sexta-feira, 31 de agosto de 2018



A literatura grega vive 


Não só na filosofia e nas ciências os gregos deixaram legados que até hoje influenciam, principalmente, a cultura mundial ocidental. O imenso mundo da literatura grega antiga mostra que ela é fundadora, vive e se irradia em nós. Esta, em síntese, é a tese exposta e defendida com clareza e leveza pelo consagrado professor, pensador e escritor Donaldo Schüler, em seu volume de ensaios Literatura Grega: irradiações (Ateliê Editorial, 302 páginas), lançado há poucos dias. Donaldo Schüler, doutor em Letras pela Ufrgs, foi durante décadas professor de língua e literatura na mesma universidade e traduziu Heráclito e Sófocles.

Escreveu muitas obras sobre literatura, como Teoria do Romance e Aspectos estruturais da Ilíada e obras de ficção e poesia. Foi premiado pela APCA e com o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro por sua conhecida tradução de Finnegans Wake de James Joyce, autor do qual Donaldo é especialista. Grande conhecedor da literatura grega, o professor Donaldo apresenta este belo e denso conjunto de ensaios tratando de gêneros, narradores, líricos, pensadores, oradores e teatrólogos e, no capítulo final, fala de Ítaca, a ilha sonhada, onde reinou Odisseu.

Nas páginas finais do volume estão dezenas de referências bibliográficas, para os leitores que quiserem aprofundar ainda mais os estudos sobre as influências que a literatura grega antiga têm sobre as reflexões e produções literárias atuais. "Falta na Grécia Antiga, um termo para literatura, póiesis abarca a produção artística em todas as modalidades, há tendência de empregar logos para textos em prosa. Na Retórica de Aristóteles, lexis abarca a escrita. Para literatura os gregos de agora criaram o termo logotekhnia, para romance, mythistórima. Textos antigos repercutem, vigoram, irradiam.

Permanecemos atentos às irradiações na Idade Média, na Modernidade , na Contemporaneidade, na Pós-contemporaneidade. Gêneros são maneiras de ser. A literatura grega nos funda, vive e se irradia em nós. O mundo se diversifica e se expande. Para a literatura não há limites. Obras transgridem fronteiras linguísticas, fecundam outras formas de dizer, de ser. O algo que era é: ser-to ti én cinai", escreveu o autor nas páginas iniciais da obra, cujo primeiro capítulo é Gêneros.

Na apresentação da obra, escreveu Sérgio Medeiros: "Schüler resume o enredo das obras que comenta, e às vezes também traduz passagens exemplares de diferentes autores clássicos, sobretudo na parte dedicada à poesia lírica; destaca-se, nos comentários que os acompanham, o ritmo de suas frases curtas, entremeadas muitas vezes de indagações que são logo respondidas, enquanto vai discorrendo, com segurança e sensibilidade, sobre cada gênero criado e desenvolvido no mundo grego (que é também, conforme ele o demonstra o tempo todo, o nosso mundo), a fim de enfatizar, desde o início, que uma forma literária atua sobre outra, "cruzamentos geram novos gêneros, fim (telos) não há, como nos grandes romances modernos, de Cervantes a Joyce, que ele também cita, servem de ilustração". 

a propósito... 

Donaldo mostra procedimentos narrativos de Homero reelaborados na prosa de Guimarães Rosa.

Do romance, o gênero sem limites, encontram-se prenúncios nas invenções literárias de Platão. O encadeamento de episódios e a imaginação dos historiadores Heródoto, Xenofonte e Plutarco preparam o caminho para o romance histórico. Os conflitos interiores de Sófocles e Eurípedes anunciam o romance psicológico.

O romance de costumes mostra-se embrionariamente na comédia nova e no discurso forense. A arte narrativa renasce vigorada, quando, transcorridos séculos, se liberta de tutelas. A epopeia e o romance, o limite e o ilimitado, determinam os polos da invenção. Os gêneros gregos continuam a gerar. Ensinamentos de Donaldo. A literatura grega vive. -



Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/08/646164-estado-de-que-tamanho.html)

Estado de que tamanho? 

De que tamanho deve ser o Estado? O que queremos dele? Queremos que ele nos sirva ou que sirvamos a ele? Estado mínimo ou estado máximo? Essas perguntas são antigas e, no decorrer do tempo, já tiveram respostas diversas, em países diferentes e em várias épocas da história. Menos estado e mais liberdade (Faro Editorial, 124 páginas, tradução de Leonardo Castilhone) traz o essencial do pensamento do grande F.A. Hayek, pensador e professor de Ciências Sociais e Morais na Universidade de Chicago e de Economia na Universidade de Friburgo.

Hayek recebeu o prêmio Nobel de Economia em 1974 e escreveu mais de 15 livros, entre os quais O caminho da servidão, The Constitution of Liberty e Law, Legislation and Liberty.

A seleção e organização dos textos sobre mundo complexo, conhecimento e preços, prosperidade individual e ordem espontânea, estado de direito, liberdade e prosperidade, legislação é diferente de lei, falsa segurança econômica e o caminho da servidão, expansão e contração econômicas, a maldição da inflação, o desafio de ser bem-sucedido na sociedade moderna e ideias e suas consequências foi do professor de Economia Donald J. Boudreaux, da Universidade George Mason e do Fraser Institute. Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, escreveu:

"Nenhuma figura teve influência tão grande sobre os intelectuais por trás da Cortina de Ferro quanto F. Hayek. Seus livros publicados por iniciativas independentes, embasaram a oposição ao regime e contribuíram para o colapso da União Soviética".

O filósofo Karl Popper, por sua vez, escreveu: "O trabalho de Hayek marca o começo do debate mais fundamental no campo da filosofia política". Este livro, em linguagem não acadêmica, fala das principais ideias do economista que revolucionou a compreensão dos mercados e, depois, desafiou profundamente a compreensão pública do governo. Hayek repensou completamente a relação entre indivíduos, mercado e estado.

No atual momento nacional e mundial, diante de tantas e tão rápidas mudanças políticas, sociais e econômicas, a obra de F.A. Hayek mostra-se atual e necessária, para, ao menos, tentar entender o está aí e procurar novos caminhos. Pensar sobre um estado menor, com mais liberdade para os cidadãos e adotar novas ideias e soluções liberais pode ser uma saída para não repetir grandes erros do passado.

lançamentos 

Teoria da Literatura - Trajetória, fundamentos, problemas (É Realizações, 112 páginas), do professor Roberto Acízelo de Souza da Universidade do Rio de Janeiro, fala com clareza, objetividade, abrangência e síntese sobre teoria literária, sua origem, desenvolvimento, problemas, objetivos, correntes e relações com outras disciplinas. Sem concessões ou simplismos, a obra é útil para professores, estudantes e leitores com curiosidade saudável sobre o tema.

Um amor em movimento (Novo Conceito, 158 páginas), de Fernando Moraes, é romance roteirizado pela filosofia. Joan e Martina, dois professores de importante universidade de Santiago do Chile, ele filósofo, de origem pobre e ela da elite, formada em Medicina, saem a passear e conversar sobre Hannah Arendt, Schopenhauer, Voltaire, Pablo Neruda, Jesus Cristo e outros. Amor, solidariedade, socialismo cristão, cidadania e política são temas dos papos peripatéticos.

