sábado, 29 de setembro de 2018



29 DE SETEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Medos à beira do abismo

"De que a senhora tem medo?", foi a pergunta bastante original numa dessas entrevistas recentes.

Pensei e disse: morro de medo de muita coisa, mas acho que, com o tempo, passei a ser mais corajosa (e achei, eu mesma, graça do que dizia). Principalmente, medo de qualquer mal que possa acontecer a pessoas que eu amo. Acidente, assalto, doença. Sei o que é sentir-se impotente quando algo gravíssimo acontece com alguma delas. No fundo mais fundo da mente, vem a indagação insensata e tola, mas pungente: como não pude proteger meu filho adulto de uma morte súbita no mar que ele amava?

Disfarçamos nossos tantos medos. Fingimos ser superiores, batendo grandes papos sobre dinheiro, futebol, sacanagem, política, ninguém levando porrada - como diria Fernando, o Pessoa. Empregamos palavras grandiosas, até solenes, que usamos como tapa-olhos ou máscaras para que a verdade não nos cuspa na cara, e nos defendemos do rumor que nos ameaça botando fones de ouvido enquanto caminhamos na esteira, para ficarmos em forma.

Mas, individualmente, temos medo e solidão; como país, presenciamos escândalos nunca antes vistos. A violência é cotidiana, o narcotráfico nos ameaça, mais pessoas foram assassinadas por aqui do que nas guerras ao redor do mundo nos últimos anos. Andamos encolhidos dentro de casa. Estão cada vez mais altos os muros do medo e do silêncio.

A gente se lamenta, dá palpites e entrevistas, organiza seminários. Resultado? Parece que nenhum. Eleições estão próximas? Melhor não saber. Mas sou da tribo (não tão pequena) dos que não se conformam. Não acredito em revolução a não ser pessoal. Em algumas coisas, sou antipaticamente individualista. Quando reuniões, comissões, projetos e planos não resolvem - é o mais comum -, pode-se tentar o mais simples. Às vezes, ser simples é original: começar pela gente mesmo. Em casa. Com as drogas, por exemplo, por que não?

Cada vez que, seja por trágica dependência, seja por aquilo que minha velha mãe chamava "fazer-se de interessante", um de nós consome uma droga qualquer (mesmo o cigarrinho de maconha dividido com a turma), está botando no cano de uma arma a bala - perdida ou não - que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador. Nosso filho, quem sabe.

Há quem me deteste por essas afirmações, dizendo que sou moralista, radical. Não sou. Apenas observo, acompanho, muito drama desnecessário, talvez evitável - mas a gente preferia ignorar o abismo. Há muitos anos, visitei várias vezes uma famosa clínica de reabilitação em São Paulo. Alguém muito querido de amigos meus estava lá internado, e voltava com frequência. O que vi, senti, me disseram e eu mesma presenciei nunca vai me deixar.

Num jantar, há muitos anos, um conhecido desabafou com grande culpa que costumava fazer-se de pai amigão fumando maconha com os filhos adolescentes, para estar mais próximo deles. Um dos meninos sofreu gravíssimos problemas de adicção pelo resto da vida, morreu de overdose e nem todo o amor dos pais, dos irmãos, ajudou em nada.

Sim, a vida pode ser muito cruel. Nas tragédias familiares, só há vítimas, embora alguns devam ser mais responsáveis do que outros. Não tem graça nenhuma brincar na beira do abismo.

LYA LUFT


29 DE SETEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O arrependimento

Tive um pequeno apartamento que vendi mobiliado, mas me aconselharam a retirar ao menos o lustre, já que era uma peça que parecia rara. Então, lá fui eu retirar do teto um lustre enorme e empoeirado, e até hoje ele anda pra lá e pra cá no bagageiro do meu carro, pois não encontro tempo para ir a um antiquário. Cada vez que abro o porta-malas, onde costumo transportar as sacolas do supermercado, me deparo com o espaço ocupado pelo lustre e me pergunto: por que não o deixei para o novo morador? Ganância, senhores.

Essa é uma pequena história sobre arrependimento. Igual a essa tenho dezenas, todas tão desimportantes quanto. Convites que não deveria ter aceitado, desabafos que eu não precisava ter feito, e-mails escritos depois de três cálices de vinho, esse tipo de coisa, bobeiras contumazes que não estragam nossa vida, apenas fazem com que a gente se envergonhe por uns dias e acabe aprendendo mais sobre si mesmo. Os poucos remorsos sérios têm a ver com relações afetivas e familiares (a velha culpa: onde eu estava que não vi isso, não percebi aquilo?), mas, ainda, tudo dentro da cota permitida de vacilos.

Arrependimentos nos amadurecem e nos ajudam na correção de rota. Só se tornam um problema quando a rota terminou, quando falta apenas meia-dúzia de curvas para a estrada chegar ao fim.

Ninguém simpatiza com a velhice avançada e motivos não faltam: doenças, falta de memória, perda da autossuficiência e outros enguiços comuns a quem rodou bastante. Ainda assim, doloroso mesmo é chegar tão longe e descobrir que entre os arrependimentos há um, ou dois, ou vários que não foram desimportantes e, sim, cruciais.

Excetuando as pessoas que confiam na vida eterna, para todas as outras, que acreditam apenas na vida antes da morte, nada pode ser mais triste do que, no balanço final, descobrir que abriu mão de um amor por causa de conveniências, que não foi amigo dos filhos porque só pensava em si mesmo, que não realizou projetos pessoais por causa de preguiça, que nunca arriscou uma guinada por causa de medos que agora parecem sem sentido, que gastou seu tempo com gente idiota e hábitos herdados de uma sociedade fútil, que não se permitiu conviver com pessoas diferentes por preconceito. Esse é o arrependimento que não é uma bobeira contumaz, pois resulta numa secreta tragédia pessoal: o desperdício de uma vida que poderia ter sido mais bem preenchida, mais estimulante e com mais oportunidades de expansão.

Tem boa notícia no final do texto? Tem. É sobre aquela meia dúzia de curvas que restam. Pode parecer pouco, mas é o que se tem para hoje, e hoje é tudo o que importa.

Muito mais sobre este assunto na palestra "Carpe Diem", que o filósofo e um dos fundadores da The School of Life, Roman Krznaric, fará dia 15 de outubro, às 19h, no Centro Histórico Cultural da Santa Casa, em Porto Alegre. Informações pelo fone: (11) 2638-7130.

MARTHA MEDEIROS


29 DE SETEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Esquisitices têm limite

As manias afastam amores. Até porque o romance exige o mínimo de sociabilidade. O exagero da compulsão complica o jogo de sedução. Quando a mania é elevada ao extremo grau de irreverência e absurdo e parece que não vai para frente se não consumar tal capricho absolutamente incomum. Emperra mesmo, para de viver, acredita que o pior pode acontecer se abdicar do seu zelo.

Ao encarnar um serviço de vigilância sanitária em tempo integral, não tem como se relacionar com ninguém. O beijo pede o contato, o toque, a sujeira emocionante da vida. Ama-se passando a gripe.

Tudo bem se troca o copo do restaurante, se não encontra a superfície cem por cento limpa, mas levar copos de vidro para almoçar fora já extrapolou a cota. Tudo bem se não gosta de alguém lhe observando comer, mas jamais realizar uma refeição com a presença de pessoas desconhecidas torna o convívio impossível.

