se sentirá um fracasso. Podemos escolher com quem nos comparar, e esse é o segredo do "suficientemente bom".

LARISSA ROSO

27 DE OUTUBRO DE 2018
PAULO GLEICH

ANTÍDOTO À MELANCOLIA



Na noite deste domingo, salvo algum imprevisto, conheceremos o próximo presidente eleito do Brasil. Independentemente do resultado, antevejo que o clima não será de alegria, nem em boa parte daqueles que votaram no vencedor. O que estas eleições expuseram a olho nu - e em carne viva - não é apenas uma polarização, comum em processos eleitorais, mas uma fissura crescente que ameaça as bases do convívio entre as pessoas.

Isso se fez notar não só nas tantas brigas em redes sociais e entre amigos e familiares, mas no próprio clima que se sente nas ruas. No último sábado, belo dia de sol, uma churrascaria sempre cheia ao meio-dia estava com metade das mesas vazias. O mesmo foi relatado em relação a bares e outros locais de convívio: tem sido difícil se juntar, comemorar, confraternizar. A desconfiança e a animosidade no ar transcendem o período eleitoral.

Impera um clima que convoca ao recolhimento melancólico, desesperançoso em relação à possibilidade de tempos melhores. Muitos amigos e conhecidos evocaram um filme de Lars Von Trier, Melancolia, no qual duas irmãs aguardam a chegada de um planeta que se chocará com a Terra e dará fim à vida, sem qualquer possibilidade de outro desfecho. É como se a piada que circulava tempos atrás, "Vem, meteoro!", estivesse próxima de se concretizar.

Tudo indica que os próximos tempos não serão nada auspiciosos em nosso país, que ainda lidaremos por um bom tempo com os efeitos do que tem acontecido ao longo dos últimos anos. O resultado de uma eleição não cura a fratura que se expôs, e será preciso muito trabalho para reatar consensos mínimos que possibilitam a vida em conjunto - seja nas relações afetivas, seja no laço social.

Neste momento, um grande desafio que se coloca é resistir à tentação de sucumbir à melancolia, que nos empurra à indiferença com o que acontece e com nossas próprias vidas. Ela embota não só a alegria como o pensamento, por colocar no horizonte um desfecho catastrófico que retira de qualquer ato a possibilidade de significado - como o sujeito depressivo que diz "Se no final vou morrer, que diferença faz?".

Um dos maiores antídotos à entrega à melancolia é estar com quem gostamos. Não para acirrar o confronto entre "nós" e "eles", mas para alimentar aquilo que nos mantém vivos e desejosos de viver: o amor, mas também o trabalho criativo, que sempre tem em seu horizonte encontrar os outros. Em Os Invisíveis, belíssimo filme alemão que acompanha a vida de quatro judeus na Berlim nazista, são esses laços que possibilitam sua sobrevivência em meio ao terror.

Na contramão da atmosfera que chamava a ficar sozinho em casa, no fim de semana passado estive com vários de meus "antídotos". Organizei com duas amigas um encontro para a Feira do Livro sobre sonhos e criação, temas tão importantes nesse momento. Fui prestigiar um amigo no lançamento de seu livro, Não Existe Mais Dia Seguinte, que, apesar do título, fala em suas crônicas da urgente importância dos afetos. Planejei com uma amiga uma festa conjunta de aniversário, mesmo com nosso desânimo. Fui à comemoração de um ano da filha de um casal de amigos, que com sua alegria nos lembrou de cuidarmos da nossa. Terminei a noite de domingo ao lado de um grande amor.

Freud escreveu sobre duas forças que organizam nossa vida, as pulsões de vida e de morte, eros e tanatos. O desafio de cada um, mais urgente do que nunca, é não deixar que se apague a chama de eros.
PAULO GLEICH

27 DE OUTUBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

SAÚDE E DINHEIRO



apesar do alto investimento financeiro, expectativa de vida nos estados unidos só cai

Dinheiro não traz felicidade, diz o povo. Embora haja controvérsias, a julgar pelo exemplo dos Estados Unidos, nem saúde: pelo segundo ano consecutivo, a expectativa de vida dos americanos diminuiu.

Em 1960, eles tinham a expectativa de vida mais alta do mundo. Chegava a 2,4 anos a mais do que a média dos países da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development - uma cesta de 35 países, entre os quais os mais ricos e desenvolvidos). Em 1998, a expectativa de vida no país ficou para trás da média da OECD. Hoje, a diferença já é de 1,6 ano: 78,7 anos contra 80,3 anos na OECD.

Um painel conjunto do National Research Council e do Institute of Medicine investigou as causas dessa desvantagem crescente. A conclusão foi a de que a saúde dos americanos é mais pobre em diversos aspectos: obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, ferimentos, homicídios, complicações de parto, gravidez na adolescência, consumo de drogas ilícitas e infecções pelo HIV.

Ficou evidente, também, que o estilo de vida é menos saudável do que o dos países da OECD: as cidades privilegiam o automóvel, a população costuma ingerir alimentos altamente calóricos, abusar de álcool e possuir armas de fogo. Aqueles com renda familiar mais baixa têm menos suporte social, previdenciário e acesso limitado à assistência médica.

As mortes por overdose aumentam a cada ano. Em 2015, foram 64 mil; neste ano, serão 70 mil, números que ultrapassam o total das mortes de soldados americanos na guerra do Vietnã.

Numa análise publicada no Bristish Medical Journal, por Steven Wolf e Laudan Aron, os autores consideraram esses óbitos a "ponta do iceberg" de uma crise de saúde mais abrangente: a mortalidade associada ao abuso de álcool e aos suicídios, que afeta especialmente os brancos de meia idade e certas comunidades rurais.

