sexta-feira, 30 de novembro de 2012



ELIANE CANTANHÊDE

Gato e sapato

BRASÍLIA - Há tempos os governos fazem do Congresso gato e sapato, mas, agora, há uma diferença. Quando se lê que os "líderes governistas" maquinam isso ou aquilo, a referência não é, necessariamente, aos líderes do governo Dilma, e sim aos amigos do ex-presidente Lula.

O fato é que esses líderes faziam e continuam fazendo tudo o que seu mestre Lula mandar. Daí o enorme poder de Rosemary Noronha, a Rose, que manteve imenso poder por causa de Lula, não por delegação de Dilma.

Com a mesma dedicação com que deram um jeito de empurrar Paulo Vieira goela abaixo da ANA (a agência de águas), mesmo depois de rejeitado duas vezes, esses líderes atuam agora para impedir que o tal Paulo Vieira dê explicações ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira.

Alguém -adivinhe quem?- não vê nenhuma graça em que Vieira possa falar sobre os poderes extraterrenos de Rose, os tentáculos dele próprio em águas turvas federais e o aparelhamento das agências reguladoras (nem elas escapam). Além da ANA, sabe-se até aqui que o esquema infiltrou-se na Anac (aviação civil) e na Antaq (transportes aquaviários). Pode ter mais...

É também com a mesma imensa dedicação, aliás, que os líderes e os jovens parlamentares governistas mergulharam fundo na CPI do Cachoeira, não para investigar e desvendar, mas para cumprir as ordens do seu mestre e fustigar opositores e adversários, chegando ao cúmulo de perseguirem até o procurador-geral da República, Roberto Gurgel.

Mas, se os governistas se adequam ao papel de gatos, é mais incompreensível como os oposicionistas se conformam em serem sapatos.

Afora o onipresente líder tucano no Senado, Álvaro Dias, quem é que se opõe às nomeações impostas por Rose, às manobras para impedir o depoimento de Paulo Vieira, à lambança da CPI? Dizem que há até presidenciáveis no Senado. Se há, não estão visíveis a olho nu. Ou não sabem fazer oposição, ou têm medo.


TRAJANO PONTES - COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

SABATINA FOLHA LYA LUFT

'Quero escrever sobre a geografia da alma e da família

AUTORA GAÚCHA, QUE JÁ VENDEU 1,2 MILHÃO DE LIVROS, FALOU SOBRE NOVO ROMANCE, "O TIGRE NA SOMBRA", E MELANCOLIA DE SUA ESCRITA

O nome de batismo é Lya, mas, quando descobriu num livro a palavra "açucena", que considerou a "mais linda", a menina Lya Luft pediu à mãe para mudar de nome.

"As gotas de orvalho brilhavam nas pétalas da açucena", dizia a obra que caiu na mão da menina, para quem a "palavra sempre foi uma espécie de tesouro interior".

Na noite da última quarta, a escritora, hoje com 74 anos, participou de sabatina promovida pela Folha em São Paulo. Ela foi entrevistada por Heloísa Helvécia, editora de "Equilíbrio", Jairo Marques, repórter de "Cotidiano", Morris Kachani, repórter especial, e pelo público.

A autora, que já vendeu mais de 1,2 milhão de livros, lança agora o romance "O Tigre na Sombra" (Record).

A personagem central tem uma deficiência na perna. Lya lembrou-se de que também nasceu com um problema na coluna que, hoje, faz com que use uma bengala.

"Eu não sei se pensava em mim quando inventei a menina da perna curta. Talvez."

Ainda que não negue traços autobiográficos na obra, a autora extravasa a coincidência do problema físico para a humanidade em geral.

"No fundo, todos nós temos uma perna curta. Pode não ser fisicamente, mas no coração, na mente, na alma. Todos temos um buraco na alma a preencher."

E para preencher esse vazio, a autora aponta que desempenha papel fundamental a família, tema constante de seus livros.

"Escrevo sobre como a família não deveria ser. Sobre a anti-família, quase. O berço de nossas neuroses. Aliás, família é isso. Ou berço de alegria e força, depende."

Apesar dos problemas que identifica, ela mantém o otimismo. "Há muitas famílias legais. O ser humano é trapalhão, mas não é burro. Vamos encontrar um equilíbrio."

ROMANCE ADULTO

Lya falou da realização tardia do sonho de escrever um romance. "Eu era tímida intelectualmente. Tive um acidente de carro e fiquei, durante um ano, com uma certa gagueira e com lapsos de memória."

Quando melhorou, ela decidiu fazer o que sempre quis: um romance.

"Acabei escrevendo 'As Parceiras', aos 40, 41 anos. Achei meu caminho de alguma forma."

Sobre o hiato de 13 anos entre o romance anterior e o atual, ela diz que escreve o livro que pede para ser escrito. "O vento sopra quando quer e não estava soprando naquele momento", compara.

Lya diz ter momentos felizes e tristes, como todas as pessoas. "Digo sempre que tenho um olho feliz que vive e um olho triste que escreve, meu lado mais melancólico".

A autora cita os contos de fada da infância como sua influência mais aguda. "[Deles] vem algo que sempre há nos meus livros: o belo e o cruel, o belo e o sinistro. Mesmo as famílias mais destroçadas dos meus livros têm um fluxo poético", explica.

Ela diz apreciar a identificação dos leitores com seus livros, mas confessa preferir ficar em casa a ter muito contato com eles. "Sou um pouco fóbica. O que as pessoas querem eu não posso dar, que é essa pessoa pela qual elas viajam cem, 200 quilômetros apenas para ver."

Diz gostar de viver em Porto Alegre, mas que não escreve literatura gaúcha. "Quero escrever sobre a geografia da alma e da casa [da família]."

Jaime Cimenti

A boa notícia: vestibular para jornalismo

Jornalistas e jornais não se ligam muito em boas notícias. Preferem coisas mais fortes, catástrofes ou histórias esquisitas  tipo o poste fazendo xixi no cachorro ou o mendigo dando dinheiro para os passantes. Nos últimos anos, ou décadas, o vestibular da Ufrgs tem uma notícia boa: o curso de Jornalismo é dos mais concorridos.