Mulheres nas artes, na cultura e na história (Ediplat, 120 páginas), do Círculo de Pesquisas Literárias-CIPEL, com introdução e organização de Rafael Bán Jacobsen e Lotário Neuberger, tem textos deles, de Felipe Daiello, Luiz Osvaldo Leite, Moacyr Flores, Hilda Hübner Flores e outros sobre mulheres filósofas no Estado, Eva Sopher, sufragismo, Princesa Isabel, Zoravia Bettiol, Irmã Maria Clara e Joanne DArc, cartas da Princesa Leopoldina e outros temas. -



Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/08/646164-estado-de-que-tamanho.html)


31 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

Um lugar onde acontecem coisas boas

Terá sido o Encouraçado Butikin o melhor bar da história de Porto Alegre?

Era o reduto da Tânia Carvalho e do Tatata Pimentel, entre outros personagens feéricos da Porto Alegre dos anos 1970. Um dos artistas que o Encouraçado recebeu foi Miriam Makeba, a cantora do Pata Pata. Miriam era uma negra sul-africana e cantava essa música, Pata Pata, na língua xhosa, a mesma de Nelson Mandela.

Eu era guri quando o Pata Pata fez sucesso. Havia uma paródia em português:

"Tá com pulga na cueca

Já vi, vou catar".

A letra original, em xhosa, era assim:

"Sat cuguga sat ju benga sat si pata pata

Sat cuguga sat ju benga sat si pata pata".

Adulto, tive curiosidade de descobrir o que a canção queria dizer. Fui procurar a tradução. Que é a seguinte:

"Sat cuguga sat ju benga sat si pata pata

Sat cuguga sat ju benga sat si pata pata".

Os mistérios da língua xhosa?

Eu aqui, francamente, não sou entusiasta de bares com música ao vivo. Já fui mais. Nos anos 1980, havia o Pimplus, na Getúlio Vargas, que nós frequentávamos em alegre e esfomeado bando, sobretudo às segundas-feiras, quando tinha carreteiro de graça. Assim que entrávamos no bar, o músico, um cara de bigode que usava chapéu coco, parava de cantar o que estava cantando e começava:

"Quando eu chego em casa nada me consola

Você está sempre aflita?".

Aí nós emendávamos:

"Lágrimas nos olhos de cortar cebola

Você é tão bonita?".

Era uma espécie de marca nossa.

Já fui grande cantor de bar, se você quer saber. No Edelweiss, que ficava entre o Cine Astor, que não existe mais, e o Teatro Presidente, que também não existe mais, no Edelweiss nós íamos todas as sextas. Eu vinha da Famecos. Abria a porta e, antes mesmo de alcançar a mesa, o Tio Beto, dono do bar, vinha do balcão com uma cerveja branquinha de tão gelada, me saudando:

- Esta é a melhor maneira de dizer boa noite.

Uma lágrima de emoção brotava no canto do meu olho.

A pizza de panela do Beto era especial, mas a paciência dele mais ainda, porque ficávamos cantando até de manhã. O pessoal do Taranatiriça também ia lá e também cantava, todo o bar cantava. Quando saíamos, oh, o sol estava alto no céu.

A manhã é a pior parte da noite, porque o boêmio é como o vampiro: o sol lhe faz mal. É melancólica a sensação de estar voltando para casa para dormir enquanto os outros estão saindo de casa para trabalhar.

Eu morava em um prédio ali na Portugal. Chegava ao edifício e a zeladora já estava lavando os corredores afanosamente. Passava por ela muito ereto, tentando preservar uma réstia de dignidade, cumprimentando com voz pretensamente sóbria:

- Bom dia, dona Arlene. Como tem passado?

Ela devolvia um sorriso malicioso e comentava:

- Foi boa a noite?

Eu tentava manter a pose:

- Estou vindo da padaria?

Acho que ela nunca acreditou.

Bares com música. Um histórico foi o Cult, no Nova Olaria. A dona se chamava Graça, era uma morena bonita. Sei de alguns gaiatos que iam ao bar só para admirá-la, mas ela nem aí para olhares oblíquos. Moça séria.

A Cida era a gerente e sempre arrumava mesa boa para nós. Ficávamos lá, tomando sopa de ervilha e ouvindo aqueles blues. Sou um cara do blues, man.

Mesmo assim, vou a bares menos pela música eventual e mais para beber, comer e, principalmente, conversar. Por isso escrevi sobre os bares nesta semana. Porque o bar não é lugar de gente bêbada como alegam os moralistas. Não. O bar é lugar de congraçamento. As pessoas vão ao bar para se encontrar, para se aproximar, para exercer sua humanidade. No bar, você ri com o outro e ouve o outro, você desabafa e consola, você abraça e pode até beijar. No bar, acontecem coisas boas. Hoje é sexta-feira. Vamos ao bar.

DAVID COIMBRA


31 DE AGOSTO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

APRENDIZADO INSUFICIENTE

O Estado e o país não podem esperar mais para fazer com que os alunos concluam o Ensino Básico preparados para atuar como cidadãos e em condições de disputar o mercado de trabalho

A educação segue como a área na qual o Rio Grande do Sul se distancia de outras unidades da federação, o que vem colocando em risco seus níveis de qualidade de vida. Os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), divulgados ontem, são menos desanimadores quando comparados aos de 2015. A avaliação do Ministério da Educação (MEC) demonstrou uma melhoria no desempenho dos estudantes gaúchos em todos os níveis. Ainda assim, muitos dos que conseguem concluir o Ensino Médio no Estado têm escolaridade, mas apresentam um resultado insuficiente em aprendizado.

Nada menos de sete em cada 10 alunos matriculados no Ensino Médio na rede estadual do Rio Grande do Sul apresentaram nível insuficiente de conhecimento em língua portuguesa e matemática. O desafio, portanto, prossegue. Não há como o Rio Grande do Sul sair da crise e enfrentar dificuldades na área de saúde e segurança pública com alunos que chegam a essa etapa sem níveis de conhecimento satisfatórios em disciplinas que são essenciais para a com- preensão das demais. Sem domínio da língua e sem familiaridade com cálculos elementares, dificilmente um aluno consegue avançar com facilidade nos estudos.

No Rio Grande do Sul, uma das razões pode estar em fatos como o apontado ontem por reportagem do Diário Gaúcho revelando que, numa escola municipal de Porto Alegre, muitos alunos ainda não tiveram aula de matemática neste ano. Outros estão simplesmente há cinco meses sem professor de português. Tudo isso, como foi alertado na divulgação dos resultados do Saeb, faz com que a qualidade do ensino no país caia ainda mais. Entre as consequências práticas, estão prejuízos à formação dos estudantes para o mundo do trabalho. Isso ajuda a explicar as dificuldades de o país registrar desenvolvimento social e econômico.

Educação é justamente a variável que mais tem pesado na redução da qualidade de vida no Estado, como ficou evidente na recente divulgação do Índice de Desenvolvimento Estadual (iRS). A principal causa é justamente a elevada taxa de distorção idade- série, em grande parte, devido à banalização de falhas na área educacional. O Estado e o país não podem esperar mais para fazer com que os alunos concluam o Ensino Básico preparados para atuar como cidadãos e em condições de disputar o mercado de trabalho.

31 DE AGOSTO DE 2018
+ ECONOMIA

SICREDI QUER DISPUTAR MERCADOCOM GRANDES BANCOS


Fundado em Nova Petrópolis em 1902, o Banco Cooperativo Sicredi tem agências em 92% das cidades gaúchas e se expandiu para todo o Brasil. No final de 2017, lançou sua ferramenta digital, o Woop. Presidente-executivo nacional, João Tavares, diz que é uma cooperativa digital, não apenas um banco. Na era do compartilhamento, o Sicredi mantém os princípios associativistas há mais de um século, destaca Gerson Ricardo Seefeld, diretor-executivo da Central Sicredi Sul. Os dois executivos participaram, na quinta-feira, de edição especial do Fórum Respostas Capitais na Casa RBS, na Expointer, em Esteio.