Tudo bem se realiza as necessidades em seu banheiro, mas contar com o luxo de não ter ninguém em casa é uma cautela excessiva. Tudo bem se lava as mãos com frequência, mas recorrer ao álcool a cada cumprimento lhe tornará misantropo.

Uma amiga sofreu um baque no início de um flerte. A princípio, o crush era normal. Conheceram-se num aplicativo. Trocaram longas conversas sem a ameaça de qualquer bolha de esquisitice. Quando saíram para o cinema, não houve nenhum problema. Para o jantar, tampouco teve algum hábito ameaçador. Ele fingiu bem.

A cena encrespou quando partiram para o motel. Ela estranhou que ele subiu ao quarto com uma mochila nas costas. Deduziu que ele trouxe uma muda de roupas e produtos de higiene para a manhã seguinte. Achou o gesto bonitinho, próprio de um filhinho de família. Relevou: ela tinha a sua bolsa, ele tinha a sua mochila.

Só que ele, assim que chegou perto do criado-mudo e colocou meia-luz na cabeceira, arrancou toda a roupa da cama, fez um bolinho com o pano e levou para longe.

Não significava um ataque selvagem e fúria de Don Juan, infelizmente. Daí, solenemente, tirou de sua mochila um jogo de lençóis e passou a arrumar e envelopar o cantinho com o olhar fixo de faxineiro.

Óbvio que ela cancelou o encontro. Não sem antes usar a loucura dele como álibi. - Você esqueceu os travesseiros. Vamos voltar outra hora com tudo completo. Ele nem estranhou o comentário. Pelo contrário, concordou com um sorriso.

Foram embora para nunca mais se verem.

CARPINEJAR


29 DE SETEMBRO DE 2018
PIANGERS

Se tivermos sorte



Existe um ditado irlandês: "É melhor ter sorte do que ser rico". Adoro esse ditado. Quero ter sorte. Uma vez um colega disse, desdenhando de um "boa sorte!", que sorte é para incompetentes. Que seja. Vou optar pela sorte. Agradeço todos os dias pelas coisas boas que me aconteceram, que não têm explicação científica alguma. Alguns chamam isso de Deus.

Me lembro até hoje do Caio, um garoto raquítico de pele muito branca de quem todos gostávamos porque tinha o videogame mais legal e sempre nos convidava para ir na casa dele. Ele ganhava um presente toda vez que tirava uma nota boa. Ele ganhava um presente realmente caro sempre que passava de ano. Eu tinha inveja do Caio. Toda vez que eu tirava nota boa minha mãe falava: "Não fez mais que a obrigação". Passava de ano e ouvia: "Não fez mais que a obrigação". Era o melhor da turma e "não fez mais que a obrigação".

Ouvi falar esses dias que o Caio destruiu seu carro novinho dirigindo bêbado. Fiquei chocado. Me fez pensar na influência negativa de pais que nunca dizem "não" pros filhos. Mas pensei também na influência de bons pais. Será que teremos sorte?

Pais atenciosos, esses que passam horas estudando com os filhos, pais que conversam, que dizem não, esses pais podem, por alguma razão inexplicável, ter filhos malsucedidos. Ter filhos que fazem coisas erradas. Imaginem que tristeza é, para um pai dedicado, não ver seu filho brilhar. Que mundo injusto é esse, em que nós, humanos, somos tão imprevisíveis.

Se nossos filhos serão brilhantes, não sabemos. Aproveitamos cada momento torcendo pra que sim. Se tivermos sorte. Se tivermos sorte, serão decentes, bem-sucedidos, ajudarão outras pessoas, mudarão o mundo. Se tivermos sorte. Serão bondosos, reconhecidos, sorridentes e educados. Se tivermos sorte. Terão valido a pena as noites em claro, as vezes em que não pensamos no trabalho, as tardes de estudos, a dedicação, as conversas, a abnegação. Teremos feito tudo isso, e talvez dê certo, talvez não.

Se der certo, seremos os pais mais felizes do mundo.

Não fizemos mais que a obrigação.

PIANGERS
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29 DE SETEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

COMO TRATAR ALGUÉM?

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Jovens, confiem no tio: existia um tópico em Português chamado pronomes de tratamento. Estudávamos toda a lista: Vossa Senhoria, Sua Excelência, Ilustríssimo, Vossa Magnificência, Reverendíssimo, suas respectivas formas abreviadas, usos corretos e, refinamento final, quando usar Sua Excelência e Vossa Excelência. O uso era maior do que hoje: quase toda carta chegava ao meu pai com Ilmo. Dr., e nós olhávamos a abreviatura com a tranquilidade de quem sabia o significado. Todos os mais velhos eram senhor e senhora. Meu pai usava o já arcaico senhorita seguido da expressão por obséquio. 

O mundo tinha matizes, vieses, vernizes e salamaleques. O tu e o você eram reservados para intimidades enormes e total isonomia: mesma idade, mesmo gênero, mesma renda. O uso do Seu era um pouco mais comum para pessoas que exerciam funções simples. Difícil saber se chamar o jardineiro de Seu era um gesto de respeito ou uma demarcação de espaço social. No Rio e no Nordeste, com muita frequência, sou chamado de Seu Leandro e acho simpático. Em São Paulo e Brasília, noto mais o doutor.

Gosto muito do título de professor. Sinto-me um professor, vivo a profissão, tenho orgulho dela. Quando alguém diz "mestre" como se fizesse alusão ao próprio Yoda de Guerra nas Estrelas, acho mais deslocado. Professor sempre me agrada. Meu pai, professor e advogado, sempre era doutor. Eu, professor com grau de doutoramento, quase sempre sou professor. Nunca tive anel de formatura, mas os advogados usavam rubi; os médicos, uma cintilante esmeralda. Nós, professores, teríamos direito a uma pedra negra, ônix, não sei se metáfora de algo.

Os títulos caíram de moda. Cintilam ainda em encraves como o ambiente clínico, o jurídico ou o diplomático. Lá, são obrigatórios e esperados. A gravata ou o estetoscópio demandam o tratamento. Nunca fiz muita questão de respeito demonstrado em pronomes, mas, confesso, a intimidade excessiva e sem base histórica de relação é mais incômoda do que ser chamado de professor-doutor.

Há uma paralaxe, um desvio, que preciso ressaltar. As pessoas são mais íntimas minhas do que eu delas. Algumas afirmam: "Durmo com você todas as noites" e, por mais que eu perscrute o rosto da interlocutora, nenhuma memória de infração do sexto mandamento vem à lembrança.

Quanto mais subimos o mapa do Brasil, mais temos uma sociabilidade que inclui o corpo e o toque. Chama-se pelo nome, toca-se muito, fala-se a uma distância de invasão da zona de conforto. A intimidade sem nenhum lastro prévio é algo inquietante para mim. Ouvi, há anos, uma anedota envolvendo Jânio Quadros, por certo apócrifa. 

Uma repórter faz uma questão chamando-o pelo nome de batismo e ele, empertigado, responde que "intimidade gera filhos e problemas" e que ele não desejaria nenhuma das duas coisas com a dita profissional. Em um país de corpos enlaçados, a figura mesoclítica de Jânio deveria causar espécie, mas, confesso, existe uma discreta fraternidade minha com o falecido presidente em torno da anedota. Quando lidamos com pessoas não conhecidas, o cordão sanitário é algo desejável.