 Este ano, só Medicina e Psicologia (diurno e noturno) têm mais candidatos por vaga que Jornalismo. São 18,32 candidatos por vaga. Os pais dos aspirantes ao Jornalismo talvez fiquem preocupados, mas não deixa de ser boa notícia tantos jovens estarem interessados numa profissão que tem problemas sérios de mercado de trabalho, salários modestos, questões ligadas à liberdade de imprensa e tal.

O fascínio pela mídia e pelo trabalho jornalístico é antigo, aqui e no resto do mundo. Certo que, especialmente este ano, com o mensalão e outros acontecimentos, a mídia cresceu quantitativa e qualitativamente, inspirando vocações,  mas o fato é que encanta ver a gurizada indo atrás de sonhos, ideais e de uma função social importante como o Jornalismo. A meninada sabe das dificuldades mas não se deixa abalar.

Vai em frente. Não se entrega. Nos meios eletrônicos, impressos, onde for, os jovens querem dar sua contribuição, colocar sua impressão digital na história, fazer parte da caminhada da humanidade na busca de vida e mundo melhores, democracia, liberdade, ética e tantas outras coisas.

Claro, há quem pense em outras facetas da profissão e derive para caminhos tortuosos e jabás da vida. Mas acredito que a maioria dos vestibulandos pensa em empunhar as boas bandeiras do ofício, e isso dá esperança para todos nós. Sem jornalistas e mídias, o mundo não teria se desenvolvido tanto, tão rapidamente e tão livremente.

Sem jornalistas o mundo não teria tanta graça. Há quem diga “the price of sucess, is the press” ou quem tenha medo ou raiva de jornais e jornalistas. Normal. Há quem se irrite muito com determinadas notícias, com a liberdade de imprensa e resolva comprar um jornal só para si, para exercer poder. Há quem pense que jornalistas só devem divulgar boas notícias e prestigiar os que estão podendo.

Temos tudo, no mundo, inclusive países que ainda censuram a imprensa. Melhor é pensar nestes 916 jovens de cara limpa que estão atrás das 50 vagas de Jornalismo na Ufrgs e desejar-lhes sorte, alegria, garra, competência e força para enfrentar o futuro, que não vai ser mole.

Lembrar-lhes que tudo vale a pena quando a alma não é pequena, como disse o Fernando Pessoa.
Jaime Cimenti

Jaime Cimenti

Amores cruzados, incertezas e interesses silenciados

O romance A melhor história está por vir, da professora e escritora espanhola María Dueñas, autora do best-seller O tempo entre costuras, que já vendeu mais de um milhão de exemplares pelo mundo, mostra novamente suas qualidades de hábil narradora e um texto denso, de arquitetura ficcional requintada.

María Dueñas é doutora em Filologia Inglesa e professora titular da Universidade de Múrcia, na Espanha. Ela deu aulas em universidades norte-americanas, é autora de trabalhos acadêmicos e participou de diversos projetos educacionais, culturais e editoriais.

A narrativa de A melhor história está por vir se passa, por sinal, em ambientes acadêmicos. Incapaz de se recompor do final trágico de seu casamento, Blanca Perea, a protagonista, aceita o trabalho de organizar os arquivos do professor Andrés Fontana na Universidade de Santa Cecília, na Califórnia.

O campus que a acolhe se mostra bem mais atraente do que o previsto, e a quantidade imensa de trabalho a faz começar a seguir com a vida enquanto tenta tirar o falecido professor Fontana do esquecimento. Para tal tarefa, vai contar com a ajuda do charmoso professor Daniel Carter, especializado em literatura espanhola, mas, ao mesmo tempo, vai lidar com o rígido diretor Luis Zárate.  Entre o passado de Fontana e o presente de Carter, Blanca começa a descobrir que Santa Cecília esconde muitos segredos e que sua missão será revelá-los, doa a quem doer.

Amores cruzados, incertezas e interesses silenciados virão à tona. Entre a Espanha e os Estados Unidos, a escritora liga os pontos de uma trama cinematográfica de reencontro e superação, presenteando seus leitores mais uma vez.

O casamento de vinte anos, que parecia feliz de Blanca, terminara bruscamente quando seu marido a trocara por uma mulher mais jovem e, ainda por cima, logo ela foi avisada de que, além da nova união, o casal também esperava um filho.

Com o coração em frangalhos, ela resolvera aceitar a proposta de trabalho da Califórnia, uma oportunidade, também, para descobrir-se melhor e reconstruir sua felicidade. O título do livro sintetiza o que a autora considera essencial: na vida, o melhor está sempre por chegar e há sempre tempo para viagens, novos caminhos e mudanças.

O romance, em síntese, é um tributo às segundas oportunidades, ao sempre possível recomeço.  Editora Planeta, 352 páginas, tradução de Sandra Martha Dolinsky, www.editoraplaneta.com.br.


30 de novembro de 2012 | N° 17269
PAULO SANT’ANA

Fracassei

Quase não dá para acreditar. Uma operadora telefônica fazia cair ligações dos usuários para cobrar mais pelas religações.

Ou seja, uma famosa operadora telefônica armou dispositivo mediante o qual instalou quedas automáticas nas ligações para lucrar com as novas ligações que os usuários tinham de fazer.

Eu não entendo como é que continua funcionando uma operadora que procede com essa fraude gigantesca.

Evidentemente, nós, usuários, agora vamos dizer que era por isso que caíam tanto as ligações.

Não dá para acreditar numa safadeza dessas.

Foi por isso, então, que a Anatel decidiu que ligação telefônica com duração de menos de dois minutos, daqui para diante, quando sofrer queda, não poderá ser cobrada novamente. Quantas vezes cair a ligação, doravante, terá de ser cobrada uma vez só.

Medida justa e humana com os consumidores.

Faleceu na madrugada de ontem Joelmir Beting, um dos maiores jornalistas brasileiros de todos os tempos.

Ele traduziu magistralmente para o noticiário a economia, antes dele inalcançável para os ouvintes e leitores.

Era dono de uma expressão enriquecedora do vocabulário, tinha uma inteligência rara.

Morreu um cara que vai fazer muita falta para as comunicações.

Para ser honesto, tenho de confessar aos meus leitores que devo ter fracassado na minha tentativa de deixar de fumar.

Em quatro dias de experiência, de segunda-feira passada até ontem, quando antes teria fumado 240 cigarros (três maços por dia), consegui fumar apenas 40 cigarros. Na verdade, para deixar de fumar, teria que não fumar nenhum cigarro nos últimos quatro dias.

