sábado, 29 de junho de 2019



29 DE JUNHO DE 2019
LYA LUFT

Uma insensata rosa

Por que não começar citando Borges: "Por que brota de mim - quando o corpo repousa e a alma fica a sós - esta insensata rosa?".

Talvez seja uma boa resposta - ou proposição de novo enigma - para a pergunta tão comum sobre a inspiração. De onde ela vem? Como aparece, de que lugar obscuro emerge, ou cairá dos céus?

Nunca encontrei resposta certa, mas essa frase de Borges me parece adequada. Não sabemos a resposta, eu não sei, talvez não haja. O termo "inspiração" já desperta alguma suspeita de quem trabalha com arte, seja ela qual for: música, pintura, escultura, literatura, teatro, dança, não importa. Pois nem sempre estamos bem dispostos (alguém diria "inspirados"), mas em geral temos de prosseguir no trabalho. 

Há trabalhos que precisam ser feitos, mesmo tratando-se de arte, um pouco mais complexa do que engenharia, economia e outros - ou não -, ainda que não tenham nos dado duros prazos, ou prazo algum. Posso parar por algumas horas, dias, e - pelos muitos anos de experiência - sei que, se for bom para meu livro, a vontade, o encantamento, a palavra ou frase, o personagem, voltarão no lugar certo, na hora certa.

Mas não há garantias, é sempre um passeio à beira do abismo.

Gosto de emprestar, nesse assunto, o episódio descrito por Marguerite Yourcenar: ela escrevia um texto, absorta, sobre a morte de Zenon, para seu livro, quando chega o encanador para consertar algo na pia. Marguerite levanta, ele entra, conversam um pouco, ele faz seu trabalho, ela paga, ele senta a convite dela e conversam mais um pouco. Yourcenar e sua companheira moram num lugar remoto, nevava lá fora, e o trabalho do encanador era importante. Ela lhe oferece café e o pão que tinha assado naquela manhã.

E, quando o encanador se vai, diz ela, maravilhosamente: "A morte de Zenon continuava lá, à minha espera". A frase dela me parece gloriosa e verdadeira, e nos dispensa, a nós artistas, de dar com muita facilidade essa desculpa "não me veio inspiração". Acho fácil demais, preguiçosa demais, simples demais, essa explicação. Em geral, não ficamos aéreos aguardando que algo suba de nossas entranhas ou desça das nuvens, a não ser em alguns necessários e meio inexplicáveis momentos. Além disso, falo por mim, pois cada escritor, ou outro artista, tem seu jeito, suas maneiras, recursos, hábitos e chatices.

O que funciona é um encantamento com uma palavra, um rosto, um drama, um fato qualquer. E aquela criatura, humana ou não, começa a ter corpo, sofrimentos, felicidades: e a gente se apaixona, e inventa uma paisagem interior, talvez também externa - e escreve.

E trabalha: arte é trabalho, às vezes duro, exaustivo, que nos exalta ou abate, em que acreditamos ou desacreditamos, mas - operários que somos - continuamos a exercer. Queremos a frase melhor, a curva melhor, o som mais precioso, o gesto mais expressivo, ainda que nos pareça, muitas vezes, nosso absoluto fracasso e total ruína.

Além da dura lida, importa, sim, aquela insensata rosa que desabrocha quando menos esperamos: além dos ruídos, das tristezas, das euforias, e das cotidianas chateações. Inspiração, quem sabe, existe.

LYA LUFT

29 DE JUNHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Jejum salva



Milhões de pessoas ainda sentem fome neste país, porém outros tantos milhões comem e ainda ficam acima do peso ideal. A fórmula para manter a boa forma não é segredo: alimentação balanceada + exercícios físicos. Mas, como se sabe, nada é tão simples, e mesmo quem não é gordo costuma penar para perder os famosos dois quilinhos extras - meu caso. Troquei o suco de laranja pelo suco de uva integral, tento evitar pão branco, procuro comer mais frutas e verduras, enfim, medidas paliativas que a gente adere quando o caso não é grave.

No momento, ando atraída pelo novo queridinho de quem ama dietas: o jejum intermitente, que consiste em passar 12, 14, 16 horas sem ingerir nada além de água. Não adote este jejum sem consultar antes um especialista. Estou trazendo o assunto porque sou das que acreditam que o corpo armazena nutrientes suficientes para manter nossa energia, mesmo sem a gente se alimentar por um longo período (volto a dizer, converse com um profissional) e também porque o tema serve de gancho para discutirmos outro jejum, e esse qualquer um pode começar agora mesmo. É o jejum existencial. Não para ficar magro, e sim para ficar leve.

As pessoas se empanturram de encrencas, sem levar em conta a inteligência emocional. Já ouviram falar vagamente a respeito, acham que todo mundo é beneficiado por ela, mas, na prática, continuam investindo no autoboicote, e dá-lhe vida pesada. Jejum é a solução. Jejum salva.

Passe 12, 14, 16 horas sem pensar que estão te perseguindo, sem fazer fofoca dos outros, sem criar confusão, sem levantar a voz, sem acreditar que é mais sabido que os demais, sem achar que o mundo lhe deve favores e reverências, sem chatear a humanidade. O que é um chato? Cada um tem uma definição. 

A minha: é aquele que acha que todos estão interessados no que, na verdade, só a ele interessa. Então, corte as minúcias, corte o egocentrismo, corte a soberba, corte a desconfiança, corte a brutalidade, corte a deselegância, corte a impaciência, corte a arrogância. O que sobra? Um cara querido, uma garota fácil de lidar, gente bem-humorada sem nariz empinado. O que sustenta essa gente? A autoestima. Ninguém precisa ser grosso para ser visto. Ninguém precisa ser exibido para ser amado.

Corte queixas, implicâncias e a tendência a rugir por besteiras. Não seja o terror das reuniões, o namorado estressado das festas, a sobrinha que faz longos discursos durante o churrasco, a vítima de sempre no grupo de WhatsApp, o magoado eterno. Evite colocações inoportunas e não procure cabelo em ovo. Que ovo? Jejum! Por 12, 14, 16 horas seguidas, não crie caso. Duas vezes por semana, procure não ser tão pessimista, alarmista, ranzinza. Deixe o celular carregando em casa e vá dar uma volta a pé no quarteirão para descarregar-se. Emagrecer é difícil, perder peso não é.

MARTHA MEDEIROS


29 DE JUNHO DE 2019
CARPINEJAR

O x da questão

O gaúcho é apaixonado por pão. O churrasco apenas tem sentido com pão de alho. Quem é de fora não vai entender. Sem a entrada, o sabor da picanha se esvai, a costela não tem a mesma realeza.

O pão de alho não é um acessório, mas um protagonista da churrasqueira, um familiar gastronômico tão importante quanto o salsichão. Não há como dispensá-lo da tertúlia dos espetos. Sua ausência provocará imediato boicote e sucessivas vaias.

Gaúcho molha o pão na sopa, molha o pão no café com leite, molha o pão na massa para limpar a porcelana, molha o pão na feijoada para pescar o baio.

O pão é um segundo garfo. Um talher de nossa ansiedade. Tanto que existe a tradição imperiosa do xis nos pampas. Em vez do hambúrguer, priorizamos esse banquete portátil.

É colocar tudo dentro do pão e prensar. É a principal refeição das madrugadas gaudérias quando os restaurantes estão fechados.

Quem já não saiu de uma festa ou de um jogo de futebol ou de um show e foi matar a fome num trailer de sua preferência? Se não fez isso ainda, não pode ser chamado de gaúcho.

O xis é um PF (prato feito) no pão. Um prato de caminhoneiro no pão. Um prato de estivador no pão. É o equivalente ao tropeiro mineiro, só que condicionado entre duas fatias.

Trata-se de uma variação escandalosa do portenho choripán. Uma dissidência carnavalesca e carregada de elementos da versão econômica de nossos co-irmãos.