O brasileiro é cordial, assevera mestre Buarque de Holanda. Ao encontrar alguém, abraçamos, retiramos pó do ombro, espanamos, mexemos nos botões e invadimos regiões do corpo alheio inadmissíveis para o padrão europeu. Chamamos quase todos pelo nome e já inventamos apelidos no primeiro contato.

Sou um homem de 55 anos que gosta de ser tratado de senhor por aqueles que eu não conheço e pelo título de professor em casos profissionais. Com os íntimos, gosto do nome. Nunca tive apelidos e o surgimento de Lê ou Lelê só me irrita. Acho "Seu" pouco e "Doutor" excessivo. Sei que quem me chama de "Mestre" ou "Seu" não está me atacando ou diminuindo, apenas usando algo do seu universo de sociabilidade.

Alguém poderia pensar que sou conservador e que, no mundo atual, qualquer formalidade pode ser dispensada. Na mesma esteira, mas em outra direção, poderiam dizer que apenas gosto de enaltecer diferenças e hierarquias entre pessoas que, Deus ou a República, tornam iguais a mim. Talvez essa crítica seja válida, mas, se eu tomar a mesma argumentação a meu favor, poderia dizer que justamente por desconhecer alguém, seus limites, gostos e idiossincrasias, além de saber que essa pessoa partilha o mesmo direito que eu tenho, aproximo-me com cautela e respeito. 

Meu receio de incomodar, cruzar fronteiras sem ser convidado, torna imperativa a regra de certas condutas de etiqueta pronominal e contenção das mãos, abraços e beijos. Formalidade nunca ofende. Forçar intimidade sempre o faz. Em suma, para responder à pergunta que está no título: trate a pessoa a sua frente como imagina que ela gostaria de ser tratada e não como você gostaria de ser tratado. Se não a conhece, use da formalidade sem perder o espírito republicano.

Como sempre, despeço-me com súplicas de que este texto os encontre bem, reforçando aos senhores, senhoras e senhoritas, caríssimos leitores e leitoras, meu mais inefável respeito. Deixo-lhes com votos de estima e consideração: é preciso ter esperança!

LEANDRO KARNAL

29 DE SETEMBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

O LIVRO NÃO ESCRITO 

Dois amigos no quarto de um hospital. Um deles está morrendo, e os dois sabem disso. Há uma urgência posta na conversa: o projeto de um livro que o homem que está morrendo gostaria de ter escrito (se a doença não tivesse colocado tudo em segundo plano) e que ele espera que o amigo possa ajudar a finalizar. Pesando no ar, os subentendidos da circunstância extrema. Sobre o que conversar quando tudo que um deles disser será, de alguma forma, definitivo? Planejam-se providências práticas ou ensaia-se uma despedida? Reflete-se sobre o passado ou dá-se orientações sobre o futuro? Cede-se à emoção ou tenta-se manter o equilíbrio de superfície para não aumentar ainda mais o embaraço do momento?

Naquele quarto anódino, sem dono ou personalidade própria, tudo é intenso e agudo. Todas as palavras, mesmo as mais banais, assumem um sentido mais profundo do que aquilo que está sendo dito. Um palpite pode se se tornar uma sentença, uma lembrança imprecisa, um fato. Dor e falta de ar ignoram o esforço dos dois amigos para lidar com os subentendidos da morte com a naturalidade disponível. Eles sabem que não terão tempo suficiente para transformar aquela conversa no livro que o amigo doente havia planejado, mas agem e falam como se tivessem. É impossível prever quando será o último encontro - se fosse possível prever qualquer coisa, o livro inacabado teria sido escrito 10 anos antes.

De quinta a domingo, entre visitas de despedida e exames médicos, os dois homens se veem todos os dias. Na terça, o amigo doente morre. O outro sai de lá com a matéria viva daqueles encontros congelada em um gravador. Um mês mais tarde, publica a conversa, em forma de entrevista, no jornal que pertence à família do amigo. Cai o pano.

O homem na cama do hospital é o jornalista Otavio Frias Filho, que morreu no dia 21 de agosto, de câncer. O amigo é o jornalista Fernando de Barros e Silva, que publicou a entrevista no último final de semana no jornal Folha de S. Paulo, dirigido por Frias nos últimos 35 anos.

Além de diretor de redação, Frias foi ator e dramaturgo. Talvez por isso imaginei que essas conversas finais, no hospital, deveriam se juntar ao livro nunca escrito, em um rol de obras imaginárias, como uma peça curta em um único ato. Enredo e densidade dramática não faltariam. Há na entrevista confissões divertidas (como a de que o jornalista buscou no teatro não a realização artística, mas a proximidade das atrizes), comentários sobre a história recente brasileira, revelações pessoais e uma visão em perspectiva da própria trajetória que só a proximidade da morte permite. Sobre a histórica carta-aberta dirigida ao ex-presidente Collor, meses antes do impeachment, em abril de 1991 ("Seu governo será tragado pelo turbilhão do tempo até que dele só reste uma pálida reminiscência"), citada ficcionalmente no filme O Banquete, Frias comenta: "Você acha que está se preparando pra coisa mais importante da sua vida, mas aquilo que está fazendo já é a coisa mais importante da sua vida. Você acha que isso aqui é um ensaio para uma coisa maior que ainda vai fazer, mas, não, aquele ensaio já é a coisa que você fará".

Parte da nossa história será sempre um livro não escrito. Parte do nosso espetáculo nunca sairá da etapa dos ensaios.

CLÁUDIA LAITANO


29 DE SETEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

RENÚNCIAS E REMENDAS

O SUS completa 30 anos de existência. É o maior sistema público de saúde do mundo; país nenhum com mais de 100 milhões de habitantes oferece cuidados de saúde para todos.

Mediado pela jornalista Cláudia Collucci, o jornal Folha de S.Paulo realizou um debate sobre dois dos gargalos que mais prejudicam a eficiência do SUS: as renúncias fiscais e as emendas parlamentares. As discussões mantidas no encontro foram comentadas pelos jornalistas Leonardo Neiva e Beatriz Maia. Vou resumi-las:

1) Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde, o conjunto das renúncias fiscais do governo federal previstas para 2018 é de R$ 283,4 bilhões. Esse número ultrapassa o dobro do orçamento do Ministério da Saúde no ano de 2017, que foi de R$ 125,3 bilhões.

2) No montante dessas renúncias não estão incluídas as deduções dos gastos com saúde no Imposto de Renda.

3) Os participantes levantaram um ponto raramente discutido: as isenções na produção de motos e bebidas açucaradas na Zona Franca de Manaus. Cerca de 98% das motos que circulam nas cidades brasileiras são produzidas em Manaus, com benefícios fiscais. Elas são responsáveis por um terço das mortes em acidentes de trânsito, por aposentadorias precoces e despesas com tratamento e recuperação dos acidentados, que sobrecarregam o SUS. Refrigerantes e outras bebidas açucaradas, que tanto colaboram para a epidemia de obesidade que se dissemina pelo país, são beneficiados pelo mesmo sistema de isenções. Semanas atrás, uma das maiores companhias ameaçou deixar o país, caso perdesse essas benesses. Um de seus diretores ameaçou: "Iremos para um dos países vizinhos e o Brasil terá de importar nossos produtos".