O Sicredi apareceu em 10º lugar entre as instituições financeiras do Brasil. Quer lugar entre os grandes?

Tavares - A visão é de que a sociedade quer o Sicredi entre os grandes. Será do tamanho que seus associados querem. Nosso papel é viabilizar. A tecnologia não está só no meio eletrônico, está na forma de fazer gestão. Estamos evoluindo na metodologia de gestão, ao ponto de ser a maior instituição financeira em crédito para pequeno produtor. Se unir atendimento ao pequeno de forma viável, usando metodologia de gestão avançada, com suporte de tecnologia, naturalmente vamos crescer mais que o mercado. Estamos crescendo 18%, 20% ao ano, enquanto o mercado cresce 3%.

Por que o juro de um banco cooperativado é de mercado?

Seefeld - A instituição busca trabalhar com taxas justas, no sentido da eficiência, de fazer com que o associado tenha soluções, crédito para o seu negócio. Não fazemos assistencialismo. Precisa ter viabilidade, capacidade de investimento em tecnologia, atualização, estrutura patrimonial para atender às exigências do Banco Central. Tavares - Se a taxa paga ficou acima do ponto de equilíbrio, no final do ano há distribuição das sobras, que é o resultado, o dividendo da cooperativa. No cooperativismo, quando faz empréstimo e paga, parte do valor da taxa volta como sobra no final do ano.

A concentração no sistema financeiro afeta o Sicredi?

Tavares - Tem duas formas de se encarar, como vítima ou como protagonista. Encaramos como protagonistas. Se atender meu associado como um banco, vou ser um banquinho. Achamos um nicho de trabalho. Nunca fomos vítima de ação dos grandes bancos que nos tirasse a liberdade. É importante alertar que há operações no Brasil, principalmente no agro, aproveitando que estamos na Expointer, dedicadas somente aos bancos oficiais. Isso limita muito a competitividade. A abertura está ocorrendo, há o movimento das fintechs que tentam desintermediar o negócio bancário. Vão sobrar as instituições financeiras que tiverem algo a oferecer.

O que diferencia a política de crédito de banco e de cooperativa?

Seefeld - Em uma cooperativa, o crédito é formatado e estruturado para atender ao associado. É customizado para as demandas locais. Também há preocupação de formatar e direcional o crédito para que possamos promover desenvolvimento local. Temos trabalhado muito o crédito responsável, a educação financeira, que complementa e leva conhecimento para as pessoas fazerem bom uso de crédito. O Sicredi está presente em 454 municípios dos 497 do Estado. Está em 92% dos municípios, com presença física. Essa é uma grande fortaleza, um compromisso que temos com as pessoas, as comunidades, enquanto as instituições financeiras tradicionais olham os cifrões. Existem critérios técnicos de avaliação de perfil, de relacionamento. Não diria que a exigência de garantias é igual à de um banco. Temos um modelo interno de avaliação de risco.

A inadimplência pesou, como em todo o sistema?

Tavares - O Sicredi tem tradição de inadimplência baixa. Hoje, menos de 2%. Durante a crise, passou de 3%, mas ficou abaixo da média. O pulo da gato é o trabalho que faz com que a gente saia do risco muito rápido. Só que tem custo operacional alto. Internalizamos parte do conhecimento de sistemas e hoje, metade da decisão de crédito é automatizada. Isso permitiu evitar um pico de inadimplência.

A presença em 92% dos municípios gaúchos é sustentável?

Seefeld - Temos procurado estar presentes nas comunidades e, ao mesmo tempo, ajustar as estruturas de atendimento, sempre de olho na viabilidade econômica. Toda agência tem de ter viabilidade, não somos entidade assistencialista. O associado cobra no final do ano, na assembleia, que a unidade do município tenha resultado, que essa agência contribua.

O quanto preocupam os frequentes assaltos no Interior?

Seefeld - Temos feito investimento contínuos e frequentes e preparando infraestrutura. Temos monitoramento 24 horas por dia, sete dias por semana. Temos também o compromisso de fazer com que a Brigada Militar fique no município. Não somos imunes ao problema, mas estamos conseguindo minimizar. Também fazemos conscientização para as pessoas utilizem mais os meios eletrônicos para pagar contas e fazer operações bancárias.

O que o Sicredi foi buscar no Tecnopuc?

Tavares - Temos 200 pessoas lá. Para poder estar em tantos municípios, precisamos ter tecnologia atual, que sai caro. Como toda instituição financeiro do país, temos sistema modernos e antigos. Nossa plataforma digital de cooperativismo, o Woop, não é um banco digital. É uma cooperativa digital. Abre a conta com foto dos documentos, leva sete minutos para abrir a conta. Tem atendimento por chat, tudo o que as pessoas gostam, mas tem educação financeira como adicional. O mais interessante, ao se aproximar desse ecossistema, é que estamos revendo a forma de administrar a empresa.

O futuro dos negócios financeiros passa mesmo pelo blockchain (sistema de registro de criptomoedas)?

Tavares - Um dos custos altos é o de registro. O blockchain elimina esse custo. Estamos nos aproximando do ecossistema do Banco Central. A intenção é criar uma comunidade para melhorar todas as operações. É uma tendência que veio para ficar. Não operamos com criptomoedas.

Como o Sicredi vê as fintechs?

Tavares - Lutar contra as fintechs é um esforço inútil. É incorporar. É como lutar contra a internet. O que tem de construir é um ecossistema. O segundo mercado que usa mais startup no Brasil é o mercado de agronegócio. Então está em todos os mercados, não podemos ficar fora disso.

MARTA SFREDO

31 DE AGOSTO DE 2018

EDUARDO BUENO

A prática da relatividade


Moro num prédio erguido em 1937. Dizem que foi o "primeiro arranha-céu" a... bem, a arranhar o céu de Porto Alegre fora do centro da cidade. Assim, embora seja um belo exemplo de art déco de apenas cinco andares, parece ter sido também o pioneiro na praga que hoje assola o bairro. Mas esse é outro assunto. O assunto agora é que o dito prédio possui elevador com porta pantográfica. E, de uma hora para outra, a referida porta passou a fechar beeeem devagarzinho. Então, ali está você saindo de casa, o elevador chega e a porta se abre e depois se fecha beeeem devagarzinho. O que levava, sei lá, uns três segundos, passou a levar, uns, sei lá, 12 segundos. Intermináveis 12 segundos. Tempo bastante para ruminar uma série de questões.

Na última National Geographic, por exemplo, há um artigo sobre a deriva continental. Sou pirado nessa história da deriva desde 1971, quando, aos 13 anos, comprei, na lendária livraria Coletânea, na Rua da Praia, o livro do geólogo Alfred Wegener. Pirado não só pelo fato de há mais de 1 bilhão de anos os continentes dançarem seu balé cósmico, agrupando-se e se afastando, sempre a remodelar o mundo, mas por ter descoberto também que o alemão Wegener teve a carreira destruída ao apresentar sua teoria, em 1919. E isso tudo bem antes de eu saber que a fabulosa cantora e escritora Pati Smith não só é fã de Wegener mas integrante de uma estranhíssima Alfred Wegener Society. Mas isso também é outro assunto.

O fato é que as tais placas continentais se movem à razão de 18,3 centímetros por ano - velocidade igual à que crescem nossas unhas e, julgo eu, bem mais célere do que a de minha porta pantográfica. Assim, daqui a 250 milhões de anos, os continentes estarão de novo reagrupados, o oceano Atlântico será pouco mais que um lago, Nova York ficará de frente para Lagos, na Nigéria, e Shangai grudada na Austrália. Podes crer.