O mais conhecido é o salada: carne, ovo, tomate, alface, maionese, milho. Mas pode homenagear todos os menus, de strogonoff com batata palha a lasanha com camadas de queijo e presunto.

Num mero sanduíche, repete-se as etapas de um rodízio de carne. Assim o vivente tem a oportunidade de comer um x-coração ou um x-lombo e sentir de volta o gostinho do fogo de chão no céu da boca.

A mordida requer malabarismo. Não se deve mastigar de qualquer jeito para não desmoronar a obra de arte. Os incautos correm o risco de perder o recheio na primeira dentada. Os joelhos necessitam de afastamento, os braços pedem a posição concentrada de mesa, e, de modo nenhum, recomenda-se virar os olhos para o lado. Apreciá-lo depende essencialmente de foco: não dá para conversar e comer ao mesmo tempo. O alimento é muito sensível ao deslizamento.

Quando alguém devora um xis, a sensação é que ele está rezando. Agradecendo a Deus por morar no Rio Grande do Sul.

CARPINEJAR

29 DE JUNHO DE 2019
PIANGERS

Um dia de domingo

Acordei com as crianças na cama, era domingo e minha esposa estava viajando, peguei um livro para ler no sol. A mais velha acordou e veio sentar comigo no sofá. Conversamos um pouco, ela sente falta de falar comigo sozinha, sem a irmã por perto. Eu sinto falta de conversar só com ela também. Sinto falta de quando ela tinha sete anos e íamos no shopping tomar suco e assistir qualquer filme no cinema. Queríamos mesmo era comer pipoca. Invariavelmente, acabávamos saindo antes do filme terminar.

O tempo me separa da minha filha adolescente. Ela está cada vez mais envolvida nos estudos, nas aulas extras, nos jogos e nas séries que aprendeu a amar. Ela não tem nem 15 anos e já sinto que está indo embora, aos poucos.

Preparamos o café da manhã, ovos mexidos, torradas com mel, iogurte natural e granola. A mais nova acordou com o brado habitual: "Papai!". A mais velha lamentou o fim do nosso tempo exclusivo. Fui até a cama, a pequena se pendurou nas minhas costas. "Uber!", ela diz, quando sou sua locomoção. A viagem até a cozinha durou quatro segundos e custou três beijos na bochecha.

Coloquei pra tocar uma música calma no celular. Combinamos que cada um poderia escolher uma música. Eu sempre escolho Billie Holiday. A mais velha sugere bandas francesas de adolescentes que fazem música no quarto. A mais nova quer ouvir O Sol, do Vitor Kley. Comemos juntos cantando "quando você vem tudo fica bem mais tranquilo", imaginando se o Vitor Kley imaginava que essa composição faria tanto sucesso.

Conversamos demoradamente, sobre a escola, os colegas, as coisas engraçadas que aconteceram nos últimos dias. Já eram quase onze da manhã quando lavamos a louça, ouvindo um disco ao vivo do Caetano Veloso. A casa ficou em silêncio de novo, cada uma fazendo a tarefa escolar, enquanto eu tentava novamente ler o livro, interrompido por eventuais "papai, me ajuda?". Fomos até o supermercado. Compramos arroz e brócolis. Expliquei para a pequena que ela faria seu primeiro almoço. Ficou bom.

De tarde, fomos tomar sorvete e ver o pôr do sol. No bar da esquina tocava blues. No entardecer os jovens começavam a flertar. Perguntei quando minha filha iria finalmente descolar um crush. Ela me empurrou, encabulada. Voltamos para casa a pé. Começava a esfriar. Elas tomaram banho e cada uma pegou um livro. Lemos juntos, com toalhas protegendo os travesseiros dos nossos cabelos molhados. A mais nova dormiu primeiro, eu e a mais velha ainda ficamos conversando até tarde. "Baiati", dissemos, que é como dizemos "boa noite", desde que a mais nova tinha dois anos e não sabia falar direito.

A vida é um amontoado de instantes, um depois do outro, e teremos cada vez menos instantes, daqui pra frente. Alguém já disse que no final importa menos quantos dias teve sua vida, mas quanta vida teve nos seus dias. Tem vezes que, enquanto estou vivendo o momento, já estou sentindo saudade.

PIANGERS


29 DE JUNHO DE 2019
ENTREVISTA

"Startup é a maior democratização da inovação a que já assistimos"

Tem um toque gaúcho no cenário da tecnologia disruptiva brasileira. Nascido em Horizontina e graduado em Informática pela PUCRS, com especializações no Exterior, Cristiano Kruel está à frente do departamento de inteligência e inovação da StartSe, empresa com foco na educação para a realidade das startups, com filiais espalhadas pelo mundo - Brasil, China e EUA.

- Nossa proposta é continuar reaprendendo e redesenhando habilidades. Porque todos nós fomos impactados com essa coisa de Vale do Silício - afirma Kruel.

Neste mês,comandou a AgroTech Conference, voltada às startups do agro, trazendo cases de sucesso e apostas de novidades que vêm sendo desenvolvidas mundo afora. Em entrevista, ele avalia que o maior beneficiado com o cenário atual será o consumidor final. Confira trechos.

Startup era vista como coisa de gente maluca ou com muito dinheiro. E hoje?

Startup é a maior democratização da inovação a que já assistimos. Nunca foi tão barato "startupar". O que é uma startup? É um experimento. Se toparmos com uma quantidade de dinheiro, para o sprint (a arrancada) e, ao final, tivermos aprendizado, isso não é falha, é um ciclo. A quantidade de experimentos no mundo explodiu e, quando isso ocorre, o que acontece com o pace (ritmo) de inovação? Explode junto. Ouvir falar de startup e achar que o mundo está mais rápido, faz todo o sentido. É um movimento econômico sustentável. Tem fundamentos sólidos, e é uma nova lógica de empreender e de inovar.

É a chamada nova economia?

Sim, e é muito mais acelerada, muda o poder de mãos, cria novo tabuleiro de competição. O "Nubankinho" briga com o "Itauzão". O problema da Ford era a GM. Essa ruptura nos modelos de negócios está pegando muita empresa bacana desavisada. Tem empresa de sucesso que não consegue se transformar.

Se a democratização da informação barateia o acesso às tecnologias, por que o agronegócio ainda é dominado por gigantes?

Existem dois tipos de gigantes. O tipo dinossauro, que vai morrer. E o fênix, que vai morrer e renascer das cinzas. Há, além das startups unicórnio, as quimeras (figura com aparência híbrida de dois ou mais animais). Empresas como Amazon, Alphabet, Alibaba e Tencent são quimeras. Nasceram como startups, viraram meconglomerados, mas não perderam o espírito de continuar "startupando". E isso parece ser o DNA de uma organização moderna. Diferente de uma empresa tradicional, que se criou com a lógica de melhorar sempre. E o mundo de startup, é poderosa nova ciência de gestão.

Quando será barato utilizar produtos criados por startups?

Antigamente, qual a opção para ir para casa? Ou pegava táxi, ou ônibus, ou metrô. Hoje, quantas tenho? Só de aplicativos, uns 30. Nessa oferta de transformação, o benefício garantido da startup é o do consumidor. Porque passamos a ter opções mais amplas.

E isso inclui o produtor? Há quem o considere conservador...

Ouço muito que o agro é tradicional, conservador. Mas acho estranho, porque os caras que desbravaram esse Brasil são uns loucos de empreendedores. Enterram um caminhão de dinheiro na terra e ficam olhando para o céu. Embora se achem conservadores, são excepcionais tomadores de risco. Talvez é porque tem muita coisa nova e diferente, e os ciclos no agro são longos.

Nos outros setores, as respostas são mais rápidas?

No mundo digital, é teste AB. Boto agora e vejo quem clicou e quem não. O agro é fantástico, temos de celebrar demais as conquistas. Mas a gente usa muito uma vantagem que Deus nos deu: terra, água e sol. E temos de usar. Só que é muito perigoso. Se alguém, em algum lugar do mundo, em um pote de flor, com um litro de água, produzir mais proteína do que em um hectare, vai morrer esse negócio. Temos de cuidar para a vantagem não inibir a capacidade de questionar se o jeito que fazemos é o do futuro.