4) Leonardo Vilela, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, chamou atenção para uma das excrescências da nossa administração pública: as emendas parlamentares, através das quais deputados e senadores se intrometem no sistema de saúde, alocando verbas para a construção de centros hospitalares em seus currais eleitorais e para a compra de equipamentos inadequados para os locais a que se destinam. Neste ano, o governo gastará R$ 8,8 bilhões com essas emendas impositivas garantidas pela Constituição.

5) Os técnicos asseguram que, para ter viabilidade técnica e econômica, um hospital deve ter pelo menos de 200 a 300 leitos. No Brasil, 55% dos hospitais têm menos de 50 leitos; cerca de 80% não chegam aos cem leitos. Jocelino de Menezes, secretário-executivo do Ministério da Saúde, resumiu o pensamento dos especialistas: "Essa epidemia de emendas parlamentares é uma doença genuinamente brasileira, que precisa ser erradicada. Não podemos fazer gestão por meio de emendas e, pior ainda, de emendas impositivas".

6) Mônica Viegas, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, chamou atenção para a relevância social do SUS: "É a maior política de transferência de renda que temos no Brasil, funciona mais até do que o Bolsa Família".

DRAUZIO VARELLA


29 DE SETEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

MORTE ENCEFÁLICA E AS VIDAS QUE PRECISAM CONTINUAR

Depois de um trauma cerebral grave (pancada, tiro na cabeça, hemorragia cerebral por derrame), o cérebro pode inchar muito. E, como ele está dentro de uma caixa óssea, não tem para onde expandir, de tal modo que, se a pressão dentro do crânio aumentar muito, acaba apertando as únicas estruturas compressíveis da massa cerebral, os seus vasos. Chega-se, então, a um ponto em que não passa mais sangue para o crânio, e o cérebro, que não tolera ficar mais de quatro ou cinco minutos sem oxigênio, começa a morrer porque a porta de entrada de oxigênio está definitivamente bloqueada.

Por que esse mecanismo da morte encefálica é importante de ser entendido?

Para que se perceba que não é possível provocar morte cerebral no hospital, a menos que alguém considere razoável que um paciente na UTI possa ser vítima de espancamentos ou tiroteios. Não há subtratamentos ou supertratamentos clínicos que acelerem a morte do cérebro conservando o coração a bater. Tudo o que se possa inventar sobre isso é ignorância, fantasia, ou uma terrível combinação das duas.

Qual o significado da doação de órgãos?

Há muito tempo, a doação de órgãos vem sendo usada como um marcador de desenvolvimento social, porque mede com precisão o nível intelectual de uma região ou país. Não por acaso, nos países subdesenvolvidos, as doações são escassas. A construção de uma cultura doadora é uma tarefa de civilidade, e só a educação consegue dar naturalidade a esse gesto grandioso na essência, mas difícil na prática, porque é solicitado que seja generosa a uma família traumatizada pela dor da perda. Daí a importância da comunicação do desejo de ser doador em um momento de saúde plena. Se alguém anunciar em vida esta determinação, a família, sempre soberana na decisão, certamente fará o possível para cumprir a última vontade expressa em vida.

Ensinar nas escolas básicas o que significa morte encefálica e como se processa a doação de órgãos devia ser objeto de portarias e leis que criassem a obrigatoriedade de educar para a cidadania.

Enquanto a educação não chega, a mídia, principal modelador contemporâneo do comportamento social, deve assumir com sobriedade este papel, evitando notícias estapafúrdias sem nem ao menos verificar a credibilidade da fonte. Uma sociedade desconfiada não doa e, com isso, milhares de pacientes que necessitam de um órgão para viver vão ser penalizados com a morte sem que tenham nenhuma culpa. Não se pode esquecer que o transplante é a única modalidade de tratamento médico que necessita da sociedade para que ela mesma seja beneficiada. Além disso, todos nós somos mais candidatos a receptores do que a doadores de órgãos, e podemos a qualquer momento necessitar de um transplante para continuar vivendo. Melhor pensar nisso antes que a desgraça lhe bata à porta

Por outro lado, cabe ao Estado a disponibilização de uma coordenação estadual efetiva, que ofereça com um máximo de agilidade os instrumentos de comprovação da morte encefálica, uma equipe altamente qualificada para o difícil momento da abordagem familiar para a doação e os cuidados de terapia intensiva para que aquele doador preserve viáveis o maior número possível de órgãos.

Com tudo isto disponível, estará montado o cenário para o transplante, esta prática médica que exige um alto nível de qualificação técnica e um incomparável índice de comprometimento pessoal dos envolvidos. O trabalho exaustivo que frequentemente vara madrugadas, a remuneração precária do SUS, financiador de mais de 95% dos transplantes, a burocracia exasperante, a infraestrutura deficiente de muitos hospitais, nada disso diminui o encanto daqueles que se alimentam da impagável e indescritível alegria de aliviar sofrimento. Uma sensação tão maravilhosa que quem já provou sabe bem, e a quem não, nem adianta explicar.

J.J. CAMARGO


29 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Bolsonaro: um trunfo do PT

As três melhores coisas que aconteceram para o PT nos últimos anos foram:

1. O impeachment de Dilma.

2. A prisão de Lula.

3. O surgimento de Bolsonaro.

Três contradições. Das duas primeiras já escrevi. Só relembro que, se Dilma ainda estivesse governando, e não Temer, o PT é que seria rechaçado pela população, e não Temer.

Quanto à prisão de Lula, pense que, desde que foi recolhido à carceragem da Polícia Federal do Paraná, ele não precisa mais explicar nada do que cometeu de errado e ilícito durante e depois de seu governo, e foi muito o que ele cometeu de errado e ilícito durante e depois de seu governo.

Mas ninguém no PT, originalmente, queria o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. O partido apenas soube lidar com esses reveses, transformando-os em trunfos.

Agora, quanto a Bolsonaro, não. Bolsonaro é obra indireta do PT. É uma consequência lógica das ações do partido.

No entanto, não foi sempre assim. Nos primeiros tempos, o PT não era um partido populista. Ao contrário, os petistas criticavam acerbamente o populismo de Brizola. Diziam, com deboche, que o PDT tinha dono.

A ideia do PT era arejar a política brasileira com um partido que, pela primeira vez na nossa história, se guiaria por ideias, não por projetos de poder. Eram pessoas honestas, modernas, retas, que não compactuariam com as velhas práticas dos políticos tradicionais.

Mas, depois de perder três eleições consecutivas, o PT chegou à conclusão de que teria de fazer concessões para alcançar o poder. É quase que um teorema:

1. Você tem boas intenções, mas não consegue colocá-las em prática porque não chega ao poder.

2. Para chegar ao poder é preciso se comprometer com quem tem más intenções.

3. Ao se comprometer com quem tem más intenções, você chega ao poder.

4. Chegando ao poder, você não consegue colocar suas boas intenções em prática, porque está comprometido com quem tem más intenções.

5. Você tem o projeto de continuar no poder, mas, para isso, não poderá pôr em prática suas boas intenções, terá que continuar fazendo o que sempre fizeram os que têm más intenções.

6. Logo, você se transformou em alguém com más intenções.

Foi isso que aconteceu ao PT, um processo de aliancismo parecido com o que manteve Getúlio Vargas no mando por 15 anos. Só que, em vez de Vargas, o PT tem Lula, o populista por excelência. Lula, antes, era apenas mais uma liderança do PT. Transformou-se no Único, no Pai Iluminado. Essa é uma figura indispensável ao populismo, vide o próprio Vargas, mais Perón, Mao, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Tito, Chávez, Fidel etc.