As causas estariam ligadas ao colapso das indústrias locais, à erosão dos laços comunitários, ao isolamento social, à pressão financeira e à consciência dos trabalhadores de que perderam o padrão de vida que os pais um dia tiveram.

Entre os negros, o número de suicídios e de mortes por overdose não aumentou. Os autores atribuem esse fenômeno à maior resiliência de mulheres e homens negros, habituados a enfrentar desvantagens econômicas, discriminação, preconceito social e mortalidade geral mais elevada.

De outro lado, nos últimos anos, as diferenças sociais se acentuaram, a performance escolar piorou, os salários da classe média estagnaram e os níveis de pobreza aumentaram em relação aos dos países desenvolvidos. O país é rico, mas desigual: os mais pobres têm dificuldade de acesso a serviços sociais, à assistência médica, à prevenção e ao tratamento de transtornos psiquiátricos e dependência química.

Os Estados Unidos investem em saúde 17% de um PIB de US$ 19 trilhões, ou seja, cerca de US$ 3,2 trilhões. É mais do que o PIB inteiro do Brasil. Para justificar esse gasto, o americano médio deveria viver 110 anos, pelo menos. Quem nasce em Santa Catarina vive mais.

DRAUZIO VARELLA


27 DE OUTUBRO DE 2018
JJ CAMARGO

PARA NUNCA ESQUECER

relatos de testemunhas oculares do 11/9 liquidaram com meu dia

A nossa reação à tragédia se submete a uma variável poderosa: a distância. A micro fatalidade de um familiar parecerá sempre mais importante e comovedora do que a mega desgraça ocorrida do outro lado do mundo. E isso é compreensível: o que não vai alterar a monotonia da nossa rotina pode merecer uma exclamação, mas nada que não se resolva com um bocejo.

Como a nossa sensibilidade pode estar entorpecida, mas não eliminada, pela geografia, ao nos aproximarmos do local da iniquidade somos assaltados pela emoção das testemunhas que estavam lá de alma escancarada. É assim quando os turistas visitam Auschwitz, na Polônia, e encaram as marcas das unhas dos prisioneiros nas paredes de cimento das câmaras de gás ou excursionam pelo Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.

A imagem que arquivei daquele 11/9 se diluía com a lembrança do que eu estava fazendo naquela manhã de terça-feira, e recordo o pessoal da UTI correndo para o quarto do plantonista a tempo de ver que o céu azul na extremidade de Manhattan emoldurava as Torres Gêmeas invadidas por aviões e, por fim, ruindo, como ninguém imaginou que pudesse acontecer. Pois foi com o sentimento pífio da mera curiosidade que recentemente visitei o 9/11 Memorial Museum, erguido ali onde outrora duas torres tinham se tornando a obsessão dos inimigos por representarem, na parca visão deles, o símbolo mais pungente do capitalismo ateu. 

Entra-se no memorial, baixa-se um aplicativo no celular e, a partir daí, percorre-se durante até três horas o roteiro da tragédia, a começar pelo preâmbulo representado pela explosão de bombas no subsolo do World Trade Center, em 1993. Anos depois, no laptop de um terrorista, encontrou-se seu pedido de desculpas ao seu líder por ter superestimado o dano potencial daquele atentado, mas deixando o alerta de que o WTC seguiria como alvo no futuro.

O planejamento audacioso, a escolha do dia (a terça-feira é quando os aviões estão sempre menos lotados e, portanto, haveria menos gente para ser dominada pelos poucos terroristas), a seleção de aeronaves gigantes para voos de costa a costa (os tanques cheios de combustível teriam uma participação crucial no atentado) e, principalmente, a assustadora disponibilidade de fanáticos suicidas estão brilhantemente relatadas em Plano de Ataque, de Ivan Sant?

Anna, um livro imperdível. Mas nada mexe mais com a emoção dos turistas que percorrem o memorial do que as fotos das quase 3 mil pessoas, oriundas de 77 países, com idade entre dois e 85 anos, mortas naquele dia fatídico e os depoimentos de dezenas de testemunhas oculares, cujos relatos estão gravados nas paredes. Alguns desses liquidaram com o meu dia e estão lá disponíveis para liquidar com o seu:

"Estamos nos deslocando muito devagar, não vai dar tempo, nós estamos caminhando para a morte" - uma agente de segurança ajudando pessoas na descida da escada do 77º andar.

"Eu tentava animar meus companheiros, dizendo: aguentem firme que nós vamos resgatá-los. Mas eu sabia que não havia mais nada que eu pudesse fazer por eles" - chefe dos bombeiros.

"Eu fiquei parado, vendo aquela mulher olhando para baixo durante um tempo. E, então, ela saltou. Tentei ver para onde, e só havia uma nuvem escura. Foi quando pensei: esta torre com seus ferros retorcidos e vidros pulverizados agora tem uma alma humana!" - um sobrevivente.

"Era uma mulher jovem, com a jaqueta amarela, que olhou um tempo para baixo, depois tirou a jaqueta e pulou. Não sei porquê ela fez aquilo, mas não consegui olhar para mais nada" - um sobrevivente.

"Eu trabalhava na portaria da Torre Norte. Quando a Torre Sul desmoronou, nós soubemos que a nossa também ia cair porque o rangido era igual. E então começamos a correr tentando escapar da nuvem que baixava. Sou uma mulher grande e forte e puxei pelo casaco xadrez uma menina que só chorava e não saía do lugar. Corri muito puxando aquele casaco, quando a nuvem nos alcançou. Acordei numa ambulância cheia de cortes na cabeça e nas costas. Ainda segurava o casaco xadrez, mas ninguém sabia da menina".

ao nos aproximarmos do local da iniquidade, somos assaltados pela emoção das testemunhas que estavam lá de alma escancarada

JJ CAMARGO