Como funcionará a Cap Table, braço de captação de recursos que vocês lançarão?

É alternativa de investimento de crowdfunding, que ainda não é muito popular. Esse ecossistema ainda não tem no Brasil a maturidade dos ambientes de fora.

*A colunista viajou a convite da StarSe - GISELE LOEBLEIN*


29 DE JUNHO DE 2019

LEANDRO KARNAL

Os desmemoriados

Dia desses meu celular me avisou: memória cheia. Tive que carregar na nuvem parte das fotos e vídeos, descarregar muitos textos e aulas no HD físico de meu computador portátil. O mesmo smartphone que sofre com excesso de informações consumindo sua memória me alerta, todos os dias, para o uso da bateria, que se esvazia. Pus-me a pensar sobre como o aparelho é uma metáfora ou, talvez mais propriamente, um sintoma do que vivemos. Vivemos cheios de memória e nos arrastamos, sem muita energia, procurando uma fonte que nos recarregue.

O problema da memória sempre me fascinou. Em nossa história primitiva, não havia suporte para a memória. Existia, apenas, a tradição oral, os saberes passados de geração em geração. Quando morria um ancião, morria uma fonte de memória. Conhecimentos não transmitidos poderiam se perder. A carga do que podíamos aprender era limitada a nossa capacidade de memorizar e reinventar dados e narrativas. Os antigos, ao inventarem os diversos alfabetos, criaram poderosos mecanismos de suporte para aquilo que antes encontrava o limite de nossas sinapses. A escrita abriu a memória, pois em papel, papiro, pedra ou couro, podíamos anotar nossos conhecimentos, impressões do mundo, histórias, ciências e deuses.

Um universo de expansão da memória estava potencialmente em nossas mãos. Mas estava restrito a uma minúscula camada das sociedades que dominavam essa técnica preciosa. No Egito, escriba era profissão que se passava de pai para filho. Saber ler era segredo de Estado, de religiões. Ler era fonte de poder. Alheio à mágica da palavra registrada, o mundo continuou profundamente dependendo da memória possível de nossos cérebros.

Criamos palácios da memória, formas e técnicas de adestrar nossa capacidade de guardar informações e mobilizá-las quando necessário. Tutores gregos e romanos exigiam que seus pupilos decorassem longos trechos de poesias. O máximo que se tinha era o auxílio de um antepassado do caderno, feito de tábuas de madeira com cera, sobre a qual, por meio de um estilete, tomavam-se algumas notas. Memorizadas, a cera era raspada, apagando-se a informação anterior. "Tábula rasa" é expressão usada até hoje. Acreditavam os antigos que a memória dependia do músculo cardíaco e saber algo de cor (em inglês, by heart; em francês, par c?ur) manteve algo dessa crença.

A popularização da escrita foi lenta e sua massificação é muito recente. Continuávamos dependendo da nossa própria memória. A imprensa foi um enorme impulso e, com essa máquina, revoluções ocorreram. A ciência se expandiu sobre moldes matemáticos, conhecimentos de todo o mundo passaram a circular com maior rapidez. Iniciavam-se os tempos modernos. Por outro lado, manteve-se certo caráter sagrado da palavra escrita. Pessoas carregavam pedaços de oração ou bendizeres como amuletos de proteção. A pílula de Frei Galvão tem lastro nessa transição do medieval para o moderno.

Quando as revoluções midiáticas explodiram no século 19 e, com potência inaudita, no 20, a memória começou a se divorciar de nossos cérebros. Telégrafo, telefone, cinema, TV, rádio. A quantidade de informação circulando, que já não caberia numa única cabeça humana, nem na mais treinada delas, superava a soma de todas as nossas cabeças juntas.

Os cientistas que estudam fluxo de informações pensam que os intervalos geracionais quase intransponíveis entre avós e netos se devem ao fato de que, em duas gerações, a quantidade de informação entre eles cresceu de forma vertiginosa. Se alguém, jovem ou mais velho, deixa de acompanhar o mundo, por opção ou por falta dela, é atropelado por ele. A escola transmite todo o conhecimento acumulado em milênios de humanidade em 25 anos, da alfabetização ao fim da graduação.

Enquanto realiza esse processo, mais e mais informação foi criada. O processo não tem fim. Nossa pobre memória vive cheia, inundada, açodada. E não temos nuvem, backup ou HD externo. Dependemos de nós mesmos, de uma única e maravilhosa ferramenta evolutiva: o cérebro. Não à toa temos a sensação de cansaço, de que nossas baterias estão no fim. Antes da hora do almoço, já não há energia para o resto do dia. Enquanto isso, lá vem o celular avisar que mais informações foram carregadas e que você precisa ver todas elas.

No Egito, o deus da escrita é Toth, com cabeça de babuíno ou do pássaro íbis. Quando ele deu aos homens o código para registrar tudo em papiros, lançou uma advertência: "Tudo o que vocês escreverem esquecerão". Sim, no momento em que a memória encontra um suporte e o cérebro ganha um auxílio, parece que a praga divina do Nilo acontece. Ninguém mais sabe números de celulares, pois estão escritos. Advertência sábia da entidade divina.

Somos a geração com mais suportes de memória e que não lembra de nada, afogados em nossos celulares que demandam tudo e nos oferecem uma vida com amnésia digital. Milhões de terabytes flutuando ao nosso redor, milhares de tomadas e cabos, centenas de recursos, muitos aparelhos e... não conseguimos mais lembrar de um simples aniversário importante se nossa rede social não advertir com ênfase. A praga de Toth é total. Somos precoces desmemoriados. É preciso ter esperança e alguma memória.

LEANDRO KARNAL

29 DE JUNHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

O TRÁFICO


A GUERRA ÀS DROGAS É, TALVEZ, A POLÍTICA PÚBLICA MAIS FRACASSADA DA HISTÓRIA OCIDENTAL


A guerra às drogas entregou o monopólio da comercialização nas mãos do crime organizado. Em nosso caso, o controle foi assumido por facções que se aproveitaram da superpopulação das prisões para arregimentar comparsas, tomar conta das ruas, disputar o mercado nacional à bala e criar raízes nos países vizinhos.

Os especialistas calculam que a venda de drogas ilícitas, no Brasil, movimente de R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões por ano. A ONU calcula que, no mundo inteiro, esse valor anual chegue a U$ 540 bilhões.

É engano, no entanto, imaginar que apenas criminosos de carreira estejam ligados à compra e venda ilegal. A cadeia de interesses econômicos que vai do plantio ao consumidor final envolve centenas de milhares de pessoas sem ligação direta com o crime.

É bandido o pequeno agricultor dos Andes que planta coca para sustentar a família, porque rende mais do que a lavoura de milho ou de batata?

São marginais os donos de casas, pousadas, restaurantes e táxis nas cidades da fronteira pelas quais passa a mercadoria que chega aos centros urbanos? Ou as senhoras da comunidade que vendem quentinhas para os que trabalham nas biqueiras?

Embora sejam os primeiros a ir para a cadeia, é questionável rotular de criminosos os prestadores de pequenos serviços aos traficantes, como os que pesam e embalam droga para a venda no varejo, em troco do salário mínimo.

Em contrapartida, são cidadãos socialmente respeitados os que comandam as instituições financeiras nas quais serão depositados os bilhões arrecadados. Ou você, leitor, acredita que esse volume astronômico de dinheiro vivo fica escondido em espécie numa casa de favela?


Para guardar R$ 100 milhões em notas de R$ 50, a pilha tem que ter dois metros de largura por dois metros de comprimento e 1m92cm de altura.

Não sejamos ingênuos: por caminhos misteriosos, esse dinheiro vai parar nas instituições financeiras. Um dos grandes bancos internacionais, com inúmeras agências no Brasil, foi condenado a pagar multa bilionária por aceitar depósitos de traficantes mexicanos feitos sem a menor cerimônia, na "boca do caixa".