Como se tal visão do futuro não bastasse, vi ontem um documentário sobre o homem de Neanderthal, que se extinguiu há 30 mil anos. Como se sabe, Homo sapiens e neandertais conviveram por milênios. Mas eles foram extintos e nós vingamos. Mudanças climáticas e a própria ferocidade do Homo sapiens são as principais teorias para explicar o triste fim de nossa espécie irmã. Só que, na última frase do programa, um antropólogo diz: "Então você acha que o Homo sapiens venceu e o neandertal perdeu? Bem, estamos aqui há 50 mil anos. Eles estiveram por 300 mil. Assim, se você quiser saber se de fato ganhamos, melhor fazer essa pergunta de novo daqui a 250 mil anos...".

Bem, acabou meu espaço e não quero mais tomar seu tempo. Estou atrasado e tenho que esperar 12 segundos até a pantográfica se fechar. E só me restam 250 mil anos até descobrir se afinal valho mais do que meu irmão neandertal e 250 milhões para que eu possa contemplar a nova coreografia da dança continental. Não tenho um segundo a perder. Que dirá uma dúzia.

EDUARDO BUENO

quinta-feira, 30 de agosto de 2018



30 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

O Grêmio de olhos abertos e Bolsonaro no JN

Imagino que, ontem à noite, você foi dormir ansioso, pensando:

"Amanhã, finalmente, saberei qual foi O Melhor Bar da História de Porto Alegre".

De fato, estava pronto a discorrer sobre um desses grandes bares, o Encouraçado Butikin, quando fui atropelado por duas ocorrências que urgem: a vitória espetacular do Grêmio e a entrevista de Bolsonaro ao Jornal Nacional.

Assim, espere um pouco mais, aflito leitor. Deixe-me falar, em primeiro lugar, acerca do primeiro assunto: o Grêmio, na terça-feira, foi o defunto abrindo os olhos no velório. Eu estava na Arena, e vi: aos 47 minutos do segundo tempo, o Grêmio já estava com o corpo encomendado. O ano acabaria em melancolia, jogadores importantes seriam banidos do clube como Adão e Eva do Paraíso, Renato colocaria o Sundown na mala a fim de voltar para Ipanema. O gol de Alisson mudou tudo. Não foi um alento; foi uma ressurreição, porque, além da vitória, o gol deu confiança para que todos os pênaltis fossem convertidos.

Agora, o Grêmio precisa aproveitar o tempo que lhe foi concedido para corrigir seus defeitos, que não são poucos. Alguns:

1. Geromel tem de parar de pensar que está jogando na Seleção. Se ele continuar pensando na Seleção, será um zagueiro comum; se esquecer da Seleção, será um zagueiro de Seleção. Aliás, o melhor que há.

2. Ramiro, ou sai de campo estafado, ou não entra em campo. Talvez ele esteja precisando de um descanso.

3. É preciso encontrar soluções melhores para as laterais.

4. As posições de volante e de centroavante ainda estão em aberto.

5. Alguém tem de descobrir o que está acontecendo com Luan.

Se resolver algumas dessas pendências, o Grêmio, que abriu os olhos já dentro do caixão, não será um ressuscitado qualquer: será o Conde Drácula.

Chegamos à segunda ocorrência da terça à noite: Bolsonaro no JN. Mais uma vez, os jornalistas se equivocaram na condução da entrevista e Bolsonaro se saiu bem, porque, como o Estudiantes, jogou o tempo inteiro no contra-ataque.

Bonner até que se conteve, mas a bela Renata Vasconcellos parecia a ponto de pular da mesa para estapeá-lo. Não é uma postura inteligente do entrevistador que pretende expor as fraquezas do entrevistado.

Além disso, a escolha dos temas ajuda Bolsonaro. Os jornalistas, praticamente todos os que o entrevistam, insistem na pauta dos costumes, como questões envolvendo mulheres e gays. É óbvio que o combate à discriminação é importante, mas não é neste setor que se espera a atuação mais forte do presidente da República. O Brasil é um país com 14 milhões de desempregados, com graves problemas de saúde, educação e segurança pública, com a máquina estatal emperrada pela ação das corporações e pela legislação atrasada e burocrática. É aí que pulsa o pulso da população. A preocupação com o politicamente correto é uma absoluta exclusividade de intelectuais e artistas, classes que são tradicionalmente desconectadas da realidade do homem comum.

A massa não se comove com o combate aos preconceitos, nem aqui nem em lugar algum. Vide os Estados Unidos. Trump não venceu a eleição apesar de ser politicamente incorreto; Trump venceu também por ser politicamente incorreto. Quer exemplo de um político mais próximo? Lula, com suas brincadeiras grosseiras a respeito de mulheres e homossexuais, está a um oceano de ser politicamente correto, ainda que esteja sempre sob a vigilância dos intelectuais do PT. E Lula foi eleito duas vezes presidente da República.

O presidente trai a mulher com a secretária? O presidente é gay? O presidente sofre de priapismo? Pouco importa, desde que o eleitor tenha trabalho e possa levar seu filho ao jogo de domingo sem medo de ser assaltado. O eleitor é egoísta. Ele quer alguém que o ajude a resolver a vida dele. Se for um candidato bonzinho, tudo bem. Se for um malvado, que passe por cima da ética para alcançar resultado, talvez seja ainda melhor.

DAVID COIMBRA


30 DE AGOSTO DE 2018
+ ECONOMIA

TENTANDO ATRACAR

A ambição do Instituto de Inovação, centro privado com espaço de coworking, aceleração de startups e financiamento para novos negócios, é atracar no Cais Mauá. Duas áreas nobres na estrutura estão em esboço. Os empreendedores não comentam, mas a coluna soube que há tratativas para que seja uma das principais âncoras da revitalização dos antigos armazéns de Porto Alegre. A confirmação ainda depende de acordo e até da viabilização, a curto prazo, das obras de reforma no local, das quais ainda não há sinais.

O interesse de um projeto do tamanho do Instituto de Inovação pode ser o empurrão para destravar o processo. Uma das inspirações para unir tecnologia e revitalização de área portuária é o parque Lindholmen, de Gotemburgo, segunda maior cidade da Suécia. Na área do antigo porto, reúne três universidades - de TI, Gotemburgo e Técnica de Chalmers - e 300 empresas, entre as quais grifes como IBM, Volvo, Ericsson, Saab e Semcon. A coluna que visitou rapidamente Lindholmen, sonha com o dia em que a Capital tenha algo semelhante.

ENERGIA SOLAR gera eletricidade e emprego. Para o Programa Indústria Solar RS, iniciativa da Fiergs, a francesa Engie (ex-Tractebel) recruta representantes e prestadores de serviço em todo o país. São do segmento 9% dos 10 milhões de empregados em 2017 em energias renováveis. O RS é o terceiro com maior número de instalações no país.

NÃO É SURPRESA, MAS É BOM QUE SE MEÇA: O INDICADOR DE INCERTEZA DA ECONOMIA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS RECUOU 1,5 PONTO EM AGOSTO. OS ATUAIS 114,2 PONTOS ESTÃO NO PATAMAR DE INCERTEZA ELEVADA (ACIMA DE 110 PONTOS). É O SEXTO MÊS CONSECUTIVO.

Pesquisa nacional da CNDL e do SPC mostrou que 46% dos brasileiros com contas atrasadas não terão condições de pagar o que devem nos próximos três meses.