Não foi possível, não consegui resistir à tentação. Eu já sabia que era dependente do cigarro, tanto que, quando comuniquei que iria tentar parar de fumar, não deixei de assinalar que não acreditava no meu sucesso.

Os médicos Carlos Barrios e Luiz Edmundo Mazzoleni, quando leram a minha promessa, imediatamente me telefonaram e praticamente me asseguraram que era impossível, sozinho, eu largar o cigarro. Queriam dizer que eu precisava de uma ajuda médica ou química.

Não sei agora o que vou fazer, tentarei manter essa redução significativa de cigarros fumados que obtive nesses quatro dias, mas nem isso talvez eu consiga.

Que vício triste. Não sei como pessoas como o Cláudio Brito e o Moisés Mendes conseguiram largar do cigarro sem ajuda de ninguém e de nada, é um milagre que eles atingiram e que eu desconfio que jamais atingirei.

Tenho três filhos e os três não fumam. Mas um neto meu de 25 anos já é fumante.

Que vício triste!


30 de novembro de 2012 | N° 17269
DAVID COIMBRA

Coração selvagem

Esse senhor de basto bigode que zanzou feito um fantasma por Porto Alegre dias atrás, Belchior, esse senhor estranho é um símbolo. Belchior é uma estátua viva à juventude, à inconformidade, à contestação reflexiva e, também, à imaturidade.

Você pode aprender muito, se conhecer Belchior, se prestar atenção no que ele escreveu e no que ele se transformou. Belchior foi um poeta inexcedível. Repare neste verso:

“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.

Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão”.

Não é uma bela imagem, o beijo que ela leva escondido nas dobras do blusão?

Em outro poema, Belchior tomou emprestada a verve de Olavo Bilac:

“Ora, direis, ouvir estrelas! Certo perdeste o senso. Eu vos direi, no entanto: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto”. Bonito.

Mas o importante de Belchior não é a beleza das suas composições. O importante é quando ele confessa que a sua alucinação é suportar o dia a dia. É a alucinação de todos, certo, mas Belchior não está exagerando sobre si mesmo. Em outra canção ele diz a um parceiro:

“Se você vier me perguntar por onde andei

No tempo em que você sonhava,

De olhos abertos lhe direi: Amigo, eu me desesperava”.

Ele se desesperava com o dia a dia, ele se desesperava ao perceber que a juventude do seu coração era perversa, uma juventude que só entendia o que era cruel, o que era paixão, porque assim é a juventude.

Belchior sabia que a felicidade é uma arma quente, mas isso não lhe serviu de consolo. A fama, o sucesso e o dinheiro não foram suficientes para aplacar a dor existencial de Belchior. Ele não se conformou. Prova-o o seu futuro, que o futuro dele está acontecendo hoje.

Prova-o esse ser humano enigmático que vaga pelo sul do continente meio que sem rumo, hospedando-se em hotéis sem ter dinheiro para pagá-los, doce e arredio ao mesmo tempo, parecendo ora aflito, ora sereno, sendo hoje o que foi sempre.

Belchior ficou congelado nos anos 70. Jamais saiu de sua própria juventude e, suponho, jamais sairá. Em uma de suas grandes composições há uma frase que diz tudo sobre ele, uma frase que resume o que é o coração selvagem de quem começa a se conhecer:

“Ainda sou estudante da vida que eu quero dar”.

É isso. Belchior sabia que a vida de uma pessoa é dada a outras pessoas. Mas que vida ele queria dar? Para quem? Essas eram as perguntas que o inquietavam, e que inquietam a quem quer que pense. Olhando para o Belchior pálido de hoje fico pensando se ele, enfim, descobriu as respostas.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012


CONTARDO CALLIGARIS

Decisões morais

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois assaltantes; você vai acelerar?

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.

O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.

ccalligari@uol.com.br

ROGÉRIO GENTILE

O poder de Rosemary

SÃO PAULO - Não é da tradição do jornalismo brasileiro tratar da vida privada dos políticos. Diferentemente do que ocorre nos EUA e em outros países, opção sexual, amantes, bebedeiras e uso de drogas não são normalmente considerados como assuntos para reportagens.

O entendimento muda se o sujeito mistura sua vida particular com a profissional. Um prefeito, por exemplo, que nomeie a sobrinha para um cargo público pode acabar virando notícia. O mesmo ocorre com um secretário de Segurança que frequente a casa de um chefe de quadrilha.

Na sexta passada, a PF indiciou, por suspeita de corrupção e tráfico de influência, a assessora Rosemary Noronha. Ex-secretária do PT, foi nomeada no governo Lula para o cargo de chefe de gabinete do escritório da Presidência em SP e rodou o mundo a serviço do Planalto, viajando com o então presidente para 23 países.

Acumulou tanto poder que conseguiu, inclusive, emplacar diretores em agências reguladoras mesmo quando havia resistência no Congresso. Em situação incomum, o Senado aprovou um nome indicado por Rose que vetara quatro meses antes.

Há anos especula-se nos corredores do governo sobre a origem do seu poder, zum-zum-zum que cresceu agora com a ação da PF. Em editorial, o jornal "O Estado de S. Paulo" disse que sua influência "derivava diretamente de sua intimidade com Lula".

Diante da gravidade das acusações da PF, Lula deveria dar explicações sobre sua antiga assessora. Ela tem qualificações para o cargo que ocupava? Quais eram suas atribuições nas viagens e por que ganhou passaporte diplomático? E como conseguiu dobrar o Senado?

Dilma, que a deixou no cargo até sábado, também deveria prestar esclarecimentos. Se a função de Rose era tão importante, por qual razão a presidente simplesmente extinguiu o seu cargo após as revelações da PF?

Sem explicações convincentes, resta uma questão: Lula misturou sua vida privada com a pública?

ELIANE CANTANHÊDE

É hora de novos Jefferson

BRASÍLIA - Fim da dosimetria do mensalão, enredo de gato e rato no Senado e surgimento de novos personagens do escândalo Rose a cada dia. Uma fartura de temas.

No derradeiro dia da dosimetria, inverteram-se as posições, com o duro presidente/relator Joaquim Barbosa amenizando a pena do delator Roberto Jefferson em um terço e o flexível revisor Ricardo Lewandowski acusando o réu de "colaboração zero". Venceu Joaquim mais uma vez.