O populismo precisa desse personagem, tipo o centroavante de referência, porque ele simboliza o bem. É pela graça dele que o povo recebe suas pequenas dádivas. Quando o homem do povo consegue algo do governo populista, não é o Estado que está cumprindo sua obrigação, é o líder que está fazendo uma concessão.

Mas, para o governo populista se distinguir, é indispensável haver a comparação com o mal. Como diria Nelson Motta e cantaria Lulu Santos, "não existiria som se não houvesse o silêncio; não haveria luz se não fosse a escuridão".

Assim, temos aqui outro teorema:

1. O líder populista defende o povo.

2. Quem defende, defende do inimigo.

3. Logo, é preciso haver um inimigo.

Quem é o inimigo do povo? Obviamente, a elite. O não povo. Lula passou toda a sua trajetória falando da elite branca, rica, preconceituosa, pérfida. Você faz alguma crítica ao PT? Você não está errado: você é canalha, faz parte da elite pérfida. Essa postura excludente fez o que faz qualquer postura excludente: excluiu. Parte da sociedade, alijada moralmente pelos petistas ou apenas irritada com tanta arrogância, atirou-se para o outro lado, para o extremo oposto, para quem se mostrava inimigo do PT: Bolsonaro.

Só que Bolsonaro é o inimigo ideal: é grosseiro, preconceituoso, sem nenhuma sofisticação intelectual. Fosse uma direita inteligente, com homens como Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen ou Luis Fernando Cirne Lima, o PT estaria em sérias dificuldades. Mas, não. Bolsonaro é grotesco, talhado a facão. É fácil ser contra ele.

Bolsonaro cevou-se do PT e o PT, agora, ceva-se de Bolsonaro. Eles estão no centro da política brasileira. Na periferia, os outros candidatos, impotentes, pálidos, perplexos, sem saber direito o que está acontecendo. E nós, é claro. Assistindo assustados. Experimentando a desagradável sensação de que ainda há muito a sofrer neste combalido Brasil do século 21.

DAVID COIMBRA

29 DE SETEMBRO DE 2018
DUAS VISÕES

A RAZÃO É UM TIPO DE DEBATE QUE VAI ALÉM DA POLÍTICA


Esta é uma eleição diferente das outras. É uma eleição pautada pela guerra cultural. Em 2014, havia visões político- econômicas em disputa. Mas não havia uma fratura cultural.

A presença de Bolsonaro muda o eixo do debate. Ele mesmo é o produto de uma mutação na democracia, que não ocorre apenas no Brasil. Temas morais e uma vaga retórica antissistema ganharam espaço na arena pública. A internet deu poder aos indivíduos e subitamente fez envelhecer as tradicionais instituições de representação da democracia liberal.

A ascensão do populismo é um sintoma disso tudo. Fenômeno feito de personagens tão diferentes como Viktor Orban, na Hungria, Marine Le Pen, na França, ou Donald Trump. Diferentes mas com um DNA em comum.

Bolsonaro é uma variante brasileira do fenômeno. Ele não dispõe de um partido; não formula uma grande narrativa sobre o país. Seu nacionalismo parece saído de velhos livros de moral e cívica. Sua visão de mundo parece se resumir a quatro ou cinco frases de efeito sobre temas culturalmente sensíveis.

Mas a retórica antissistema e a pauta moral estão lá. Ele deu expressão política a um conservadorismo de costumes latente na sociedade brasileira. Um enorme contingente de pessoas que nunca teve, desde a redemocratização, um porta-voz relevante. Agora tem.

Vêm daí a guerra cultural e a polarização. Sua razão não é Bolsonaro. Ele é o sintoma, e está longe de ser o único. A razão é a explosão de um tipo de debate que vai muito além dos limites possíveis da política. Seus temas vão do aborto, armas, sexualização da infância, "ideologia de gênero", à retórica difusa contra o politicamente correto.

Temas que opõem um tipo novo de conservadorismo popular a um progressismo ancorado na defesa de direitos, mas que não raro se torna ele mesmo moralista e intolerante.

E um tipo de debate feito à moda redes sociais, universo tribalizado, de baixa empatia, cujo incentivo é para a retórica de combate, não para escutar o que o outro lado tem a dizer.

Soluções para isto? Talvez um tênue caminho.

Os democratas precisam aceitar que há um novo ator no jogo, que representa uma parcela importante da sociedade. Suas posições surgem extremas e algo grotescas, mas o metabolismo próprio da democracia irá tratar de aparar as arestas. Não foi isto que aconteceu com a esquerda? Steven Levitsky observou que uma das normas não escritas da democracia é "a aceitação da legitimidade do outro, por mais que possamos desgostar dele". Difícil isso. Mesmo para Levitsky, que logo após nos convoca à guerra contra o grande inimigo.

É como o sujeito que abomina a radicalização, acha que temos que sair dessa "polarização inútil", mas não abre mão de chamar o oponente de fascista, nazista, coisa ruim. É sedutor fazer isto. Dá até pra bancar o herói da turma, na internet. Mas no fim todos perdem, porque é exatamente esta a lógica da guerra política.

Vai aí o novo paradoxo da democracia brasileira: nossos melhores democratas se tornaram, sem perceber, caçadores de bruxas. Teremos que aprender muita coisa de novo, trinta anos depois.

FERNANDO SCHÜLER Doutor em Filosofia e professor do Insper fschuler@uol.com.br



29 DE SETEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

COMPROMISSOS DEMOCRÁTICOS


Quem assegurar mais votos nas eleições presidenciais precisa estar preparado para unir o país, convocando todos os brasileiros a enfrentarem de vez a crise na sua origem

Independentemente do resultado das eleições, há uma certeza na reta final da campanha: temos uma Constituição e a vontade dos eleitores tem que ser respeitada. Esses dois pressupostos devem ser o norte da vontade e das expectativas da população e das instituições brasileiras. A obediência aos limites da lei e o acolhimento da escolha democrática que emergirá das urnas precisam ocupar o lugar hoje invadido pela disputa, pelo radicalismo e pelo ódio. Passada a campanha eleitoral, será hora de se acatar o resultado anunciado pela Justiça e unir esforços para a construção de um futuro melhor para a nação.

Diante das eleições, como sintetizou o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), é preciso renovar os compromissos democráticos. E há duas regras a serem obedecidas. Uma delas é: quem ganha leva. A outra: quem leva respeita as regras do jogo. E elas são claras. 

O próprio presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, foi enfático ao afirmar que "qualquer que seja o resultado, será respeitado", inclusive pelos militares. A garantia foi antecedida por outra, do próprio ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, para quem, depois de apurado o resultado, o papel das Forças Armadas será o de garantir o funcionamento das instituições dentro da normalidade.

Em princípio, todas essas manifestações seriam dispensáveis num país que dispõe de uma Constituição democrática e no qual as instituições funcionam plenamente, cada uma delas zelando para cumprir rigorosamente o seu papel. Em três décadas de democracia, o país passou por constantes sobressaltos, nenhum deles envolvendo militares. 