O desemprego que aflige 13 milhões de brasileiros é desigual. Na faixa etária dos 18 aos 24 anos, mais de 26% estão desempregados. Isolamos na pobreza das periferias milhões de jovens sem atividade formal, a conviver com a violência, a biqueira na esquina, as agruras da família que se desfez ou nem chegou a se formar, a ignorância e a fartura de maus exemplos.

Nesse ambiente adverso, ter parentes e amigos de infância na cadeia faz parte do cotidiano; da mesma forma, tias, mães e avós que engravidaram aos 14 anos. Na Penitenciária Feminina de São Paulo, atendi uma menina de 28 anos feliz com o nascimento da primeira neta: outra, com 40 anos, já teve três bisnetos. Hoje, atendo filhas e netas de ex-presidiários que tratei no antigo Carandiru.

Em tais circunstâncias, sem chance de emprego digno nem perspectiva de futuro, a alternativa de trabalhar para o tráfico se torna a possibilidade mais concreta para melhorar de vida; muitas vezes, a única. Para meninas e meninos de 18 anos, a tentação de ganhar R$ 800 por semana para levar um pacote de um canto para outro do bairro pode valer o risco de prisão.

O acesso ao salário decente e à oportunidade de uma carreira no submundo confere a sensação de poder que encanta os jovens mais ousados e traz a ilusão de que nunca mais lhes faltará dinheiro. Não seriam essas as aspirações dos que vão fazer pós-graduação em Harvard?

A lógica é simples: se um dia ninguém mais tomar café, será o fim das lavouras, da distribuição e da venda nas padarias, consequências inatingíveis enquanto estivermos dispostos a pagar pelo prazer que o cafezinho nos dá. Da mesma forma, enquanto houver brasileiros interessados em comprar maconha ou cocaína, ninguém acabará com o tráfico.

A guerra às drogas é talvez a política pública mais fracassada da história ocidental. Os Estados Unidos - país que a concebeu - são hoje os maiores consumidores mundiais.

Gastamos bilhões com a repressão policial e as cadeias para conseguir o quê? Números crescentes de usuários e presidiários, corrupção da sociedade, violência urbana, 51 mil homicídios no ano passado, maconha e cocaína distribuídas pelo país inteiro, e, o pior: cada vez mais baratas.

Vai ficar assim para sempre? Não temos nada menos estúpido para propor?

DRAUZIO VARELLA


29 DE JUNHO DE 2019
J.J. CAMARGO

A INOCÊNCIA QUE PERDEMOS

AS MANIFESTAÇÕES ESPONTÂNEAS DAS CRIANÇAS INESPERADAMENTE CONFRONTADAS COM A DOENÇA

Claro que a vida nos ensina a sermos mais sábios, mas é discutível que este progresso compense integralmente o tamanho da perda que resulta da morte gradual da inocência. É uma pena que aquela pureza ingênua tenha mesmo que ficar confinada a esta fase da vida, e que a inocência seja triturada pelos anos depois que descobrimos que a sinceridade absoluta é incompatível com as relações civilizadas e que alguma hipocrisia é indispensável no convívio social. 

Mas voltemos à infância, quando ainda não sabemos disso. Se os pais se deslumbram com as façanhas dos filhos, que ao descobrirem a palavra produzem pérolas diárias, é fácil imaginar o que ouvem os pediatras que são os privilegiados assistentes das manifestações mais espontâneas e criativas desses seres humanos em formação, inesperadamente confrontados com uma realidade nova, injusta e assustadora: a doença.

O Felipe é o primeiro filho de um casal jovem que levou para o hospital a retaguarda poderosa de um quarteto de avós de primeira viagem. Quando cheguei para a visita pré-operatória, o Felipe, com seus cinco aninhos, parecia o mais tranquilo do pelotão, uma espécie de homenzinho precoce, rodeado por adultos inseguros e alarmados, todos com o choro engatilhado. Menos ele.

A mãe se antecipou explicando o que este estranho estava fazendo ali. Depois que ela anunciou que "este tio é quem vai cuidar do teu dodói", ele largou uma miniatura vermelha da Ferrari e me encarou com uma carinha de "diga lá".

Tendo ouvido a descrição do que ia acontecer, numa linguagem cuja compreensão ele confirmava, de quando em quando, com uma sacudida de cabeça, ele seguia me encarando com seus grandes olhos acinzentados, e então fez a pergunta mais inesperada:

- E você sabe fazer tudo isto?

Só uma criança para reunir numa única frase esta mistura tão rica de curiosidade e admiração.

Já o convívio com Marcelinho começou mais complicado, porque a situação em que foi trazido para uma cirurgia de urgência com infecção grave de pleura transferiu nossa primeira conversa para o segundo dia de internação. Enquanto esperava que o analgésico desmanchasse a carinha de dor, tentei uma aproximação que não engrenava. Querendo forçar um vínculo, contei que eu tinha um netinho da idade dele, ao que prontamente respondeu:

- Pois saiba que o meu avô é muito mais bonito que você!

O que dá mais encanto a essa encantadora etapa da vida é a criatividade, ainda mais quando utilizada instintivamente, em nome da sobrevivência.

Um colega médico, levemente distraído, veio do Vale do Sinos para um jogo no Olímpico acompanhado do filhote de cinco anos. Na empolgação da partida, incluindo a reclamação pelo pênalti não marcado, percebeu, de repente, que a cria já não estava. Sem saber o que fazer, completamente aturdido, foi acalmado pelo alto-falante do estádio:

- Temos aqui na cabine da Rádio Gaúcha um menino muito loiro, que quando perguntamos o nome, ele disse que é Dudu, que o pai se chama Doutor, e a casa dele é em outra cidade. Então, Doutor, fique tranquilo, ele está aqui com a gente!

Uma história maravilhosa, atribuída a Gabriel García Márquez, relata a aventura de um menino de seis anos que passeava com mãe numa grande feira de rua, em Bogotá, quando perdeu o contato com ela, e na tentativa de facilitar a busca, interpelou um velhinho que picava fumo, com o que lhe pareceu uma descrição útil:

- O senhor por acaso não viu uma senhora de casaco azul e sem um menino assim como eu?

J.J. CAMARGO


29 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA

Que vontade de tomar um chope com Lula

No tempo em que o Athletico paranaense não tinha agá, Sergio Moro pedalava sozinho pelas ruas de Curitiba. Imagine ele tentar fazer isso hoje. Seria impossível. Os admiradores o cercariam, implorando por selfies, ou os odiadores gritariam "Lula livre!", e o derrubariam da bicicleta a pontapés.

A vida de Sergio Moro nunca mais será a mesma, e ele sabe disso. O que essa transformação lhe produziu na alma? Quanto influenciou em suas decisões durante a Lava-Jato? Talvez nem ele possa fornecer essas respostas. Mas o fato é que Moro sofreu, e sofre, uma pressão incalculável. Porque, sobre ele, está todo o peso do personagem mais extraordinário da história do Brasil: Lula.

Certa feita, escrevi que Lula é maior do que Obama. E é. Obama alcançou a façanha de ser o primeiro negro a eleger-se presidente dos Estados Unidos. Não é pouca coisa. Lembre que, no sul americano, a igualdade entre brancos e negros só foi garantida por lei nos anos 1960, com os Direitos Civis. Mas, ainda que a discriminação racial nos Estados Unidos seja mais forte e aberta do que no Brasil, as oportunidades de ascensão de quem é discriminado também são mais fortes e abertas.

A vitória do Obama, portanto, não foi só dele: foi uma vitória da sociedade americana. A vitória de Lula foi pessoal. Por isso, mais difícil. Por isso, maior.