No Senado, o relator da CPI do Cachoeira, Odair Cunha (PT), recua para retirar o procurador-geral Roberto Gurgel e o jornalista da revista "Veja" de um alvo onde não deveriam estar. Não satisfeitos, o PSDB pressiona para aliviar a barra do governador Marconi Perillo, e o PMDB, a do dono da Delta. Quanto antes esse espetáculo tétrico terminar, melhor.

E a turma da Rose, ou Rosemary Noronha, a poderosa ex-chefe de gabinete do escritório da Presidência em São Paulo, tem ramificações na Anac (aviação civil), na ANA (águas), na Antaq (transportes aquaviários), na Secretaria de Portos e na Advocacia-Geral da União. Por enquanto...

Se as lideranças governistas no Senado deram um jeitinho de aprovar o duplamente reprovado Paulo Vieira para a ANA, agora move montanhas para evitar convocar Paulo, o irmão dele da Anac, Rubens Vieira, o segundo da AGU, José Weber Holanda, e a própria pivô Rose.

Ué?! Por quê? Se Dilma afastou todo mundo e preza a transparência, que deixe que eles falem. Quem sabe um deles não venha a ter redução de um terço da pena, como Roberto Jefferson? Isso, sim, é uma faxina, passando tudo a limpo e garantindo que não continue nem se repita.

É interessante, aliás, como a história de Rose entrelaça novos personagens e outros de velhos carnavais, como o ex-senador Gilberto Miranda e o eterno presidente do PL/PR, Valdemar Costa Neto, réu do mensalão.

Isso só comprova: se é para moralizar, não basta demitir pessoas, é preciso explodir os esquemas.


29 de novembro de 2012 | N° 17268
EDITORIAIS ZH

Contra o endividamento

Num país em que os cidadãos, de maneira geral, poupam pouco e costumam se endividar além do recomendável, são sempre oportunas iniciativas como a da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Porto Alegre, que até o próximo sábado oferece uma oportunidade para quem quer colocar suas contas em dia.

O interesse, no caso, é tanto do comércio, que precisa de consumidores livres da inadimplência para faturar mais, quanto dos próprios endividados, que têm, assim, uma motivação adicional para retomar as compras a crédito. Por isso, é importante que as condições da negociação sejam favoráveis tanto para quem vende quanto para quem compra.

Em países desenvolvidos, nos quais a população tende a poupar mais e usar mais a modalidade de pagamento à vista, pesquisas têm demonstrado que os efeitos do endividamento e da inadimplência vão além da suspensão das compras.

Além de amplificar problemas psicológicos, prejudicando o sono e o humor, o ciclo vicioso de débitos costuma afetar o rendimento no trabalho, devido ao excesso de preocupações que provoca. Daí a importância e a necessidade de ações como a promovida agora, em conjunto com a administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito.

Obviamente, sempre que mais consumidores estão aptos a ir às compras, o comércio vende mais e a atividade econômica, de maneira geral, sai favorecida, com ganhos para todos. Por isso, ações pontuais com o objetivo de reduzir débitos são sempre bem-vindas, independentemente de partirem dos setores público ou privado.

Cada vez mais, porém, é preciso que os brasileiros se disponham a conciliar melhor o cotidiano com os seus próprios orçamentos pessoais. A estabilidade econômica reforçou a necessidade de uma nova cultura financeira, impondo transformações que precisam ser reforçadas particularmente entre as novas gerações, a partir dos bancos escolares.


29 de novembro de 2012 | N° 17268
ARTIGOS - Roberto Velloso Eifler*

A RS-010 e o cidadão comum

Eu sou um médico, mas um médico comum, que atende pessoas comuns. Trabalho em Porto Alegre e me surpreendo com o número de pessoas que vêm diariamente da Região Metropolitana, via BR-116, consultar aqui. É gente de Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo etc. Gente comum, como eu.

São bancários, marceneiros, costureiras, comerciantes, funcionários públicos, empreiteiros, eletricistas etc. Um mundo de pessoas comuns cujos pequenos trabalhos, entretecidos, fazem o Rio Grande do Sul funcionar. É o Rio Grande que trabalha. Essas pessoas há anos perdem tempo, perdem dinheiro, perdem a paciência nos longos engarrafamentos da BR-116.

A pressão do senso comum fez com que os políticos da Região Metropolitana começassem a dar apoio ao projeto do prolongamento da RS-010 entre Sapiranga e Cachoeirinha. Isso já faz dois anos e meio. Dois anos e meio de sofrimento, atrasos, prejuízos.

Finalmente chegou-se a um modelo de parceria público-privada com a Odebrecht, referendado pela Associação de Municípios da Grande Porto Alegre. Nós, as pessoas comuns, nos enchemos de esperança. Mas eis que surge um impasse: o governo do Estado parece não gostar de parcerias público-privadas.

Eu, como médico, disponho de um conhecimento especializado, mas meu maior conhecimento é o senso comum que divido com as demais pessoas. Esse conhecimento comum enxerga como necessidade óbvia, urgente, a construção da RS-010. Não nos interessa se é projeto público, privado ou público-privado.

Não temos preconceitos intelectuais. Queremos obras. Se não gostam da Odebrecht, chamem a Delta. Não interessa. Pela Lei de Simonsen, vai sair mais barato ter a estrada pronta, seja qual for o preço, do que arcar com o custo anual de R$ 624 milhões por cada hora de engarrafamento na BR-116, segundo estudo da Agenda 2020.

O que, porém, começa a assustar é que a questão parece ser menos financeira do que ideológica. Na cúpula do governo do Estado há muitos intelectuais. Isso é preocupante. Intelec- tuais são pessoas cuja atividade profissional gira em função de ideias. Ora, ideias como conhecimento especializado não são definitivas nem consensuais, porque lhes falta verificação empírica. Conhecimento intelectual especializado não tem nada a ver com prática administrativa.

Ao longo da História, toda vez que tentaram impor ideias aos fatos, aconteceram desastres. George Orwell disse que algumas ideias são tão estúpidas, que só um intelectual para acreditar nelas. Parece-me um exagero retórico. Mas a cautela recomenda que os intelectuais sejam mantidos afastados da gerência.

De qualquer modo, nós, cidadãos comuns, sofredores da BR-116, só queremos uma coisa: que se construa a RS-010. Com parceria ou sem parceria, com intelectuais ou sem intelectuais. Logo. Sem enrolação.