Ainda assim, episódios como as manifestações de rua em 2013, a disputa presidencial acirrada um ano depois, a crise que culminou no impeachment em 2016, a prisão de um ex-presidente da República e as denúncias envolvendo o governo que está chegando ao fim contribuíram para levar a campanha atual a uma polarização sem precedentes. É inevitável que o resultado, seja qual for, acabe dividindo os brasileiros.

Quem assegurar mais votos nas eleições presidenciais precisa estar preparado para unir o país, convocando todos os brasileiros a enfrentarem de vez a crise na sua origem. Revigorar a democracia e a atividade econômica são necessidades emergenciais, para as quais o voto de cada eleitor terá papel relevante.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018



Ventos de outubro 

Depois deste tenebroso inverno a desabrochante primavera, as flores dos ipês e os ventos de outubro. Rinites, sinusites, otites, artrites e outras ites ficam para trás. Para trás os ventos, as chuvas, os frios, as doenças, os hospitais e os velórios de mais um inverno gaudério. Daqui a pouco a eterna Feira do Livro e os duzentos tons caramelos e chocolates nas peles dos gaúchos. 

Mais três contas de luz, de caseiro e de condomínio e o veraneio nas nossas paradisíacas praias, com a guia gorda do IPTU dos municípios litorâneos e o convívio com os amigos, que é o ouro da estação. Falo sério, ocupo este importante espaço público e cumpro o dever social de jornalista para tratar das tumultuadas, altamente divididas e estressantes eleições. Quinze dias de campanha ainda. Melhor esperar para decidir o voto, que antigamente era secreto e que ainda pode ser. Antigamente se dizia que de urna, barriga de grávida e cabeça de juiz não se sabia o que esperar. 

De barriga de grávida a gente prevê o futuro. Das urnas e das cabeças dos magistrados é difícil. Dizem por aí que pesquisas eleitorais e pareceres jurídicos são a favor de quem paga a conta. Será? A urna e boca da urna são as pesquisas mais confiáveis, nesse País onde até os passados remotos e recentes são imprevisíveis como as previsões para o futuro dos videntes e dos profissionais que dizem como e onde viveremos nos tempos dos Jetsons, que ainda não chegaram. 

Antes os políticos e partidos davam facadas (ainda dão, até via o terrível financiamento público) nos eleitores e nos cofres. Hoje tem eleitor dando facada em candidato. Por enquanto o vencedor dos debates sem grandes números ou propostas é o sono reparador e a vencedora das eleições, por ora, é a absoluta ausência de tédio. 

Nem precisa pesquisa comprada para saber disso. Democracia nunca foi lá muito simples, desde as pracinhas gregas, mas será que os brasileiros nunca vão entender que "se a gente não se Raoni, a gente se Sting"? Entre a direita, a esquerda e o centro, a maioria prefere dar uma boiada para não sair da briga do que dar um boi para não começá-la. 

Não está fácil para ninguém. Se a pessoa fica quieta, é murão, habitante da muralha da China, onde iam antigos pássaros tropicais de bicos enormes. Se a criatura eleitora apoia A, B, C ou Zebra e declara, encrenca com amigos, inimigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. Se não vota, anula ou vota em branco, é antidemocrático, não quer jogar o jogo, onde, pelo visto, vão ganhar os mesmos jogadores conhecidos da torcida. Você decide. Ou não. Será que já decidiram por você? Fique esperto. 

A esperança é a última que morre. Ela é um urubu pintado de verde, como disse o Mario Quintana, que em versos falou nada entender da questão social, que apenas fazia parte dela. Poetas sabem mais, são a antena da raça. O povo, sábio, diz que em casa sem pão, todos brigam e ninguém tem razão. Quando a economia está mal, brigas e divisões aumentam. Tomara que nossa economia se descole de vez da política e que micro, pequeno e médio empresários sejam incentivados. Eles fornecem uns 90% dos empregos. 

A propósito... 

Pelo visto, mais uma vez, nas eleições, não conseguiremos nos unir ou formar uma maioria razoável e, mais uma vez, as urnas vão revelar divisões e problemas futuros. Pelo menos a gente poderia baixar um pouco a bola nas redes (anti)sociais, nas casas e nos bares e tentar respeitar os que pensam diferente. Ao menos a gente pode sonhar em ver, a partir de janeiro, uma oposição menos deletéria, um parlamento mais patriota, uma justiça republicana e uma imprensa mais imparcial. 

Quem perder, quem ganhar, deve pensar que estamos juntos nessa mesma canoa furada e que não adianta ficar dando tiros nos próprios pés ou nos pés dos outros. A canoa já tem furos o bastante. 

Deus, Nossa Senhora Aparecida e todos os santos nos ajudem, que uns andam dizendo que estávamos melhor quando estávamos péssimos. 
Jaime Cimenti 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/09/649880-da-para-salvar-a-democracia.html


Dá para salvar a democracia? 

Democracias tradicionais estão em colapso? Essa é a grande questão que dois conceituados professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, respondem em sua recente obra Como as democracias morrem (Editora Zahar, 272 páginas, tradução de Renato Aguiar e prefácio de Jairo Nicolau), publicada nos Estados Unidos da América em janeiro deste ano. A obra mereceu grandes elogios da crítica, é sucesso de público e figura como best-seller do The New York Times. 

A pergunta gigante surge no momento em que se discute o modo como a candidatura e a eleição de Donald Trump se tornaram possíveis. Os autores confrontam a situação de Trump com rupturas democráticas emblemáticas da manipulação do sistema eleitoral no Sul dos Estados Unidos no século XIX aos casos contemporâneos de Hungria, Turquia e Venezuela, passando pela Europa dos anos 1930 e as formas distintas de ditaduras de Pinochet, no Chile e Fujimori, no Peru. 

A ascensão de Hitler e Mussolini, a onda populista de extrema-direita na Europa e as ditaduras militares dos anos 1970 na América Latina são analisadas, num painel dos rompimentos da democracia destes últimos 100 anos. Steven e Daniel passaram os últimos vinte anos estudando o colapso dos regimes democráticos na Europa e América Latina e em seu livro oferecem uma análise alarmante do processo de subversão da democracia que ocorre hoje nos Estados Unidos, a partir da eleição de Trump. 

Os autores mostram que as democracias atualmente não terminam com uma ruptura violenta, nos moldes de uma revolução ou golpe militar e, sim, com o lento e constante enfraquecimento de instituições críticas - como o judiciário e a imprensa - e a erosão gradual de normas políticas de longa data. A obra foi considerada pelo The Philadelphia Inquirer como o grande livro político de 2018 e o The New York Times a chamou de guia lúcido e essencial. 

Nosso O Estado de São Paulo disse que o livro é essencial para entender a política atual, e alerta os brasileiros sobre os perigos para a nossa democracia. É verdade, as histórias presentes no livro nos são, infelizmente, bastante familiares e é preciso aprender com os erros e acertos dos outros, para não ficar repetindo experiências desastrosas. Aí dá para pensar em salvar a democracia, ou, ao menos recriá-la e adaptá-la para nossos dias. 

Lançamentos 

A arte de tratar - Por uma psicanálise estética (Artmed, 184 páginas), do consagrado e premiado escritor, médico comunitário, psicanalista e professor Celso Gutfreind, traz belos e profundos textos, fruto de incontáveis pesquisas e leituras, sobre arte pictórica, escultórica e narrativa, envolvendo Freud esteta e a ciência de sua psicanálise. 