Mas já houve outras histórias de superação parecidas com a de Lula. O que nunca houve foi alguém com tanta capacidade de cativar os intelectuais e as classes altas. É uma espécie de superpoder que ele tem. Uma vez, vi um intelectual gaúcho, figura famosa em todo o Brasil, discorrer sobre a única vez em que encontrou Lula em pessoa. Esse homem inteligente e talentoso falava com a admiração infantil do menino que, trêmulo, conhece seu ídolo do futebol. Os olhos dele faiscavam de afeto, sua voz amoleceu de mel. Era veneração pura. Era bonito de se ver.

O feitiço de Lula também já se derramou sobre muitos de meus colegas jornalistas, o que é ainda mais notável do que encantar um Chico Buarque de Hollanda, por exemplo. Porque o artista é um sonhador, ele pode viver em um mundo de ilusão, e até deve, mas jornalistas são treinados no ceticismo. O jornalista, a priori, desconfia dos políticos. De todos os políticos. Para muitos colegas, porém, Lula está acima até de seus pruridos profissionais. Por Lula eles sentem um amor incondicional. Um amor de mãe.

Outros políticos já foram amados no Brasil, mas não por tantos intelectuais, jornalistas, empresários e integrantes das classes média alta e alta. Getúlio Vargas talvez fosse até mais amado, mas pelos pobres. Brizola também. Fui testemunha ocular do quanto Brizola era idolatrado por pessoas das classes mais baixas da sociedade. E havia razão para isso. Brizola foi o primeiro político brasileiro a dar real valor à educação básica. Foi o primeiro a se preocupar com o que realmente é importante. Quanto a Getúlio, embora tenha sido um ditador e, com sua ditadura, tenha causado um mal profundo à própria alma do brasileiro, Getúlio, apesar dessa nódoa, foi o inventor do Brasil moderno. Getúlio fez um bem estrutural ao trabalhador, seja com a industrialização planificada, seja com a legislação trabalhista.

Lula, não. O grande mérito de Lula foi não alterar a forma de condução da economia e incrementar o Bolsa Família. Medidas ótimas, mas sem caráter estrutural. Outro de seus orgulhos, a abertura de vagas na educação superior, é um engodo: como Brizola já ensinou, as questões da educação (e de todo o país) se resolvem de baixo para cima, a partir da escola pública, nunca a partir da universidade.

Lula se beneficiou por assumir o governo em um dos raros momentos de estabilidade econômica do país, depois do Plano Real. Na época, o mundo todo crescia, sobretudo devido ao empuxo da explosão da China. Lula tinha o Congresso submetido. Lula tinha imensa popularidade. Lula podia fazer quase tudo. Fez quase nada. Não houve reforma tributária ou do pacto federativo, não houve reforma na escola pública, não houve reforma política, não houve nenhuma mudança que fosse realmente sistemática. Quem mais ganhou foi quem sempre ganhou: os grandes banqueiros, os grandes empreiteiros, os políticos.

Mas, para muitos intelectuais e para muita gente com muito dinheiro, Lula é perseguido pela elite raivosa por ter feito bem aos pobres. Investigações comprovam que o governo Lula estava apodrecido pela corrupção, a irresponsabilidade na condução das finanças do Estado fez o país se refocilar na maior crise da sua história, mas intelectuais, ricos e artistas preferem culpar investigadores e julgadores e gritar: "Lula livre!".

Conheci Lula pessoalmente. Cobri suas campanhas eleitorais. Entrevistei-o várias vezes, desde os anos 1980. Reconheço que ele é um homem simpático, um boa-praça, alguém com quem seria agradável partilhar uma mesa de bar. Para falar a verdade, gosto dele. Mas esse amor que lhe devotam me é incompreensível. Como ele consegue? Lula é um prestidigitador. Lula é um mago. Nunca houve um brasileiro como Lula.

DAVID COIMBRA


29 DE JUNHO DE 2019
URBANISMO

Pôr do sol já não é mais a deixa para voltar para casa

Se até um ano atrás alguém questionasse o advogado Claudio Francesconi, 36 anos, sobre qual o melhor lugar para curtir um happy hour depois de uma audiência no Foro Central, a orla nem sequer figuraria entre as possibilidades citadas por ele.

Por volta das 18h de uma quarta-feira, sob temperatura de menos de 10°C à beira do Guaíba, estava claro que o jogo virou.

Vestindo camisa, sobretudo e gravata, Francesconi degustava uma cerveja sentado a uma mesa externa de um dos bares localizados no novo espaço.

- É o tipo de coisa que só vendo para acreditar. Gosto de viajar para outros lugares, outras capitais, e esse (local) não perde para nenhum. Ficou de primeira - comenta o advogado, que agora nutre expectativas pela revitalização do trecho 3, prevista para o ano que vem.

O aproveitamento noturno é talvez um dos principais diferenciais pós-revitalização da orla. No antigo espaço, que tinha poucos atrativos, pontos de escuridão e segurança precária, o pôr do sol era a deixa para voltar para casa.

Com farta iluminação, quatro bares e um restaurante panorâmico, o local passou também a reter o público também no período do dia sem luz natural.

Músico de Córdoba, na Argentina, Cesar Aguero, 36 anos, virou atração noturna do Sheik Burguer, meio por acaso. Ele passeava pelo local no fim de semana quando viu uma banda tocando no bar e pediu para dar uma canja. Se apresentou por quase três horas.

- Já tinha tocado em Porto Alegre outras vezes, mas esse lugar é diferente. Me parece que está conectado com as pessoas daqui, que sempre estão com um sorriso no rosto - afirma o argentino.

PRESENÇA DA GUARDA E QUALIDADE DE VIDA

Atrações musicais, aliás, entraram na rotina da nova orla, que agora conta com apresentações quase diariamente.

A sensação de segurança trazida pela melhora estrutural, em razão da presença da Guarda Municipal e o movimento quase constante também tornou o lugar atraente para eventos diversos - alguns deles um tanto conturbados -, que por vezes se estendem madrugada adentro.

Moradores da Rua Riachuelo, a designer de produto Julia Henkin e o publicitário Evandro Zucatti são entusiastas da ocupação em tempo integral do espaço, que passaram a frequentar em diversas noites.

- Antes, não tinha atrativo nenhum. Agora, às vezes, a gente ouve música de casa, vem aqui ver e tem evento rolando. A mudança trouxe uma coisa que Porto Alegre não tinha, que é qualidade de vida - diz Evandro.

29 DE JUNHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

IMAGEM EXTERNA ARRANHADA


A postura do governo Bolsonaro sobre o meio ambiente é agora o ponto de maior contestação internacional em relação ao Brasil, e pode trazer prejuízo ao agronegócio

É péssima, neste momento, a imagem do Brasil no Exterior. E a má notícia é que pode piorar. Posições esdrúxulas, declarações desastradas e comunicação calamitosa do governo federal somam-se para que, em grande parte do mundo, a percepção em relação ao país não pare de se deteriorar. O ponto mais sensível, agora, é o ambiental, como comprovou o mal-estar entre o presidente Jair Bolsonaro e os líderes da França e da Alemanha na cúpula do G-20. O descaso do governo com a preocupação internacional sobre o desmatamento pode potencializar os danos.

A imagem de uma pessoa, de uma nação, de uma empresa ou de uma instituição, mesmo que às vezes possa estar distorcida, exagerada ou carregada de estereótipos, geralmente tem consequên- cias. Para o bem e para o mal. No caso do Brasil, infelizmente, a antipatia não pode ser atribuída a um ou outro ruído. Controvérsias ambientais partindo do governo Bolsonaro não faltam. Desdenhar de dados que mostram aumento da derrubada de florestas, dar pouca importância à proteção dos índios, liberar agrotóxicos a granel, polemizar com a Alemanha e a Noruega sobre a gestão do Fundo Amazônia e a ameaça de sair do Acordo de Paris são alguns exemplos de posturas que vêm causando estupefação global. A exceção é o norte-americano Donald Trump, mas o presidente da maior potência do planeta pode - infelizmente - se dar ao luxo de defender retrocessos sem sequelas econômicas significativas. O Brasil, não.