MARTA SFREDO

30 DE AGOSTO DE 2018

+ ECONOMIA

BC VOLTA, DÓLAR RECUA



Mesmo já sabendo dos dois leilões de linha (venda física de dólares, com obrigação de recompra posterior) do Banco Central, anunciados na véspera, depois do fechamento da sessão, o mercado de dólar acordou nervoso ontem. Na abertura, a cotação chegou a R$ 4,157.

À medida que as transações avançaram, a calma voltou, com ajuda dos US$ 2,15 bilhões ofertados pelo BC. A cotação acabou fechando em R$ 4,114, recuo de 0,65% em relação ao dia anterior.

O desempenho contrastou com o do dia anterior, quando uma onda de desvalorização atingiu o real. Ontem o dólar se valorizou ante várias moedas de países emergentes, entre os quais a Turquia (3% de alta nesta quinta), onde o BC local foi obrigado a duplicar o limite de crédito no setor bancário, e na África do Sul, apontada como a "bola da vez", depois das crises de Argentina e Turquia. Mas o real resistiu à volta da depreciação.

Havia certa tensão sobre o resultado da primeira revisão do PIB dos Estados Unidos, mas nem o fato de o dado vir ligeiramente acima (4,2%) da expectativa (4,1%) perturbou a relativa calmaria no câmbio. O crescimento elevado da economia americana pressiona por mais aumento na taxa de juro no país, o que desloca capitais dos emergentes para a terra que imprime dólares.

Além de fazer leilões, o BC brasileiro também quebrou o silêncio, tentando reduzir o estresse. Parece ter ajudado. Ao menos, até agora.

A elevação consistente da bolsa, de 1,2% ontem, reflete mais as sucessivas altas em Nova York, que vem quebrando seus próprios recordes, do que alguma percepção de melhora no cenário interno.

Analistas advertem que a trégua na disparada do dólar pode ter curta duração, tanto pelo desafiador cenário externo, que afeta todos os países emergentes, quanto pelo ambiente interno, de incerteza elevada. Depois de registrar a segunda maior cotação da história do real, o dólar pode quebrar o teto até agora, de R$ 4,1631, registrado em 21 de janeiro de 2016.

MARTA SFREDO

30 DE AGOSTO DE 2018
L.F. VERISSIMO

Um Chirac, rápido


Na eleição presidencial de 2002, pela primeira vez na história recente do país, um candidato da extrema-direita chegou perto do poder na França. Com a esquerda dividida, como sempre, e com a reação crescente à invasão de imigrantes, como agora, só Jacques Chirac, disputando sua reeleição, teve mais votos do que Jean-Marie le Pen, líder da Frente Nacional. 

Poucos votos mais. E foram os dois para um segundo turno em que uma vitória de Le Pen não parecia fora de propósito. Seu eleitorado - a França "profunda", racista, antissemita, xenófoba, marginalizada pela globalização - continuava o mesmo e não mudaria seus conceitos e preconceitos - ou seu voto.

Mas aí a França acordou. Olhou em volta, esfregou os olhos e disse a frase fatídica: "Pera aí um pouquinho". Como se sabe, "pera aí um pouquinho" é a frase que tradicionalmente precede tomadas de consciência e epifanias. Nosso francês exemplar - digamos que se chame Pierre, para facilitar -, talvez um eleitor do Jospin, socialista, terceiro mais votado no primeiro turno, se deu conta de que antes de mais nada era preciso evitar que Le Pen se elegesse. Pierre poderia ser comunista, anarquista, zen-budista, odiar o Chirac, não importava. Só um Chirac vencedor impediria que a França fosse governada por um fascista declarado.

Chirac cumpriu sua função histórica. Derrotou Le Pen de goleada no segundo turno e lavou a alma da França - ou, vá lá, deu uma esfregada até a eleição seguinte, do Sarkozy. Venceu porque, como o nosso Pierre, muita gente se uniu, não a favor dele, mas contra o Le Pen. Simpatizei com Chirac depois que me contaram que ele teve um caso com a Claudia Cardinale. Ter um caso com a Claudia Cardinale me parece recompensa justa pelo que Chirac fez pela França. Ele mereceu.

Pensando em votar em branco, votar no Ratinho ou anular o voto? Pera aí um pouquinho. Escolha o mais Chirac dos candidatos e vote nele. O Le Pen nós já temos.

L.F. VERISSIMO

quarta-feira, 29 de agosto de 2018



29 DE AGOSTO DE 2018
PEDRO GONZAGA

LITERAL

Bem-vindo a um mundo em que tudo quica, tudo rala, tudo mela, num cenário feito de sonhos com a concretude de casas de condomínio, bebidas e baladas indiscerníveis. Ao sol, as coisas reluzem como brinquedo novo, embora isso já seja uma imagem. É um mundo sem imagens, um mundo literal, higienizado de duplos sentidos, consumado por vozes nasaladas que estrebucham certezas para audiências que as regurgitam e as engolem como se fossem suas.

Muito se reclama agora da má interpretação dos textos. Trata-se de uma injustiça dos críticos. Simplesmente não há mais interpretação. Quando só o que se percebe é o sentido literal, consumiu-se o tipo de leitura que demandava reconhecer os jogos semânticos que se realizam abaixo da superfície.

Em toda parte, tomam-se os assuntos do discurso por sua substância. Se um artista cria uma obra de temática violenta, vê-se nele um apologista, pois se obliteraram as camadas que podiam fazer da obra antes uma crítica, uma denúncia, uma metáfora.

Por incapaz de chegar à profundidade dos eventos únicos, a literalidade gera um caos cognitivo em que já não há hierarquias. Pois contra o chapinhar eterno de gatinhas na realidade estavam o pensamento alegórico, o raciocínio comparativo, os ditos populares, responsáveis pela própria compreensão do que éramos num universo coletivo e incontrolável. No monturo do literalismo, nascem apenas as flores da irrelevância.

Na busca por mais literalidade, cultua-se o papo reto, sincero e autêntico, até serem obrigatórias etiquetas para alertar ironia, risco de ofensa, público-alvo. Como o resultado é morno, grita-se, sob pretensa intensidade. O último resquício de esforço simbólico agoniza nos eufemismos do politicamente correto.

Parece que a cultura ocidental foi de adulta à jovem, de adolescente à infantil, para voltar, por fim, às fraldas. Porque é no bebê que o desejo é sempre literal e satisfeito. E assim sai de cena o narcisismo primitivo, com sua ferida necessária, com seu corte abissal entre o ser e o mundo, e entra o narcisismo literal, o eterno berço em que todo o mundo sou eu mesmo ou coisas parecidas comigo que são eu, sem contradições, sem dúvidas ou ruídos. Daí a revolta que sentem nossos narcisos ao verem suas causas questionadas, daí a fúria com que xingam os que ousam lhes dizer que há um mundo lá fora, com dilemas mais obscuros do que o mero bichinho de borracha com que se comprazem e se cegam.

PEDRO GONZAGA


29 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

Como o bife mudou a História

Os veganos que me desculpem, mas foi o bife que mudou a História, e não a alface ou o grão-de-bico. Uma das mudanças ocorreu quando os turcos otomanos tomaram Constantinopla e fecharam a passagem da Europa para a Índia.

Ora, na Índia os europeus adquiriam as especiarias, que nada mais eram do que temperos, como a pimenta-do-reino. Esses temperos eram valiosos exatamente porque, com eles, os cozinheiros do Velho Mundo disfarçavam o sabor da carne, que apodrecia muito rapidamente naquele tempo sem geladeiras e freezers. Assim, ansiosos por um bom rahmschnitzel ou um filé à parmegiana, os europeus jogaram-se ao mar atrás de um caminho que os levasse às especiarias e acabaram descobrindo, entre tantas novidades, a América. Ou seja: nós.