A obra situa-se, com muita sensibilidade e inteligência, justamente entre a arte e a ciência, lembrando que a psicanálise é uma artística ciência. Escolas Italianas no Rio Grande do Sul - Pesquisas e documentos (Educs,160 páginas), dos professores universitários e pesquisadores Gelson Leonardo Rech e Terciane Ângela Luchese, da Universidade de Caxias do Sul, na serra gaúcha, narra a história das escolas, apresenta uma reflexão metodológica sobre o tema e transcreve documentos primários. A obra contribui com os estudos em História da Educação e traz tema injustamente pouco tratado pelos estudiosos da imigração italiana. 

O amor é uma festa (Buqui, 56 páginas) da escritora feminista e humanista Ms. Marinez Full, com capa e ilustrações de Chana de Moura e apresentação do jornalista e escritor Léo Gerchmann, traz textos poéticos e comoventes escritos por crianças sobre casamentos e famílias homoafetivos, amor, irmãos e convivência. A obra traz uma visão extremamente humana e rica sobre as novas e diferentes relações que estão aí. Segundo o IBGE, mais de 50% das famílias atuais não são nucleares. - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/09/649880-da-para-salvar-a-democracia.html

28 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Já sei quem vai perder na eleição


Em 1979, quando se via pelos muros de Porto Alegre uma espécie de pichação comemorativa ou talvez um grito de alívio, "Deu pra ti, anos 70", quando o Inter foi campeão invicto e o Grêmio montou um time com Manga, Paulo César Caju, Tarciso, Baltazar e Éder, quando Elis cantava O Bêbado e a Equilibrista, em 1979 foi lançado o filme Alien - O Oitavo Passageiro.

Oito anos depois, em 1987, quando Rudolf Hess, um dos mais esquisitos nazistas entre tantos nazistas esquisitos, puxou o fio de uma lâmpada e enforcou-se na cadeia em Spandau, quando o menino Lionel Messi nasceu em Rosário, quando o Grêmio contratou pela primeira vez um jovem técnico chamado Luiz Felipe Scolari, quando o Inter teve de encarar um Flamengo de Renato, Bebeto, Zico e Leandro na final do Brasileirão, em 1987 foi lançado o filme Predador.

E em 2004, quando uns estudantes de Harvard criaram o Facebook, em primeiro lugar com a intenção de facilitar sua comunicação com as garotas da faculdade, em 2004 foi lançado o filme Alien versus Predador.

Os dois primeiros filmes, Alien e Predador, são ótimos. Se você não assistiu, assista. É uma boa diversão. Já a reunião de ambos, Alien versus Predador, não vi e não recomendo. Muito oportunismo, só pode ser ruim. Mas o filme apresentava um cartaz que alertava o seguinte:

"Não importa quem vença? Nós perderemos".

É como me sinto em relação a esse provável segundo turno das eleições presidenciais, disputado entre Bolsonaro e o PT.

Quando é que o Brasil vai se livrar do populismo, meu Deus? Talvez nunca. Assisti ao último debate entre os presidenciáveis. Deu um desânimo.

Com exceção de Marina Silva, a única que parece falar a verdade no meio daqueles marmanjões, todos eles são candidatos a reizinho. Não passam de projetos mal-enjambrados de populistas. "Eu vou fazer isso, eu vou fazer aquilo." COMO o senhor vai fazer, candidato?

O populismo transformou a política brasileira em um pântano onde só importa quem vence a eleição. É um troféu, uma conquista a ser comemorada e esfregada na cara do adversário, não um processo maduro de tentativa de solução dos nossos problemas.

Então, o vitorioso assume e, a partir daí, o que ele faz é tentar continuar. Ele busca nova vitória. Só. Para isso, nada de entrar em polêmicas, como protagonizar reformas impopulares. Nada de projetos custosos e de longo prazo, como os que envolvem a educação básica. Não. O ideal são coisas simples e que rendam popularidade. Bolsas. Programas. Distribuição de dinheiro. Exemplo: em vez de se ocupar da escola pública, que dá muito trabalho, basta facilitar o ingresso nas faculdades. Ninguém se importa se o universitário é semianalfabeto, o importante é que ele, aparentemente, venceu na vida graças a um governo bondoso.

Assim foi o governo do PT e também o da sua presumida nêmesis, o PSDB, e agora o do ubíquo MDB. Quando houve alguma melhora, foi pontual e efêmera. Nada estrutural, nada sistêmico. De estrutural e sistêmico, apenas o projeto de continuidade.

Agora, você olha para eles na eleição e vê que nada mudará. De um jeito ou de outro, estaremos submersos no atraso do populismo. Alien ou Predador? Quem vencerá? Não sei. Sei que nós perderemos.

DAVID COIMBRA


28 DE SETEMBRO DE 2018
TELEVISÃO

Gaúcho vence o "The Voice"

LÉO PAIN é o primeiro do Estado a se tornar campeão da versão adulta do reality musical
U ma estrela musical do Rio Grande do Sul conquistou o país. Ontem, o cantor Léo Pain registrou 50,01% e venceu o The Voice Brasil, ao superar a pernambucana Erica Natuza, a mineira Isa Guerra e o brasiliense Kevin Ndjana. Na final, o alegretense cantou a música Adoro Amar Você, de Daniel, mantendo seu repertório dedicado ao sertanejo durante todo o reality musical. Na segunda apresentação, surpreendeu com Outra Vez, de Roberto Carlos.

Com a vitória, Léo Pain leva para casa um prêmio de R$ 500 mil, um carro zero quilômetro e um contrato com a Universal Music.

O músico, integrante do time de Michel Teló, despontou como favorito durante o reality desde o início. Nas etapas anteriores, ele registrou mais de 50% de aprovação do público. Na semifinal, teve a maior aceitação entre todos os candidatos, com 85,71 pontos.

O último programa da sétima temporada começou com Tiago Leifert, explicando que os quatro candidatos se apresentariam normalmente e a enquete de votação seria aberta na segunda rodada de shows. A primeira a subir ao palco foi Erica Natuza, do time de Carlinhos Brown, com Anunciação, de Alceu Valença. Depois, veio a voz do time de Lulu Santos, a mineira Isa Guerra, com My Life Is Going On, de Cecilia Krull, que fez sucesso com a série La Casa de Papel.

O finalista Kevin Ndjana, na sequência, trouxe I Got You (I Feel Good), clássico eternizado por James Brown, com direito a coreografia no palco. Antes do quarto show da noite, Teló disse que Léo Pain tem "brilho no olhar e é afinadíssimo".

Carlinhos Brown comparou o gaúcho ao norte-americano Elvis Presley, dizendo que os dois possuem o mesmo carisma. Assim, Léo Pain entrou no palco e cantou Adoro Amar Você, do sertanejo Daniel.

Após o término da performance do alegretense, a votação foi oficialmente aberta no Gshow. Para dar uma pausa no ritmo, Ivete Sangalo e a banda Melim cantaram a parceria Um Sinal.

O programa, então, abriu a segunda rodada de apresentações com Erica Natuza, que performou How Deep is Your Love, sucesso do grupo Bee Gees.

Antes da segunda apresentação de Isa Guerra, Teló foi ao palco com um pout-pourri de sucessos dos quatro técnicos: Festa, de Ivete Sangalo; Namorada, de Carlinhos Brown; Tempos Modernos, de Lulu Santos; e A Brasileira, do próprio Teló.