Persistir na posse e no porte de concepções ilógicas traz o risco, por exemplo, de prejudicar as vendas de produtos agropecuários, setor mais dinâmico e competitivo da economia brasileira. Nos quatro cantos do planeta, consumidores estão cada vez mais atentos à sustentabilidade do que compram. Os líderes de entidades do agronegócio que pensam a médio e longo prazo sabem disso e correm para colocar panos quentes a cada frase de pouca ponderação. O próprio turismo, agraciado com a natureza exuberante do Brasil, pode sofrer impacto negativo com as mensagens repetidas pelo Planalto - que, quando questionado sobre qualquer tema relacionado, em vez argumentar, parte para a desqualificação.

Autossabotar o país para satisfazer a parcela mais radical do eleitorado, agarrando-se inclusive a crenças que não encontram amparo na ciência ou contrariam o bom senso, é um tiro no pé. Ao regredir três décadas no esforço para reverter a má percepção mundial em relação a práticas sustentáveis, de forma lamentável o Brasil está se recolocando na lista dos párias ambientais.

29 DE JUNHO DE 2019
ARTIGO

NOSSO TESOURO


O maior tesouro não é uma mina de ouro nem uma montanha de dólares. O maior tesouro é a vida e aquilo que nos faz viver – a água. No processo da Criação, só houve vida na Terra após surgir a água. Antes, era o caos. Hoje, sem água nada existe.

A área junto ao Delta do Jacuí esconde no subsolo nosso maior tesouro. Ali se concentram gigantescas reservas subterrâneas do aquífero quaternário. "O equivalente a mais de metade do Lago Guaíba lá está", calcula o geólogo Rualdo Menegat, professor de Geociências da UFRGS e autoridade reconhecida mundialmente.

Tudo isto será afetado e pode desaparecer se a chamada "Mina Guaíba" (junto ao Jacuí, a 10 quilômetros em linha reta de Porto Alegre) extrair carvão a céu aberto, em profundas crateras ao longo de 4,5 mil hectares da zona, desviando até dois arroios, como pretende. Roubarão nosso tesouro? As futuras gerações não terão socorro enquanto a insânia continuar a poluir os afluentes do Guaíba e nosso lago virar lixeira líquida.

Essa "imensa caixa d´água de reserva" (como o geólogo Menegat chama nosso tesouro) hoje é o suporte da segunda maior produção de arroz orgânico do país. O agro será substituído pela pretendida mina. Em vez de arroz e hortaliças ecológicas, teremos carvão, principal responsável (com o desmatamento) pelo aquecimento global que ameaça matar o planeta.

Estaremos na contramão das advertências da ciência, atirando no lixo os alertas do papa Francisco, da ONU e das reuniões dos governantes mundiais.

Assisti na noite de quinta-feira a audiência pública coordenada pela Fepam, na vizinha Eldorado, em que a mineradora Copelmi expôs os planos da extração de carvão junto ao Jacuí e, durante nove horas, ouviu muitas discordâncias (e alguns aplausos) de mais de mil moradores da região, geólogos e outros especialistas.

A atual mina de Butiá foi apresentada como modelo de prática correta, tal qual "garota-propaganda" da extração a céu aberto. Perguntei, então, se o terreno da pretendida nova mina (em que brota água límpida cavando-se apenas 50 centímetros) era igual ao da "mina modelo".

- O terreno é diferente geologicamente - respondeu o diretor da empresa.

Um morador da região, o médico Paulo Wageck, calculou o número de explosões em 30 anos de vida útil da mina e revelou algo literalmente tonitruante: "Será o equivalente a 1.600 bombas atômicas de Hiroshima".

Pensando em Brumadinho, pergunto: se nem uma mina de ouro é nosso maior tesouro, o que será uma mina de carvão?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

29 DE JUNHO DE 2019
+ ECONOMIA

NO RS, BOA RECEPÇÃO A ACORDO COM EUROPA


Para que entre em vigor, o acordo de livre comércio União Europeia-Mercosul ainda precisa da aprovação nos 28 países europeus (27, se o Reino Unido confirmar a saída) e nos quatro do Mercosul. Mesmo assim, o fim de uma novela de 20 anos foi recebido com expectativa positiva no Estado. Como todo processo de redução de impostos sobre importações, embute riscos e oportunidades. Segmentos industriais menos competitivos dos países sul-americanos podem sofrer com a concorrência de produtos europeus de maior qualidade e menor preço. Indústrias que já disputam o mercado da Europa tendem a ser beneficiadas.

No Estado, além da agropecuária, os dois setores que podem ganhar mais são os de calçados e móveis. Primeiro, porque conforme Frederico Behrends, consultor em comércio exterior que acompanhou de perto a última década das negociações, estão na primeira leva de retirada de alíquotas de importação. Ou seja, assim que o acordo for aprovado pelos 32 (ou 31) parlamentos, entra em vigor a queda da tarifa.

-Estávamos prevendo isso, e como o presidente Bolsonaro concordou em assinar o acordo ambiental, foi possível fechar. É o maior tratado comercial do mundo na história. Ainda é preciso entender melhor os detalhes, mas, na versão mais recente, calçados e móveis estavam entre os segmentos para os quais a queda de tarifa traz vigor de imediato - reforça Behrends.

O especialista detalha que as tarifas caem em prazos distintos, de zero, quatro, oito, 10 e 15 anos. No caso dos que ganham prazo, a queda se dá de forma gradual, ou seja, reduz 25% ao ano, no caso do cronograma de quatro anos. Isso não vai valer para cerca de 10% dos produtos dos dois blocos, os considerados "sensíveis".

Presidente da associação da indústria calçadista (Abicalçados), Heitor Klein avalia que é "muito vantajoso" para o segmento, desde que respeitadas regras de origem e 60% de conteúdo local:

- O calçado brasileiro pode concorrer com qualquer outro. Só é preciso regra de origem para evitar que entrem produtos asiáticos travestidos de europeus.

CRISE? QUE CRISE?

Fintech de antecipação de recebíveis para empresas que precisam de capital. Openbox.ai recebeu cerca de R$ 1 milhão de investidores de países como Espanha, Portugal e Croácia.

A Docile, de Lajeado, é uma das patrocinadoras do Museu Mais Doce do Mundo, atração itinerante que está em São Paulo até 18 de agosto e seguirá para o Rio. Diretor da empresa, Ricardo Heineck estima aumento de 15% nas vendas internas e de 25% nas exportações neste ano.

NA SEXTA-FEIRA, ENTROU EM OPERAÇÃO COMERCIAL A TÉRMICA PAMPA SUL. ABASTECIDA A CARVÃO, A USINA É RESULTADO DE INVESTIMENTO DE R$ 2 BILHÕES DA FRANCO-BELGA ENGIE. A UNIDADE FOI VIABILIZADA EM LEILÃO DE ENERGIA EM NOVEMBRO DE 2014, ANTES DE O GRUPO ENGIE ANUNCIAR SUA ESTRATÉGIA GLOBAL DE SAIR DA GERAÇÃO A CARVÃO. AS OBRAS COMEÇARAM EM JUNHO DE 2015. CONFORME O GRUPO, A VENDA DESSA UNIDADE, ASSIM COM A DE JORGE LACERDA, EM CAPIVARI DE BAIXO (SC), ESTÃO "EM ANDAMENTO".

Embora alguns setores já tenham até balanço de perdas e ganhos com o acordo UE-Mercosul, outros praticamente ignoram seu impacto, até pelo descrédito em torno da concretização, depois de anos de espera. O consultor Frederico Behrends diz estar pronto para sair em missão pelo Rio Grande afora para explicar as oportunidades e os riscos de comprar e vender com menos tributos para a Europa.

MARTA SFREDO

sexta-feira, 28 de junho de 2019


Jaime Cimenti

lançamentos 

Dois Irmãos - Portal da Serra Gaúcha (Edição do Autor, 152 páginas), do escritor Gilberto Domingues Werner e fotografias em cores de Edson Peixoto, Leonardo Boufleur, Luciana Staudt, Mônica Santiago e Mauro Badini, traz história e presente da linda e pujante Dois Irmãos. Festas, pontos turísticos e empresas de vários segmentos da comunidade que orgulha o Estado estão na obra.