*MÉDICO


29 de novembro de 2012 | N° 17268
PAULO SANT’ANA

Os limites da ética

Confesso não ter opinião sobre esse atrito entre o ex-diretor do Daer José Francisco Thormann e o ex-secretário estadual de Infraestrutura e Logística deputado federal Beto Albuquerque (PSB).

Não tenho opinião, mas tenho muita curiosidade.

Em primeiro lugar, Beto Albuquerque declarou que tinha “confiança zero” em Thormann.

Foi aí que não entendi. Como é que, sendo o titular da secretaria estadual em que Thormann era diretor-geral do Daer, superior, portanto, do diretor, permitia que esse exercesse a sua função se tinha “confiança zero” nele?

Pode alguém me explicar isso? Se a confiança era zero, Beto Albuquerque tinha de demiti-lo. Não poderia continuar convivendo política e administrativamente com seu auxiliar sem confiar nele. Assim não há governo que funcione.

Outra coisa que atiça minha curiosidade vem a seguir. Thormann foi acusado de ter, como diretor do Daer, feito uma viagem ao Exterior às expensas de uma firma terceirizada que realiza serviços e obras para o Daer.

No dia seguinte, como tinha sido considerado de “confiança zero” pelo ex-secretário Beto Albuquerque, o ex-diretor revidou: “Ué, mas o Beto Albuquerque, como secretário estadual, também realizou viagem ao Exterior, por sinal em minha companhia, custeada inteiramente por empresa privada”.

A minha dúvida é a seguinte: essas viagens que membros do governo realizam ao Exterior em companhia de empresários que têm negócios com o governo são sempre custeadas pelas empresas privadas?

Honestamente, pensei que os membros dos governos pagassem suas despesas com viagens com recursos do erário público.

Mas agora apareceu a possibilidade de que quem paga sempre as despesas dos membros dos governos ao Exterior são as empresas interessadas em fornecer serviços ou obras para os governos. Se não pagam todas as viagens, vê-se agora que pagam algumas.

E aí é que eu pergunto: é ético empresa que tem negócio com o governo pagar por inteiro viagens ao Exterior de membros do governo? Eu sinceramente não sei se é ético, por isso não tenho opinião, tenho só profunda dúvida e aguçada curiosidade.

E tenho mais uma pergunta: uma empresa que negocia com o governo ou que pretende negociar não pode vir a ser favorecida em concorrência ou licitação se custear por inteiro despesas de membros do governo ao Exterior?

São dúvidas que eu tenho e que afloraram agora por esse atrito entre dois ex-membros do governo.

Por sinal, a abordagem desse assunto poderia servir para que se solenizasse com severidade um código sobre os limites da ética no relacionamento entre fornecedores do governo e membros do governo.

Porque esse código é desfeiteado é que eu, por exemplo, fico em dúvida se é ético ou não membros do governo viajarem ao Exterior com todas as despesas pagas pelos fornecedores do Estado.

Ficou muito confuso ultimamente no Brasil saber se é legítima ou se é contubérnio determinada relação entre governo e seus fornecedores.

Eu tenho sérias dúvidas, mas confesso que não tenho certeza.


29 de novembro de 2012 | N° 17268
J. A. PINHEIRO MACHADO

Verissimo e o Pato Macho

O primeiro número do Pato Macho foi lançado em 14 de abril de 1971, sob o comando do editor-chefe Luis Fernando Verissimo e dos editores Coi Lopes de Almeida, Cláudio Ferlauto, Carlos Nobre, Sérgio Arnoud e Assis Hoffmann. “Que loucura!” era o título do editorial de estreia, com um voto de desconfiança aos “velhos” de mais de 30 anos:

“Dos nossos diretores e principais redatores só dois – Luis Fernando Verissimo e Carlos Nobre – ultrapassaram a barreira dos 30, mas ambos nos asseguram que ainda têm dois ou três anos de raciocínio produtivo antes que a esclerose os transforme em medalhões” – dizia o texto.

Se o jornal era cáustico assim com seus próprios dirigentes, imagine com os inimigos. Represálias, é claro, não tardariam.

Eram os tempos de ditadura para valer, com o Ato 5 novinho em folha e o DOI-Codi cheio de horror pra dar. Apesar disso, o Pato foi crescendo com acréscimos notáveis: Phileas Fogg (pseudônimo que Maurício Sobrinho buscou em Julio Verne para o perseguido Josué Guimarães), José Onofre, Jeferson Barros, Tatata Pimentel, Ruy Ostermann, Divino Fonseca, Roberto Appel, Rogério Mendelski, Ibsen Pinheiro, Roberto Manera, Carlos Stein, D’Arrigo, Sergio Rosa, Celente, Werner Becker, Polydoro, o meu irmão Ivan (que tinha uma medalha: fotografara a então gatinha Rita Lee), e tantos outros talentos que dedicaram seu tempo, seu dinheiro e sua própria segurança ao jornal mais contestador e mais desbocado que o Rio Grande já viu. A redação se divertia mais do que os leitores.

O jornal crescia em prestígio e possibilidades, e começou a se estruturar melhor. O time de colaboradores brilhava. O Luis virou diretor e me convidou para editor-chefe. Mas logo pagamos o preço da liberdade: veio o decreto de censura prévia, ganhei a tarefa humilhante de submeter as páginas prontas à polícia. Em seguida, o Pato começou a definhar.

Com a censura, o poder submeteu o Pato e outros jornais alternativos à mesma lenta asfixia: restringia-se a matéria publicada, caía a qualidade, o público se desinteressava, a venda avulsa diminuía, os anunciantes ficavam intimidados e a publicidade chegava a zero. Lembro de um censor, proibindo a gravura antiga da estátua de uma deusa grega com seios à mostra, em nome da moral, pois era “marido exemplar e pai extremado”. No Carnaval da Cabana do Turquinho, foi visto bêbado, com colar havaiano, sambando abraçado a duas odaliscas. O Pato Macho morreu sem publicar essa foto de um de seus assassinos.

O Luis Fernando proporcionou ao Pato, além de trabalho, talento e empenho, também o nosso quartel-general: durante muito tempo sua própria casa serviu de sede, com o apoio da Lúcia, da dona Mafalda e do Erico (que absolviam nossas loucuras com sorrisos solidários). Essa disposição incondicional, generosa e corajosa transparece nos textos impecáveis com que o Luis, há tantos anos, faz brilhar este espaço do jornal.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012


Marcelo Coelho

Os dois Barbosas

Num país em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele não está

Ainda prossegue o julgamento do mensalão, e há muitos ajustes de penas, revisões, recursos e intercorrências institucionais pela frente.