Foi também por causa da carne podre, tão podre, que nem temperos a salvavam, que os marinheiros do Encouraçado Potemkin se amotinaram, em 1905, no porto de Odessa. Os comandantes do navio diziam que a carne que seria servida no almoço dos marinheiros estava em condições de consumo, desde que lavada com vinagre. Os marujos apontavam para os vermes que saíam dos bifes e avisavam que não iam comer aquilo. Come, não come, come, não come, os marinheiros se rebelaram e quase derrubaram o governo do czar, antecipando a revolução que viria 12 anos mais tarde.

Foi essa revolta que Serguei Eisenstein tentou reproduzir em um filme que entrou para a história do cinema, O Encouraçado Potemkin. Era um filme mudo, mas muito eloquente. Sua cena mais famosa é a do massacre da Escadaria de Odessa, que já mereceu referência em vários outros filmes, inclusive Os Intocáveis, de Brian de Palma. Você se lembra do carrinho de bebê que desce sozinho as escadarias da estação de metrô de Chicago durante um tiroteio? Pois é. Vem do Encouraçado.

A rebelião do Encouraçado Potemkin foi tão dramática, que abalou não só a Rússia: abalou o Brasil. Cinco anos depois, em 1910, marujos brasileiros sublevaram-se contra os maus-tratos que sofriam nos navios da Marinha e, como os russos, quase derrubaram o governo. Chegaram a bombardear a cidade do Rio de Janeiro, que era a capital do país, posto do qual jamais deveria ter sido removida.

Naquele tempo, os marinheiros eram, quase todos, ex-escravos ou filhos de escravos. Quando cometiam algum erro, a punição era crudelíssima. Certo dia, um deles foi castigado com nada menos do que 250 chicotadas, quando o habitual eram 25. O pobre desmaiou de tanto apanhar. Foi aí que o marinheiro João Cândido, gaúcho de Encruzilhada do Sul, decidiu liderar a revolta que abalou o governo de outro gaúcho, o presidente Hermes da Fonseca.

João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma música em homenagem à chamada Revolta da Chibata e a João Cândido, o Almirante Negro. É O Mestre-Sala dos Mares, que, nos anos 1970, teve a letra modificada pela censura do governo militar. A letra original contava, acerca das chibatadas sofridas pelos marinheiros:

Rubras cascatas jorravam das costas

dos negros pelas pontas das chibatas

Inundando o coração do pessoal do porão

Que a exemplo do marinheiro gritava - não!

As duas revoltas, a dos russos e a dos brasileiros, terminaram em tragédia para os amotinados. Ambos os governos cederam para alcançar a paz, ofereceram perdão e traíram os marinheiros. Os russos foram mortos às centenas. Os brasileiros foram presos. Dezoito dos líderes da rebelião viram-se metidos em uma cela minúscula do presídio da Ilha das Cobras. Dezesseis morreram asfixiados. Um dos sobreviventes foi João Cândido, que contou assim o que aconteceu na cadeia:

"A prisão era pequena e as paredes estavam pichadas. A gente sentia um calor de rachar. O ar, abafado. A impressão era de que estávamos sendo cozinhados. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as necessidades num barril que, de tão cheio, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal. Havia um declive e o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio ficamos quietos para não provocar poeira. Mas o calor, ao cair das dez horas, era sufocante. Gritamos. Nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade. O esforço foi gigantesco. Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno. Quando abriram a porta já tinha gente podre".

Ao ser retirado da masmorra, o Almirante Negro, considerado louco, foi internado à força em um hospício.

Tudo isso acontecendo e ainda não consegui chegar ao bar. Sim, quero chegar ao bar! Chego amanhã.

DAVID COIMBRA

29 DE AGOSTO DE 2018
ARTIGO


CHEGA DE VER O FUTURO PASSAR PELA JANELA UM IDOSO É AGREDIDO A CADA 10 MINUTOS

A razão dessa inércia não recai sobre o conjunto de brasileiros. Ao contrário, pois nossa população mostra no dia a dia a força do empreendedorismo e da inovação, criando soluções e buscando saídas mesmo com as graves crises. Carecemos, no entanto, de governos que estejam nessa sintonia. Obstinados, incomodados, com vontade. Alinhados com as nações desenvolvidas, importando bons exemplos, buscando novos negócios.

Vejo nos governos uma apatia. Uma falta de apetite, como se estivéssemos satisfeitos com o que temos. Mas estamos longe do ideal. Um país sem grandes acordos comerciais - o principal deles, no Mercosul, com muito menos intensidade do que se esperaria. Uma nação que deixa fugir seus cérebros. Que se distancia dos setores avançados da economia, como o campo, que se tornou uma potência apesar de diversos entraves. A burocracia impera e emperra o Brasil, que fica para trás.

Ao mesmo tempo, nossos vizinhos fazem sua parte. O Chile sempre se destaca, com sua economia aberta e vibrante. Este ano, foi um dos 11 países a assinarem uma nova versão do Acordo Transpacífico, que inclui também Peru, Canadá, México e Japão. Recentemente, o Paraguai tem atraído muitos negócios brasileiros, graças ao seu ambiente favorável, sistema tributário mais simples e menor burocracia.

Quanto tempo mais ficaremos reclusos? Quando deixaremos de ser plateia para sermos protagonistas? A retomada do crescimento passa por quebrar esse paradigma. Que paremos de andar em círculos, remoendo diferenças e problemas. Sigamos para a frente, integrando-nos ao globo e buscando novas ideias. Investindo em pesquisa, com uma educação moderna e formação profissional.

Chega de ver o futuro passar pela janela. É hora de o país deixar a inércia para trás e andar ao lado do mundo, construindo o amanhã que queremos. Esse é o caminho para alcançarmos desenvolvimento e justiça social para todos os brasileiros.

Sendo assim, o número de idosos no Brasil cresce todos os anos. Segundo o IBGE, a população idosa brasileira totaliza 23,5 milhões de pessoas. Projeções da ONU indicam que uma em cada nove pessoas no mundo tem 60 anos ou mais. O estudo aponta que, em 2050, haverá mais idosos do que crianças menores de 15 anos, alcançando 2 bilhões de pessoas ou 22% da população global.

Com estes dados, porém, a violência contra o idoso é uma triste realidade na sociedade, onde a maioria dos casos de maus-tratos é cometida por pessoas muito próximas a elas, principalmente os seus familiares. Entre 5% e 10% dos idosos ao redor do mundo sofrem violência. No Brasil, estima-se que a cada 10 minutos um idoso é agredido.

Existem muitas razões para que as pessoas sofram violência. Entre as mais frequentes, está a deterioração e fragilização das relações familiares. Quando se fala em violência contra os idosos, pensa-se imediatamente na violência física, mas esta não é a única. A violência também pode manifestar-se como psicológica, moral, sexual, pode ser familiar, social, institucional, estrutural e pode resultar de atos de omissão e negligência.

O idoso é uma vítima difícil, que muitas vezes não quer expor o autor da violência. O atendimento precisa ser cauteloso e delicado para conseguir preservar os vínculos, se ele assim preferir. Devemos pensar que um envelhecimento bem- sucedido é uma conquista de toda uma sociedade: civis e governantes.

É urgente a necessidade de tornar visível a violência contra o idoso para que ela seja reconhecida nos atos cotidianos e reprovada como atitude aética. Coibir a violência é um ato de cidadania, é um ato de valorização da vida humana, é um ato de respeito para com os idosos.