A cura do ciúme - Aprenda a confiar, supere a possessividade e salve seu relacionamento (Artmed, 177 páginas), de Robert L.Leahy, ganhador do Aaron T.Beck Award e autor de 26 livros, traz origens e evolução do ciúme e propõe formas de superar a possessividade, especialmente com melhor comunicação com os parceiros, superando a vergonha e ganhando a confiança.

Reflexões para Jovens Advogados (Editora Unisinos, 192 páginas), do experiente e competente advogado militante Nestor José Forster, fala, com base no "saber de experiências feito"e lastro em muitas e boas leituras, de inícios na advocacia, clientes, sócios, testemunhas, invasão eletrônica, honorários, amigos, direito e literatura e outros temas candentes.

Obra oportuna nesses tempos brasileiros tão judicializados.

a propósito... 

Dor e glória vai ficar para o futuro como uma espécie de "testamento" cinematográfico de Pedro Almodóvar, mesmo não contando com todos os elementos que o fizeram um dos maiores e mais originais diretores de cinema das últimas décadas.

Dor e glória fica ao lado de Fanny and Alexander de Ingmar Bergman, Cinema Paradiso de Tornatore e Amacord de Fellini, entre outros, mostrando nossas riquezas e misérias, nossas dores e prazeres e que os tempos e as pessoas se misturam, se aproximam e se afastam. Mostram que a vida acontece enquanto fazemos planos e nos preocupamos com o futuro.

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/06/690558-clarice-misteriosa-e-autobiografica.html)


Jaime Cimenti 
Clarice misteriosa e autobiográfica 

Boa parte dos estudiosos, professores e leitores consideram Água viva como a obra mais misteriosa e autobiográfica da genial escritora Clarice Lispector (1920-1977). O "denso e fluente poema em prosa" da autora de Perto do coração selvagem; Laços de família e A hora da estrela foi publicado pela primeira vez em 1973. Clarice, como se sabe, faz parte da terceira fase do modernismo no Brasil, ao lado de nomes como Lygia Fagundes Telles, entre outros. A nova edição de Água viva (Rocco, 224 páginas, R$ 64,90), encadernada e com bela sobrecapa, faz parte do projeto da Rocco de publicar edições especiais das obras de Clarice, reproduzindo os manuscritos e datiloscritos originais. 

Este volume conta com importantes textos de referência, assim como a carta do filósofo José Américo Pessanha, que motivou a troca do título da obra de Objeto gritante para Água viva. A narrativa vem acompanhada dos ensaios de Alexandrino Severino, Sônia Roncador, Ana Claudia Abrantes e Teresa Montero. O prefácio e a organização do livro ficaram a cargo do crítico e pesquisador Pedro Karp Vasquez, e a concepção visual e o projeto gráfico são de Izabel Barreto. 

Nesse pequeno grande livro, Clarice fala da vida, de instantes e, acima de tudo, a autora conseguiu um jeito transformador de escrever sobre si mesma. Não há enredo, começo, meio e fim e Clarice desconstrói a linguagem, motivando um impacto semelhante ao que causou quando estreou na ficção com o premiado Perto do coração selvagem, em 1943. "É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano de dor e separação mas é grito de felicidade diabólica. 

Porque ninguém me prende mais." Assim se inicia a narrativa hibrida que mescla poesia, ensaio, ficção e que apresenta absoluta insurreição formal e uma desestruturação da forma romanesca, marcada por uma grande fluidez, com ares de aparência inacabada e inconclusa. Um trabalho em andamento, uma obra em progresso, que convida o leitor a nadar em águas que se movem infinitamente. 

A síntese de Almodóvar? 

O filme Dor e glória (Dolor y gloria), o vigésimo primeiro do grande diretor espanhol Pedro Almodóvar, está em cartaz em Porto Alegre. 

A película vem fazendo, merecidamente, sucesso de público e de crítica em vários locais do mundo, sendo que foi premiada no último Festival de Cannes, com a Palma de Ouro para Antonio Banderas, como melhor ator, por sua atuação terna, comedida e densa. Alguns afirmam que este é o melhor trabalho de Almodóvar, outros criticaram o filme pela falta de enredo e outros problemas, mas a maior parte dos críticos e do público consagra o filme. Acho perda de tempo discutir se este é o melhor filme de Almodóvar ou aquele outro é o melhor trabalho de Woody Allen. 

Mania que temos de fazer listas e colocar alguém ou algo no topo, como se a vida fosse uma corrida de cavalos ou um concurso de misses. Filmes, livros, obras de arte são como filhos e é complicado falar em obras-primas. 

O futuro às vezes nos desmente. Alguns falaram que o filme é a "síntese" dos trabalhos do espanhol, mas sem tanta vida, tanto absurdo e tantas cores que estão nos outros. Acho que não é nada disso. Dor e glória traz muitos elementos presentes em outros trabalhos da longa carreira de Almodóvar, mas nem todos. 

A narrativa do diretor de cinema em decadência, que vai revisando suas dores e glórias, seus ganhos e suas perdas, seu presente e seu passado, envolve o expectador de cara e o carrega para um universo muito próprio, onde a memória, a sensibilidade, os desejos e os sentimentos estão presentes. 

Na memória as coisas acontecem muitas vezes, quem não sabe? Não há duvida de que se trata do trabalho mais íntimo e autobiográfico de Almodóvar e aí não interessa muito saber até que ponto o drama traz os acontecimentos de infância, juventude e vida adulta do diretor ou até que ponto lembra outros filmes de sua autoria. O que importa é a excelência do filme, a sensibilidade, a delicadeza e o equilíbrio entre as dores e os prazeres, se que é isso existe. 

O menino é o pai do homem, disse o poeta inglês Wordsworth e a vida é uma graça triste, dizem muitas pessoas, com razão. Dor e glória faz lembrar as frases e com sua tristeza bela, mostra que sempre é possível desatar alguns nós, superar dificuldades, esquecer, sentir, perdoar e amar. O filme nos faz constatar que esse velho mundo gira, com nossos afetos e desafetos, com as lembranças boas e ruins e que há espaço para a conciliação, a redenção e um novo olhar sobre o sol que nasce ou a lua que nos faz sonhar utopias. 

O fato do filme não contar com um enredo ou com uma estrutura definida, pode ser visto como qualidade ou defeito, a critério de cada um. Mas não é assim a vida, sem ensaios, sem roteiros e sem prorrogação depois do fim do jogo? Quem disse que filmes, livros e outras obras de arte necessitam, obrigatoriamente, de regras e receitas de bolo? - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/06/690558-clarice-misteriosa-e-autobiografica.html)


28 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA

A transformação de Moro

Até agora, nada do que foi revelado acerca das mensagens de Moro para o Ministério Público inocenta alguém que tenha sido condenado por ele. Não surgiu nenhuma prova adulterada, nenhum depoimento forjado, nenhuma falsidade que possa apontar: esse réu foi injustiçado. Ao contrário: volta e meia, Moro exigia provas mais contundentes do MP e da Polícia Federal.

Isso parece importante. Porque dá lisura à Lava-Jato, e a Lava-Jato é fundamental para o Brasil.

Mas tenho curiosidade a respeito de Moro, que ontem esteve em Porto Alegre. Moro é uma esfinge. O que realmente o motiva, em todo esse eletrizante episódio da história do Brasil?

Tenho certeza de que não é a política como querem fazer crer seus desafetos. Moro não é movido por ideologias. Pode se posicionar eventualmente um pouco mais à direita ou um pouco mais à esquerda, mas nunca manifestou um pensamento orgânico que indicasse dogma ou mesmo simpatia por essa ou aquela corrente.