 De todo modo, um clima de trabalho encerrado, coincidindo talvez com as festas de fim de ano, tomou conta do STF na última semana.

 O espírito comemorativo pairou sobre a despedida do presidente Ayres Britto; alargou-se, em dia de casa cheia, com a posse de Joaquim Barbosa no cargo; irradiou-se, finalmente, numa explosão estroboscópica, com as cenas do ministro Luiz Fux tocando guitarra elétrica na festa em homenagem ao colega.

 Tenho comentado bastante o julgamento do mensalão no caderno "Poder", de modo que não entro aqui no conteúdo das decisões do tribunal. Mas o STF também é cultura, e há algo a dizer, sem dúvida, sobre algumas imagens que vão ficando do julgamento em curso.

 Numa foto que faz sucesso, Joaquim Barbosa aparece de costas, com a capa drapejante, no estilo homem-morcego. É a figura do vingador, um tanto curvado e cabisbaixo pelo peso da própria obstinação, mas ao mesmo tempo rápido e decidido no passo. As dobras da capa sinalizam velocidade, altitude, independência e solidão.

 O reverso da medalha são as máscaras que se fabricam para o Carnaval. Onde tínhamos a toga de Barbosa, temos agora o rosto de Joaquim. As rugas na testa e a expressão severa não tiram, claro, o sentido debochado da ideia, ou melhor, a falta de qualquer sentido na ideia.

 Em outros anos, apareceram máscaras de Saddam Hussein, de Obama, de Lula e de Bin Laden. Tanto faz o personagem; o que importa é deslocá-lo do contexto, sublinhando que o Carnaval pode engolir tudo na mesma falta de lógica.

 Seja como for, o Joaquim Barbosa trágico, espécie de Batman perseguido, convive com o Joaquim Barbosa cômico, camarada, ao alcance de todos. Não há maior sinal dessa ambiguidade do que o modo com que várias pessoas se referem a ele.

 Imagino que não revelo segredo nenhum ao publicar isto: chamam Joaquim Barbosa de "Juiz Negão".

 O curioso é que a denominação, de óbvio histórico racista, vem em contexto positivo. Do gênero: "Tomara que o Negão ponha todo mundo na cadeia mesmo". Ou: "Se fosse por mim, dava plenos poderes para o Juiz Negão resolver logo essa parada". Numa sociedade como a nossa, o racismo por vezes está onde menos aparece, e vice-versa.

 Os que chamam Barbosa de "Negão" parecem inconscientemente atribuir-lhe uma força vingadora e revolucionária, que admiram, mas da qual também gostariam de se afastar.

 É o simétrico, digamos assim, da frase "vocês são brancos, que se entendam". Algo que sempre pareceu aplicar-se, por sinal, ao mundo altamente codificado e técnico de uma corte superior de Justiça.

 Nesse aspecto, os dois Barbosas se combinam. O Barbosa vingador, sozinho num mundo de "brancos", se identifica com o Barbosa carnavalesco, da máscara que está "na boca do povo". O branco de classe média, com raiva de Lula e José Dirceu, torna-se "negro" como Barbosa em sua luta contra "os poderosos" que fazem e desfazem em Brasília.

 O termo "Negão", certamente "incorreto", torna-se estranhamente "correto" nesse contexto. E o contrário acontece com alguns termos "politicamente corretos".

 Foi o caso do discurso feito pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcante, homenageando Barbosa na semana passada. A situação, naturalmente, sugeria celebrar o fato de pela primeira vez se ter um negro na presidência do tribunal. Ao mesmo tempo, como fez o próprio Barbosa, cabia passar por cima desse fato: ver os méritos da pessoa, não a cor de sua pele.

 Cavalcante saiu-se com uma referência ao "multiculturalismo da brava gente brasileira", que "se faz presente com o ministro Joaquim Barbosa".

 Como assim, "multiculturalismo"? Tendo estudado em Paris e dado aulas nos Estados Unidos, por que seria Barbosa mais "multicultural", ou menos, do que Gilmar Mendes ou Celso de Mello?

 De modo parecido, a severidade de Barbosa é frequentemente relacionada a alguma dose de revolta ou rancor que traga do próprio passado. Talvez; mas por que não culpar a sua dor nas costas, por exemplo, pelo mau humor que o acompanha?

 Num país em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele não está. O fato é que ninguém fecha os olhos para o fato de ele ser negro; e fingir que se ignora o fato tende a ser muito revelador também.

coelhofsp@uol.com.br


Antonio Prata

Descuido *

No relacionamento, às vezes a gente se sente como quem dirige no estrangeiro: errando e sendo xingado

- Maravilha, vaga bem na frente. - Cê não acha mais seguro deixar no valet?

- Vinte e cinco paus?! - Se a gente sair tarde...

- Prefiro dar o dinheiro pro ladrão que pro valet: pelo menos o roubo é explícito. Pode deixar, a gente vai embora cedo -ele diz, já fazendo a baliza.

- Ó lá, hein? São Paulo tá fogo, não quero dar mole de madrugada...

Ele desliga o carro. Vai abrir a porta, hesita: - Cê tem uma bala, aí?

- Tenho um Trident, serve? - Serve.

Ela pega o chiclete na bolsa. Vai dar pra ele, hesita:

- Engraçado, cê nunca gostou de bala, chiclete, por que isso, agora?

- Porque... Ah, essa coisa de vernissage, todo mundo espremidinho, falando um na cara do outro, sei lá, vai que...

- Que?... Vai que eu tô com um bafinho? - Que nojo! Cê tá com um bafinho?!

- Não sei, tô? - Sei lá! Não! Por que que cê ia tá com bafinho?

- Ué, tava no trabalho, um tempão sem comer, reunião... Sabe aquelas pessoas que têm um bafinho de trabalho? Morro de medo. Daí o chiclete.

Ele vai pegar o Trident: ela fecha a mão -e a cara. Ele suspira. (Às vezes sente-se no relacionamento como quem dirige num país estrangeiro: vira e mexe, sem nem perceber, está cometendo infrações, levando apito do guarda, escutando xingamentos dos outros motoristas.)

