RUY
CASTRO
Vozes ao ouvido
RIO
DE JANEIRO - Céu e mar estão competindo pelo azul nesta primavera carioca -um
azul de tinteiro, de caneta Parker, de Technicolor dos anos 50. Todas as manhãs,
o calçadão Ipanema-Leblon transborda de gente contente por apenas estar ali,
exercendo o seu direito de viver.
É gente
de várias extrações, idades, cores, línguas e de todos os estilos de caminhar
ou correr. A exceção é a minoria que, indiferente ao azul, caminha atracada ao
celular, o cenho franzido, discutindo coisas inadiáveis.
Minoria
na orla, mas maioria ao redor. No próprio calçadão, já vi um "homeless"
em andrajos, sentado na escadaria do Leblon, falando ao celular. Sentei-me ao
seu lado como quem não quer nada, tentando ouvir retalhos da conversa. O fulano
falava numa língua que eu não entendia, talvez português. Tudo bem, o
importante era o mendigo falando ao celular -o meio era a mensagem.
Há pouco,
num shopping, um menino de quatro ou cinco anos levava ao ouvido um ursinho de
pelúcia. Não sei se o ursinho tinha um celular embutido. Podia ser como o
menino enxergava os adultos -todos com um objeto à orelha- e achasse que aquela
era a maneira de usar o mundo.
Não
seria uma visão absurda. Descendo no Santos-Dumont na semana passada, eu era o único
passageiro na "boarding bridge" ("finger", em português) sem
o telefone ao ouvido. Em vez disso, trazia na mão um objeto outrora tão popular
quanto o celular: um livro. Por acaso, uma edição de bolso do clássico "Memórias
de um Sargento de Milícias".
Instintivamente,
repeti o gesto de todo mundo e levei o livro à orelha. E, então, deu-se o
milagre. Escutei a voz de Leonardo, do Vidigal, da saloia Maria Regalada e dos
outros anti-heróis de Manuel Antonio de Almeida. Vozes vindas de um tempo
remoto -o tempo do rei-, mas que chegavam a mim com incrível nitidez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário