quinta-feira, 25 de outubro de 2012



25 de outubro de 2012 | N° 17233
CELSO GUTFREIND

Absolvição

Foi o Charles Kiefer que contou a história. Ouviu-a direto da viúva do pintor austríaco Oscar Kokoschka. Na Ledig House, colônia norte-americana de escritores, que o acolheu na metade dos anos 90. Eu estive lá, um ano depois. A história, portanto, começou bem perto de mim.

Ela também está no livro Festa sob as Bombas, de Elias Canetti. O escritor, Nobel de Literatura, relata a vida em Londres, a partir de 1939. Canetti esbanja habilidade ao contar os seus encontros durante aquela época. A narrativa, então, chega mais perto, porque vive no livro inteiro, com gente como Bertrand Russel, Freddie Uhlman, Franz Steiner. E Olda Kokoschka, a viúva do pintor.

Ela revela que o marido viveu atormentado pela culpa. Sentia-se responsável pelo Holocausto, porque ele e Hitler candidataram-se à mesma bolsa, na Academia de Viena. Kokoschka ficou com a vaga e, mais tarde, com a convicção de que, se o nazista tivesse entrado em seu lugar, teria se tornado pintor, e não político. Neste caso, canalizaria para a arte o seu próprio mal.

Não acredito que Kokoschka tivesse esse poder. Nem penso que alguém o tenha, para o bem ou para o mal. Mas a arte tem. É o que nos conta a turma do Teatro do Oprimido, com intervenções nas comunidades cariocas e no mundo inteiro. Eles expressam o sentimento de que desviam a gurizada do tráfico para a dramaturgia. Do abandono para a cidadania. Do vazio da existência para o preenchimento de se sentir alguém no mundo.

Senti algo parecido em Bobigny, na França, e na Grande Porto Alegre. Montamos equipes a fim de oferecer literatura a crianças separadas de seus pais e em pane no processo de alfabetização. Sentíamos que trocavam os males da realidade pela capacidade de imaginar do bom e do melhor.

É muito cedo para saber se foram salvos por esta história. Mas ela foi vivida no dia a dia e chegou mais perto ainda. No embalo, acho que todos os meus amigos e eu seríamos piores se não estivéssemos envolvidos com a arte. Fazendo ou usufruindo, tanto faz. Já o Holocausto matou parte da minha família, como a de Francis Greenburger, o criador da Ledig House. E esta história, sim, vive dentro de nós.

Em males acima da conta, é possível que a arte não dê jeito. Mas acredito que um quadro – canção, livro, filme – pode salvar quem ainda tem condição de ser salvo por um fio de vida. Abrem espaço para a construção de um novo mundo, de dentro para fora, onde podemos circular com mais criatividade e leveza. Com esperança.

Oscar Kokoschka pintou muitos quadros e está absolvido por excesso de provas.

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