- Que foi? - Como, que foi?! Quer dizer que se você tiver com bafo a sua maior preocupação é com o pessoal na vernissage, não comigo?!

- Não, eu... Olha, eu não acho que tô com bafo! É, é só um cuidado.

- Cuidado com eles e descuido comigo! Eu sou sua mulher! É comigo que você tem que se preocupar! "De tudo ao meu amor serei atento antes", não é esse o verso do Vinicius que você vive citando por aí? Bafinho! Vê se pode! É o fim do amor!

- Que fim... Escuta, vamos lá pro lançamento?! É perigoso ficar aqui discutindo dentro do carro.

- Ah! Pra economizar R$ 25 do valet não era perigoso, mas pra resolver a situação com a sua mulher, é?!

- Que situação?! Não tem situação nenhuma! Eu só pedi uma bala! Onde cê tá querendo chegar com essa discussão?

- Eu que te pergunto! Onde cê tá querendo chegar com essa atitude?

- Eu? Eu quero chegar no lançamento, só isso. Será que dava pra gente ir pro lançamento?

- Se você tá tão preocupado assim com esse lançamento, vai! Vai que eu vou embora!

- Olha, se eu sair desse carro vai ficar configurada uma briga, cê sabe, né?

- É bom, mesmo, pra você ficar mais esperto comigo. Quem ama, cuida! Não é Vinicius, mas é bem verdade! Vai, vai pro seu lançamento!

Ele dá a chave pra ela. Sai do carro. Ela pula pro banco de motorista e arranca, cantando pneus. Ele olha em volta, não vê nenhum conhecido. Põe a mão em concha sobre a boca e o nariz. Testa. Parece que não: mas vai que? Compra um saco de pipocas e entra mastigando, seguro e infeliz.

*Texto escancaradamente inspirado nos diálogos de casal do Marcelo Rubens Paiva.

antonioprata.folha@uol.com.br


28 de novembro de 2012 | N° 17267
MARTHA MEDEIROS

Pulsantes

Assisti à peça Vermelho, encenada pelo extraordinário Antonio Fagundes e por seu filho Bruno, que conta uma parte da vida do pintor Mark Rothko, expoente do expressionismo abstrato nos anos 50 e 60. O texto é tão bom, que saí do teatro com a cabeça fervendo.

Vontade de escrever sobre o dilema entre o que é artístico e o que é comercial, sobre as diferentes maneiras de vermos a mesma coisa, sobre a função da arte abstrata (que nunca me comoveu, mas à qual a partir da peça passei a dar outro valor) e sobre a desproteção das obras quando expostas (Mark Rothko era hiperexigente quanto à luz das galerias, assim como quanto à distância que o visitante deveria ficar da tela, e por quanto tempo esse visitante deveria observá-la até ser atingido emocionalmente... enfim, um chato, esse Rothko, mas fascinava).

No entanto, como não sou conhecedora de pintura, resolvi destacar aqui um outro aspecto da montagem, que diz respeito não só a artistas plásticos, mas a todos os que lidam com criação. Pensando bem, até com os que não lidam.

Muitos entre nós ainda acreditam que trabalho e prazer são duas coisas distintas que não se misturam. O dia, em tese, é dividido em três terços: oito horas trabalhando, oito horas aproveitando a vida (até parece: e as filas? e o trânsito?) e oito horas dormindo. Cada coisa no seu devido lugar. Apenas os artistas teriam a liberdade de subverter essa ordem.

Pois o mundo mudou. O trabalho está deixando de ser aquela atividade burocrática e rígida cuja finalidade era ganhar dinheiro e nada mais. Queremos extrair prazer do nosso ofício, seja ele técnico, artístico, formal, informal. O conceito de estabilidade perdeu força, as hierarquias já não impressionam.

A meta, hoje, é aproveitar as novas tecnologias e as oportunidades que elas oferecem. Atuar de forma mais flexível, autônoma e motivada. Trocar o “chegar lá” pelo “ser feliz agora”. Ou seja, amar o trabalho do mesmo jeito que se ama ir ao cinema, pegar uma praia e sair com os amigos.

Rothko respirava trabalho, e considerava que estava igualmente trabalhando quando lia Dostoievski, quando filosofava, quando caminhava pelas ruas, quando amava, quando dormia, quando conversava. Defendia a vida como matéria-prima da inspiração, sem regrar-se pelo horário comercial. Não se dava folga – ou folgava o tempo inteiro, depende do ponto de vista. Quando não estava pintando, estava alimentando sua sensibilidade, sem a qual nenhuma pintura existiria.

Nos anos 50, só mesmo um artista poderia viver essa fusão na prática. Depois que cruzamos o ano 2000, porém, é uma tendência que só cresce, em todas as áreas profissionais, nas que existem e, principalmente, nas que estão sendo inventadas.

Como pintor, Mark Rothko valeu-se de uma vasta cartela de cores, mas expressou-se magistralmente em vermelho – na verdade, ele viveu em vermelho. Paixão, sangue, vinho, pimenta, calor, sedução. Ele sabia que essa era a cor que pulsava. E segue moderno, pois, como ele, são os pulsantes que estão fazendo a diferença.


28 de novembro de 2012 | N° 17267
EDITORIAIS ZH

A Anatomia da Fraude

A organização criminosa desmontada pela Polícia Federal, composta por pessoas consideradas inatingíveis pelo fato de terem as “costas quentes” por terem sido indicadas por poderosos, é cruelmente ilustrativa de como a máquina pública se presta em muitos casos mais para atender aos interesses de grupos do que aos do conjunto da sociedade.

A própria figura-chave do esquema montado para a prática de tráfico de influência e corrupção é uma síntese do que ocorre quando o critério de preenchimento de postos-chaves é o mero apadrinhamento.

Rosemary Nóvoa de Noronha, a Rose, foi levada ao poder pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a preservou no governo Dilma Rousseff. Blindada na condição de chefe de gabinete da Presidência em São Paulo, tinha marido e filha bem instalados na esfera pública. Mais: transformou as agências de regulação numa fonte de enriquecimento com base na venda de pareceres. Enquanto a tolerância com esse tipo de comportamento for mantida, o setor público continuará nas mãos de especialistas em lesar o setor público.