A seguir, foi a vez de Isa Guerra, que decidiu cantar uma música autoral, O Céu Já Escolheu. Na sequência, Lulu Santos se uniu aos produtores musicais Ruxell e Serginho Santos para apresentar a música Hoje Em Dia, composição que fez em homenagem ao namorado, em julho.

Na penúltima apresentação da noite, Kevin Ndjana cantou Ainda Bem, que estourou nas rádios na voz de Thiaguinho. Em mais um show especial, Carlinhos Brown recebeu o rapper Rael para cantar Toda Paz.

Para fechar as performances dos candidatos, Léo Pain surpreendeu e cantou Outra Vez, eternizada na voz de Roberto Carlos. Na volta do intervalo, Tiago Leifert anunciou o fim das votações.

Em apresentação especial, o The Voice teve as vozes que venceram edições anteriores do programa. Os 10 artistas dividiram os vocais de This Is Me, que integrou o setlist do musical O Rei do Show, longa-metragem estrelado por Hugh Jackman. Para fechar, o campeão reapresentou Dormi na Praça, de Bruno e Marrone, sua primeira música nas audições do reality.


28 DE SETEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

CREDIBILIDADE DAS ELEIÇÕES

Uma evolução do sistema eleitoral seria a implantação do fim da obrigatoriedade do voto. Milhões de brasileiros que se abstêm de votar já colocaram a alternativa em prática

Ao se manifestar pelo rigor no cumprimento de prazos de revisão periódica, mantendo 3,4 milhões de títulos inaptos para o voto no pleito de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a credibilidade do sistema eleitoral. É de se lamentar que um número tão elevado de pessoas não tenha demonstrado a atenção necessária ou disposição para realizar o cadastramento biométrico no tempo previsto. Só no Rio Grande do Sul, mais de 167 mil eleitores deixaram de atender ao chamado, o equivalente a 2% do total. O país, porém, não pode admitir que uma eleição tão decisiva para o seu futuro seja realizada na base do uso de títulos em duplicidade ou em nome de pessoas já falecidas.

Mesmo excessivo, e equivalente à diferença de votos entre quem ficou em primeiro e segundo lugares ao final do segundo turno das últimas eleições presidenciais, isso não significa que houve falta de aviso. Se muitos eleitores, no Estado e em outros cantos mais distantes do país, não chegaram a tomar uma atitude, muitos outros, nas mesmas regiões, preocuparam-se em manter seu documento com registro atualizado para não ficar sem o direito ao voto. O recadastramento e o controle biométrico são etapas importantes para assegurar credibilidade ao sistema.

Durante o julgamento, o ministro Gilmar Mendes chegou a citar um eleitor de Goiás que detinha dezenas de títulos. É uma evidência de que, se não há denúncias reais e concretas sobre a segurança da urna eletrônica, o mesmo não se pode dizer sobre o documento usado para o exercício do ato de votar. O Judiciário não teria como ignorar essa realidade, que implica o risco de ampliar a insegurança em relação ao pleito. Da mesma forma, não haveria tempo, nem estrutura suficiente para refazer a listagem de eleitores antes do dia 7 de outubro.

Uma evolução do sistema eleitoral seria a implantação do fim da obrigatoriedade do voto. Milhões de brasileiros que se abstêm de votar já colocaram a alternativa em prática, aparentemente, sem a alternativa provocar grandes reveses no seu cotidiano. O fim do voto obrigatório poderia, a exemplo do que ocorre em outras nações democráticas, elevar o nível do ambiente político. Isso porque, na prática, levaria candidatos e partidos a se esforçarem mais para motivar os brasileiros a saírem de casa e irem às urnas.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018


27 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Será que o povo quer mesmo liberdade?


Quando estive na Rússia, há pouco, durante a Copa, detive-me aos pés da grande estátua de Espártaco plantada no pátio do estádio que leva o nome dele, em Moscou. Fiquei algum tempo admirando o monumento. Não que a escultura seja uma obra-prima; não é. Mas ali estava, imortalizada em pedra e bronze, a imagem de um homem que viveu há 20 séculos e que nem russo era - Espártaco nasceu na Trácia, que ficava mais ou menos onde hoje se localiza a Turquia. Foi ele quem liderou a maior revolta de escravos que Roma enfrentou em mil anos.

Há um ótimo livro escrito por Howard Fast sobre Espártaco. Baseado nesse romance, Stanley Kubrick dirigiu um clássico do cinema, Spartacus, com Kirk Douglas como protagonista. "Sir" Laurence Olivier interpreta a nêmesis de Espártaco, o general romano Crasso. Tony Curtis, bem jovem, interpreta um escravo de Crasso. Há uma cena entre os dois que se tornou histórica. Crasso-Olivier toma banho e o escravo Curtis lhe esfrega as costas. Aí Crasso começa com uma conversinha sobre se o escravo gosta de comer ostras e caramujos, numa nem tão disfarçada alusão aos órgãos genitais masculinos e femininos.

- Existe algum problema moral em preferir ostras ou caramujos? - pergunta Crasso. E Curtis:

- Não, mestre. - É uma questão de gosto, não é?

- É, mestre. - Eu gosto de ostras e caramujos?

Tenso para o lado do escravo. 

Mas o que interessa aqui é que Espártaco foi um herói da liberdade. Os soviéticos, ao incensá-lo tantos séculos depois de sua morte, decerto o consideravam um herói "da classe trabalhadora", já que ele comandou uma rebelião de escravos. Nada disso: Espártaco queria a liberdade. Tanto que ele nem era um escravo "trabalhador", desses que cumpriam tarefas nas vilas dos patrícios, nas minas de sal ou nas mansões de Roma: ele era um gladiador. Ou seja: era obrigado a lutar até morrer. Ou até matar.

Por isso, considerei torta aquela homenagem dos russos ao trácio, porque, afinal, mesmo os que ainda hoje se dizem comunistas haverão de concordar que não havia liberdade na União Soviética.

Porém, foi exatamente ao conversar com russos durante a Copa que me questionei: será que os homens do povo acham mesmo importante a liberdade?

Não se pode dizer que o povo russo viva numa democracia. Se é verdade que já foi muito pior com os comunistas e com os czares, é verdade, também, que Putin, na prática, é um ditador. Mas falei com os russos, vários deles, e a imensa maioria elogiava Putin.

- Tem de ser assim - repetiam. - É preciso ter pulso firme.

Foi mais ou menos o que ouvi quando estive na China, durante a Olimpíada de 2008. Conversava com chineses jovens, quase todos universitários. Perguntava sobre a ditadura e eles, em geral, respondiam:

- Um país grande como a China tem de ser dirigido por um regime forte.

É que a liberdade é cultural. Russos e chineses nunca experimentaram a verdadeira democracia. Nunca provaram da liberdade. Natural que não saibam como ela é.

Esse também é o mal que nos aflige. Tivemos reis, tivemos ditadores, tivemos apenas dois nacos de democracia: três décadas no começo do século 20, três décadas a partir de 1988. Não estamos sabendo lidar com esse nosso anseio de liberdade - às vezes, queremos demais; às vezes, achamos que não deveria haver nenhuma. Estamos atrapalhados. Mas agora, que já provamos da democracia, não há mais como recuar. Haveremos de corrigir os defeitos do sistema, jamais acabar com ele.

DAVID COIMBRA