Delegada titular da Delegacia do Idoso de Porto Alegre larissafajardo@uol.com.br
LARISSA FAJARDO

29 DE AGOSTO DE 2018
ARTIGO

POR UMA PORTO MAIS ALEGRE


Porto Alegre é a capital de um Estado onde se originou o cooperativismo no país. Foi destaque em ações públicas participativas e sediou eventos globais como o Fórum Social Mundial e o Fórum Internacional de Software Livre. Além de universidades públicas e privadas de excelência, possui parques científicos e tecnológicos de destaque internacional e, em termos esportivos, mantém dois clubes campeões mundiais de futebol, privilégio de poucos.

Nosso desafio na promoção de inovação deve se orientar conforme o que é desenvolvido por complexas organizações. Mais do que networking, é preciso agir como teamnets, entendido como a capacidade de as pessoas e suas empresas trabalharem em grupo, articuladas entre si e não necessariamente ligadas de modo formal umas às outras. O êxito resulta da criativa tensão que há entre tendências competitivas e coo- perativas, baseada em cinco princípios: dois deles dão suporte à competição: participantes independentes e múltiplos líderes; dois refletem cooperação: propósito unificador e interligações voluntárias; o quinto princípio proporciona equilíbrio entre as forças antagônicas, ou seja, níveis interativos.

A combinação entre cooperação e competição é salutar. Concebida em 1995 por pesquisadores de Harvard e Yale (EUA), a coopetição está baseada na Teoria dos Jogos, uma vez que a cooperação é necessária para aumentar os benefícios entre os indivíduos (foco no crescimento) e a competição prevê o posterior compartilhamento dos seus resultados (foco na partilha). O desafio está posto: forças competitivas e colaborativas se manifestam na cidade, fazendo jus a uma Porto mais Alegre de se viver e compartilhar seu futuro.

Professor da PUCRS, coordenador da equipe de preparação do Pacto de Inovação de Porto Alegre

LUÍS VILLWOCK


29 DE AGOSTO DE 2018
POLÍTICA


TJ busca banco público para gerir operação dos depósitos judiciais

LICITAÇÃO FOI LANÇADA nesta semana após STF proibir tribunais de lucrar com rendimento de contas
O Tribunal de Justiça do Estado (TJ) começou a busca por um banco público para gerenciar a conta dos depósitos judiciais e que, consequentemente, vai lucrar com a operação. A licitação, aberta nesta semana, prevê contrapartida ao Judiciário que, em 2019, é estimada em R$ 33 milhões.

A conta dos depósitos judiciais é alimentada por dinheiro de pessoas físicas e jurídicas. Os depósitos decorrem de ordens judiciais e têm como objetivo garantir eventual pagamento futuro que está em litígio. A gestão da conta gera lucro uma vez que o operador pode reinvestir o dinheiro pela taxa Selic (mais alta) e devolver recursos aos depositantes pela correção da poupança (mais baixa).

Esse ganho foi praticado pelo TJ desde que uma lei autorizou a medida, em 2001, e serviu para reforçar o caixa do Judiciário. No início de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a prática, exigindo a contratação de um banco operador, que ficará com o ganho e repassará parcela ao TJ.

- É um lucro que ficava com o sistema bancário (antes de 2001) e que voltará a ficar com o sistema bancário (após a licitação). A pergunta nesta questão é sempre a mesma: por que não se aplica o dinheiro em um fundo rentável, pega esse rendimento e dá para as partes? Porque a lei proíbe - explica o desembargador Túlio Martins, presidente do conselho de comunicação social do TJ.

A contrapartida que o banco terá de dar TJ é fruto de cálculo que considera o montante de depósitos judiciais e a Selic vigente. Pela licitação, quanto mais alta estiver a taxa e, portanto, mais alto o ganho do banco (as partes seguem resgatando seus valores ao final do processo com correção pela poupança), maior a contrapartida ao TJ.

Além do destino dos rendimentos, há outra polêmica sobre os depósitos judiciais. Desde o governo Germano Rigotto (MDB), o Executivo era autorizado a "tomar emprestado" percentual do montante da conta para fazer frente aos seus gastos cotidianos. Todas as últimas gestões fizeram saque no sistema e valores nunca foram devolvidos. O procedimento agora também foi proibido pelo STF.

PIRATINI PROMETE DEVOLVER R$ 10,7 BILHÕES EM SAQUES

No início deste mês, o governo José Ivo Sartori (MDB) enviou projeto à Assembleia para regulamentar o tema. Se for aprovado, o Palácio Piratini assumirá compromisso de devolver ao menos R$ 70 milhões por ano ao Judiciário - dos R$ 10,7 bilhões pegos emprestados. Nesse cenário, que considera longo período com déficit nas contas estaduais, a devolução levaria cerca de 150 anos.

O projeto também prevê compensações ao TJ por este não poder mais obter ganhos em cima dos depósitos. Como o Judiciário já contava com esses recursos pelos próximos anos, a proposta do governo garante o repasse de R$ 150 milhões em 2018 e o mesmo valor no ano que vem.

O projeto ainda soluciona uma diferença de R$ 720 milhões entre Executivo e Judiciário. São recursos que a Justiça obteve por meio de rendimentos e reinvestiu no caixa único. Porém, essa cifra também foi usada pelo Piratini, que não teria como devolvê- la no curto prazo. Pela proposta, esse valor é zerado. Em troca, o governo se compromete a devolver R$ 310 milhões, entre 2019 e 2021.

- O projeto, em linhas gerais, é razoável, porque a crise financeira é algo absolutamente óbvio para todos os poderes. Então, não parece haver nada ali que seja fora da realidade - avalia Martins, sobre as compensações ao Judiciário.
GABRIEL JACOBSEN

29 DE AGOSTO DE 2018
NÍLSON SOUZA


O céu dos solitários

Li outro dia reportagem sobre o homem mais solitário do planeta, um indígena primitivo que vive isolado em Rondônia, na Amazônia brasileira, sem contato com qualquer outro ser humano. Segundo os pesquisadores do movimento Survival, que defende o direito das comunidades indígenas de viverem em suas terras do modo como viveram seus antepassados desde o início dos tempos, o homem conhecido como Índio do Buraco é o único remanescente de uma pequena tribo dizimada por pistoleiros e por doenças transmitidas pelos operários que invadiram a selva para construir a rodovia BR-364. Seu apelido advém do costume, identificado pela Funai, de cavar tocas para capturar animais ou para se esconder. Ninguém sabe ao certo que idioma ele fala (se é que fala sozinho) nem o povo a que pertenceu. Mas o sujeito está lá, já foi até fotografado através das palhas de uma precária cabana que construiu em um de seus esconderijos cavernosos.

Curioso, interessante, mas ouso dizer que não é o único brasileiro nessas condições.

As selvas urbanas, com suas multidões hipnotizadas pela tecnologia, também abrigam tipos solitários que já não pertencem a tribo alguma. Eles vagueiam por calçadas e praças, alheios às rotinas dos demais mortais. Alguns constroem tocas imaginárias sob as marquises do abandono, enrolam-se em cobertores sujos e mortalhas de papelão. Outros perambulam sem rumo, como zumbis famintos, às vezes mantendo diálogos incompreensíveis com os fantasmas que lhes fazem companhia. E nem todos ostentam a estampa de desgarrados: há os solitários com lar, família e animal de estimação, mas que, por enigmáticos sortilégios do desencanto, optaram pelo mutismo e desistiram de compartilhar com o próximo suas ideias e sonhos.