Um aspecto particularmente inaceitável dos fatos desvendados agora é que os danos desse tipo de deformação não podem ser atribuídos apenas a más escolhas, embora, em sua maioria, os episódios mais recentes de corrupção acabem envolvendo os chamados braços direitos de figuras poderosas.

Um dos principais envolvidos no esquema de venda de facilidades instalado em órgãos federais, Paulo Rodrigues Vieira, só assumiu a direção da Agência Nacional de Águas (ANA) porque o Senado resistiu em aprovar sua indicação, mas acabou cedendo na terceira tentativa. Instituições como essa, inicialmente previstas para atuar com independência na regulação dos serviços concedidos, acabaram se transformando com o tempo em meras autarquias de ministérios.

Em conse- quência, ficaram sujeitas a pressões político-partidárias no jogo do vale-tudo entre companheiros de partido e na busca de apoio do Congresso a projetos de interesse do governo.

Como se não bastassem todas essas deformações na configuração da máquina pública, na maioria dos casos pessoas guindadas a postos-chaves pela mão de políticos influentes são encaradas como quem pode tudo. O país precisa dar um basta à tolerância excessiva com a atuação de apadrinhados que entram pela janela para transformar o setor público em balcão de negócios, como demonstrou a chamada Operação Porto Seguro.

Ao lançar luz sobre a anatomia da fraude, a Polícia Federal oferece ao país mais que uma oportunidade de punição dos fraudadores. Contribui também para o desenvolvimento de antídotos de transparência que efetivamente façam efeito contra a corrupção.


28 de novembro de 2012 | N° 17267
ARTIGOS -Vanderlei Cappellari*

A vida, sempre o melhor presente

Verão, festas, intensa circulação de pessoas, corre-corre para compra dos presentes de Natal e ano-novo; as esperadas férias. Dezembro é assim, um mês aguardado com grande expectativa, carregado de energia, de fé, de esperanças renovadas. Neste momento de encontros, de trocas de sentimentos, de revisões, previsões e promessas, é importante lembrar sempre da importância do respeito à vida, à nossa, à do próximo.

Nós, que agimos diariamente na circulação da cidade, ao mesmo tempo que sentimos no ar esta vibrante e saborosa realidade, temos o dever de lembrar da necessidade de cuidados redobrados no convívio do trânsito neste final de ano, e nos meses de férias. Ainda mais que as exigências de produção e a competição podem desenvolver reações emocionais perturbadoras à nossa capacidade de relação e convívio com as pessoas.

Avançamos, em 2012, nas relações do trânsito. Chegamos ao 10º mês do ano com uma redução de 30 vítimas fatais, na comparação com o mesmo período de 2011. É um ganho inestimável, uma sinalização clara de mudança de cultura, de um maior respeito entre motoristas e pedestres.

Mas não podemos abrir a guarda, ainda mais quando se trata de colocar a vida em risco. Os pontos mais vulneráveis continuam sendo os atropelamentos de pedestres e os acidentes com motos. Já morreram 34 motociclistas e 34 pedestres, por atropelamento. Vamos realizar um mutirão pela segurança no trânsito em dezembro. E todos os segmentos da sociedade devem se envolver nesta missão.

Temos todo o direito de comemorar o ano que passa; o 2013 que se aproxima. Mas não vale a pena apressar as coisas. O estresse, a partir da ansiedade da correria das festas, nas comemorações exageradas, representa armadilhas perigosas, espaço aberto para os acidentes. Mais importante do que qualquer presente material, pode ser o mais caro e cobiçado, para um familiar muito querido, ou para um amigo mais do que especial, está num forte abraço, de corpo bem presente.

Boas festas a todos, lembrando que a vida será, sempre, o melhor presente.

*DIRETOR-PRESIDENTE DA EPTC


28 de novembro de 2012 | N° 17267
PAULO SANT’ANA

A fiança

Um dos momentos mais nervosos e cruciais do campo espiritual é aquele em que uma pessoa pede fiança para outra.

Eu tenho um amigo que não tem nenhuma propriedade imobiliária. No entanto, durante toda a vida ele teve inúmeras oportunidades de adquirir imóveis. Nunca adquiriu algum porque tem a família muito numerosa e, se tivesse adquirido imóvel, fatalmente alguém iria lhe pedir fiança.

A relação entre o fiador e o afiançado é uma das mais conflituosas que se conhecem no campo das relações humanas.

Há pessoas que não concedem fiança nem para os seus irmãos de sangue, quanto mais para os cunhados.

E não há instante de pior ruptura entre as pessoas do que quando alguém nega fiança para outrem: está assim quebrado o cristal da amizade.

Outro amigo meu tem uma expressão: “Dou tudo o que tenho para quem me pedir, menos fiança”.

Não há nada mais injusto do que um fiador pagar uma fiança para um afiançado que não cumpriu com seu compromisso.

O fiador, em última análise, não tem nada a ver com aquele compromisso financeiro que assumiu o afiançado. E, no entanto, ele é obrigado a pagá-lo. Paga sem ter usufruído do aluguel ou qualquer outro bem que tenha gozado o afiançado.

Por outro lado, para o afiançado se torna muito dolorido e constrangedor pedir fiança para o provável fiador. Há afiançados que relutam durante anos em pedir fiança, envergonhados, inibidos, destruídos ante a possibilidade de que tenham de pedir a fiança, o supremo momento de dor e covardia dos afiançados.

Há outros caras de pau que nem se tocam para pedir fianças, pedem-nas a torto e a direito e por certo não honram nenhuma delas.

Ainda na semana passada narrou-me um conhecido meu as imensas dificuldades por que está passando em face de ter de pagar uma fiança concedida a um parente seu que não foi honrada.

Ele me disse que o juiz que executou a fiança ainda foi compreensível e parcelou a dívida, até mesmo porque não teria como pagá-la por inteiro.

Mas ele me contou que está sendo obrigado a restringir todos os seus gastos, até mesmo os de alimentação, em razão de que a prestação a que foi obrigado reduziu a escombros o seu orçamento.

Felizes dos que, ou por se precaverem, ou por sorte, não são solicitados a dar fiança a ninguém.

Se há instituto do Direito Civil que é infeliz e inadequado, é o da fiança, que separa as pessoas, que cria ódios e inimizades, que tinha de ser substituído por outro mecanismo que não transformasse os seus atores em inimigos da noite para o dia.

Maldito abismo criado entre as pessoas essa encrenca máxima da fiança.