Alguns tontos suspeitam que Moro está a serviço da CIA, que a facada em Bolsonaro foi planejada pelo próprio Bolsonaro, que a Lava-Jato foi urdida pelas Sete Irmãs do Petróleo, interessadas que estão no nosso pré-sal. Esses provavelmente também acreditam em Sasquatch, o monstro do pé grande. Então, não vamos levá-los a sério.

Moro, ao que tudo indica, construiu uma convicção de pedra de que o Estado brasileiro estava sendo usado como projeto de poder ou de enriquecimento por grupos políticos em conluio com empresários. Uma vez formada essa convicção, ele decidiu que sua missão seria desmontar o sistema viciado. Quer dizer: Moro não tinha a intenção de fazer um trabalho tecnicamente perfeito no julgamento; tinha a intenção de usar a técnica perfeita de julgamento para capturar os criminosos que identificou.

Nessa tarefa, Moro enfrentou gente muito, muito poderosa. Vários foram os condenados, de vários partidos. Foram condenados, também, réus sem partido - empresários riquíssimos, intermediários, doleiros, funcionários de carreira. E Moro se viu, de repente, alçado à condição de celebridade. Essa "promoção" (com ênfase nas aspas) se deu mais pela ação dos políticos investigados do que pela espontânea admiração da população que assistia às investigações. Foi uma estratégia, sobretudo do PT: não era o sistema que acusava os governos petistas de corrupção, era um indivíduo. Ou seja: havia um interesse pessoal envolvido. Não fosse aquele homem específico, não haveria crime nem criminosos.

Funcionou. Tanto que muitos se esquecem da corrupção e dos crimes sobejamente comprovados pela Lava-Jato para se concentrar em Moro - se ele está certo, se ele está errado, se ele é bom, se ele é mau. O personagem se tornou maior do que a história.

Moro se transformou de peça do sistema em protagonista. Era indispensável que houvesse essa mudança, para que a narrativa fosse perfeita. Porque Moro, agora, antagonizava com o outro protagonista: Lula.

O enredo, assim, fica ajustado: temos aqui a eterna luta do bem contra o mal. Quem é o bem e quem é o mal? Depende de quem acompanha a história. Uns inflaram bonecos de Moro como o Super-Homem e de Lula como o Pixuleco, outros têm Lula como desinteressado pai dos pobres e Moro como pérfido agente da elite branca.

Eu, aqui, no meu modesto tugúrio, penso que todos estão errados, mas isso não interessa. Interessa, agora, é a evolução dos personagens. Tenho de continuar no assunto, este farto e rico assunto deste rico e farto tempo que já entrou para a História do Brasil.

DAVID COIMBRA

28 DE JUNHO DE 2019
ARTIGO

UMA MARCA PARA PORTO ALEGRE?


Na esquina da Avenida Independência com a Rua Miguel Tostes, os dois homens na casa dos 40 anos demonstravam aquela atitude indefectível de quem está perdido. Olhavam para o celular e gesticulavam em espanhol. Tive que perguntar se precisavam de ajuda. “Si, las  habitaciones estan llenas y buscamos un sitio cercano”, respondeu um dos uruguaios. Caminhei uma quadra com a dupla e mostrei a direção do lugar que procuravam. Por pouco, pela primeira vez, não converti a minha casa em Airbnb, de tão sensibilizado com a situação deles. A partida contra o Japão que os trouxe à Capital, pela segunda rodada da Copa América, terminou empatada em 2 a 2. Mas é certo que a atenção solidária que receberam de um porto-alegrense anônimo foi bem-vinda.

Desde 14 de junho, na primeira partida da fase classificatória na Arena do Grêmio, os hotéis registraram significativos índices de ocupação, especialmente no feriado de Corpus Christi, no jogo entre uruguaios e japoneses. Com público de quase 40 mil pagantes - boa parte vestindo a camiseta celeste -, a disputa estabeleceu o terceiro maior público da fase de grupos do campeonato, registrando 95% dos leitos reservados.

E os hermanos trouxeram famílias. Vi vários pelas ruas da cidade, carregando os filhos pequenos pela mão. Foram conhecer a nova orla do Guaíba, passearam na linha Turismo, movimentaram restaurantes e cafeterias, enfim, ocuparam parques e espaços públicos. E construíram uma identidade para Porto Alegre, incluindo nós, os habitantes. Partiram dos atributos tangíveis, desde se existiam (ou não) placas de identificação nas calles, até os intangíveis, o atendimento em hotéis e bares e o meu próprio.

O valor de uma marca também pode ser medido pelo grau de lembrança e de fidelidade. A economia do município quer muito a volta desses turistas, e boa reputação - o somatório de imagem e marca - vende. Na própria terra ou em terras estrangeiras, todos gostam de ser bem tratados e respeitados. E cada um de nós, governo ou cidadão, tem a sua responsabilidade. Uma marca não é apenas uma figura ou um nome. Hoje, é muito mais do que isso. É uma sensação, um sentimento, um estilo de vida. Acredito que Porto Alegre e eu deixamos a nossa. Qual é a sua?

CUSTÓDIO CESAR CASTRO DE ALMEIDA

28 DE JUNHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

QUANDO MORREM POLICIAIS

Em poucas ocasiões a sociedade gaúcha experimenta momentos mais trágicos do que quando servidores que colocam suas vidas em risco para proteger a população são mortos em plena ação. É dever, portanto, de todo o Rio Grande do Sul, prestar solidariedade e apoio às famílias dos PMs Rodrigo da Silva Seixas, 32 anos, e Marcelo de Fraga Feijó, 30 anos, aos colegas e à corporação da Brigada Militar, uma das instituições justificadamente mais respeitadas e reconhecidas do Estado. Os dois tombaram após tiroteio com criminosos na zona leste de Porto Alegre, na noite de quarta-feira. Quando um policial morre, não só suas famílias e a polícia são enlutadas: é como se toda a sociedade sofresse com o crime cometido contra exatamente quem tem por missão assegurar a tranquilidade e o cumprimento da lei.

Em todo o mundo, o risco é adjacente à atividade policial, mas no Brasil se vive uma situação-limite. No ano passado, mais de 300 policiais foram mortos no cumprimento do dever, o que coloca o Brasil em mais um triste recorde internacional. Nas ruas de grandes e pequenas cidades, trava-se uma guerra civil a conta-gotas, na qual as forças públicas são especialmente vulneráveis não só por estarem na linha de frente do combate ao crime, mas por seus componentes serem executados quando identificados por sua atividade. No Rio Grande do Sul, onde a polícia desfruta historicamente de um alto nível de credibilidade, a morte de um policial é um golpe em cada cidadão gaúcho que anda ao lado da lei, além de motivo para reflexão profunda sobre como a criminalidade deve ser contida e combatida.

Um dos aspectos fundamentais para se reverter essa situação é o desmantelamento das facções criminosas, uma perversa combinação de crime e empresa destinada a enfrentar as forças da lei e o poder do Estado. Ações como afastar os líderes de suas bases no Rio Grande do Sul foram um passo importante e deveriam ser mantidas pelo Judiciário, mas é preciso muito mais, a começar pela efetiva separação dos criminosos por grau de periculosidade. O Estado - e aqui entenda-se todos os poderes - deveria se unir e buscar uma solução definitiva para os presídios. Prender, julgar e manter presos os criminosos perigosos é o primeiro passo para se atacar a sensação de que o crime pode compensar seus riscos.

Muito se tem avançado nos últimos anos para devolver o Estado a um patamar aceitável de segurança - e os números da queda da criminalidade são um alento para quem tem a responsabilidade de conduzir as políticas públicas. Mas é preciso ir muito além. É incompreensível, por exemplo, que até agora não esteja em pleno vigor a nova Lei da Segurança, capaz de oferecer um rápido e eficaz reequipamento das polícias, e que não haja um arrojado plano de revitalização e construção de presídios, com apoio de todos os poderes, das prefeituras e da sociedade. A morte dos dois policiais, além de ser motivo de solidariedade e de luto, serve de alerta para o Rio Grande do Sul. A criminalidade não pode e nunca irá vencer os gaúchos.

OPINIÃO DA RBS