Creio que aquele índio arredio tem mais confrades do que poderia suspeitar - inclusive nesta nossa cidade congelada pelo minuano.

Essa Porto Alegre de tantos extraviados me dói e me desconcerta. Devemos tentar contato com eles ou é melhor deixá-los em paz, como recomendam os estudiosos do isolamento? Sobre os habitantes das calçadas e dos viadutos, estou convicto de que não basta expulsá-los de suas tocas para desobstruir o caminho dos que querem ir e vir sem tropeçar na própria consciência. Também não serve simplesmente fechar os olhos e fingir que eles não existem. Tem que haver uma solução intermediária, que contemple a demanda coletiva por uma cidade desimpedida sem desconsiderar o direito à dignidade dos desassistidos.

Porém, em relação àqueles que optam conscientemente pelo voo solo sobre este vale de lágrimas, voto por deixá-los seguir o rumo do próprio coração. Pelo menos no meu turno de gendarme imaginário dessa fronteira da solidão, me comprometo a carimbar o passaporte de todos os que se apresentarem silenciosos ou balbuciando aquele inspirado verso da canção de Jorge Drexler:

- Soledad, aqui están mis credenciales.

Que sigam. Em algum lugar deve haver um céu dos solitários.

NÍLSON SOUZA

terça-feira, 28 de agosto de 2018


28 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

O homem que escolhia os amantes da ex-mulher


Já tive um prato de restaurante com o meu nome, tipo o "Filé a Osvaldo Aranha", que honra o antigo diplomata gaúcho e tem bastante alho frito.

O meu era "Lombinho a David Coimbra", que o meu amigo Atílio Romor, gerente do Lilliput, consagrou no cardápio do bar. Os amigos, gaiatos, brincavam:

- Hoje vou comer o lombinho do David.

Tudo bem, era um orgulho para o degas aqui. Pena que não guardei um daqueles menus.

Conto isso porque fez pulsante sucesso a minha proposta de eleger O Melhor Bar da História de Porto Alegre. Os leitores têm enviado seus candidatos e os defendido com o valor de Kannemans e Geroméis.

Por essa razão, tenho de destacar outras candidaturas. Não quero que fiquem questionando a lisura do pleito, como fazem os críticos da urna eletrônica.

Por exemplo: faz-se necessário citar o histórico bar O Encouraçado Botequim, embora não o tenha frequentado. Um bar bom até no nome, que brincava com o título do famoso filme de Serguei Eisenstein, O Encouraçado Potemkin.

Agora, necessito da sua compreensão, paciente leitor, porque uma coisa remete a outra, nessa história, e são todas coisas extraordinárias. Primeiro, lembro que o filme de Eisenstein contava sobre uma revolta que se deu na Rússia czarista em 1905. O tal Encouraçado Potemkin era uma belonave que havia participado da guerra contra o Japão, da qual a Rússia saíra derrotada e esfarrapada.

Neste ponto, terei de fazer novo desvio, porque o Potemkin que o navio homenageava havia sido o principal amante da imperatriz Catarina II. Quando digo "principal" significa que Catarina teve muitos amantes, embora em geral fosse um por vez. Por Potemkin ela se apaixonou como uma menina de Malhação. Porém, como os cientistas já provaram, o fogo da paixão dura, no máximo, um ano e meio, às vezes dois. Ao cabo desse período, as chamas do sexo se extinguiram entre eles, restando a muito mais sólida admiração. Catarina manteve Potemkin como seu conselheiro e auxiliar de governo. Ele organizou a marinha russa e foi importante em conquistas militares. Mais até: Potemkin ajudava-a a escolher novos amantes.

Quase sempre, o eleito indicado por Potemkin era um jovem oficial do exército. O rapaz primeiro passava por uma entrevista, que identificava se ele tinha algum espírito para pelo menos conversar civilizadamente com a rainha, uma mulher culta e cheia de interesses mundanos. Depois, uma dama de companhia de Catarina fazia um teste com ele: levava-o para a cama e avaliava se era competente ou não nas lides do amor. O passo seguinte era orientá-lo a respeito das preferências de Catarina, detalhes como "língua na orelha, não". Finalmente, o gajo era levado à presença real para se repimpar.

Não se podia dizer que Catarina fosse exatamente uma mulher bonita, mas era generosa. Depois que se cansava dos amantes, despedia-os com uma pensão vitalícia e um palácio em algum lugar aprazível da Mãe Rússia.

Pois bem. Potemkin foi o campeão de Catarina. E um campeão da Marinha, donde merecer duplamente a homenagem de nomear o encouraçado. Feita a necessária digressão, voltemos ao filme e à revolta propriamente dita, que foi dramática e feroz, e produziu reflexos inclusive no Brasil, envolvendo inclusive um personagem gaúcho. Mas tudo isso continuo contando amanhã, não há tempo para mais nada, a não ser para finalizar com um agradecimento aos leitores. O seguinte: perguntei, na coluna de segunda, como deveria fazer para abrir páginas coladas de um livro de 1945. Recebi dezenas de respostas. Estou lendo uma a uma e já vi que o mais recomendado é:

1. Expor as páginas ao vapor.

2. Polvilhá-las com talquinho de nenê.

Continuarei o estudo e logo digo se teve resultado.

DAVID COIMBRA

28 DE AGOSTO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

UM SÍMBOLO DO RIO GRANDE


Representação viva de tudo o que o Rio Grande do Sul tem de mais autêntico, João Carlos DÁvila Paixão Côrtes foi uma das poucas unanimidades num Estado habitualmente cindido por divergências, muitas das quais por razões menores. É significativo que esse talento múltiplo, o folclorista e compositor que descobriu as tradições gaúchas, tenha partido em tempos de Expointer, nos quais a cidade e o campo se encontram em Esteio para reverenciar algumas das mais fortes razões de orgulho dos gaúchos. 

Paixão Côrtes teve sempre uma visão aberta do tradicionalismo, o que contribuiu para transformá-lo também no símbolo urbano da Capital, eleito pelos gaúchos, sob a forma da estátua em bronze O Laçador, uma referência turística.

O talento múltiplo desse pioneiro da cultura regional, que foi também ator e dançarino, ajuda a explicar o feito de ter conseguido exportar para todo o Brasil e para o mundo os centros de tradições gaúchas (CTGs). Dificilmente um turista gaúcho, em suas andanças fora do Estado, deixa de encontrar um desses símbolos de hospitalidade, nos quais estão presentes algumas de suas manifestações mais típicas - a poesia, a música, a dança, o churrasco, o chimarrão. Dentro e fora do Estado, os CTGs são hoje indissociáveis dos rio-grandenses.

Ao revalorizar a tradição, sem perder de vista o presente e o futuro, Paixão Côrtes contribuiu como ninguém mais para resgatar a autoestima dos gaúchos, afetada por crises e divisões crônicas. Juntamente com o também folclorista, escritor e seu amigo Barbosa Lessa, fez mais do que resgatar o Rio Grande. 

Foi um dos responsáveis por atrair os jovens, a partir do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, para um encontro com suas raí- zes, colocando sempre o amor pelo Rio Grande acima de outras eventuais divergências. E o fez não apenas na prática do dia a dia, mas apostando permanentemente na pesquisa, como forma de ajudar seus conterrâneos a entender melhor o seu passado e a embasar melhor o seu futuro.

O momento é de dor para familiares, amigos e admiradores, pela perda, mas também de cultuar essa espécie de lenda viva do Estado. Paixão Côrtes será lembrado sempre, principalmente nos períodos em que o Estado precisar de união para preservar essa condição pela qual ele sempre lutou: a de ser gaúcho.

OPINIÃO DA RBS