quinta-feira, 30 de junho de 2011



30 de junho de 2011 | N° 16745
ARTIGOS - Raul Cohen*


E vai rolar a festa

No próximo dia 5 de julho, os criminosos estarão em festa. O benefício da nova Lei nº12.403/2011, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidente Dilma Rousseff e pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, oportunizará aos criminosos que a prisão em flagrante e a prisão preventiva ocorrerão em casos especialíssimos, aumentando a impunidade reinante em nosso país.

Em tese, ficará preso quem cometer homicídio qualificado, estupro, tráfico de entorpecentes, latrocínio etc. Para os leigos no assunto, isso significa que crimes como homicídio simples, roubo à mão armada, lesão corporal gravíssima, uso de arma restrita ou desvio de dinheiro público dificilmente admitirão a prisão preventiva ou a manutenção de prisão em flagrante. Em todos esses casos, será cabível a conversão da prisão em uma das nove medidas cautelares que são inócuas e sem meios de fiscalização.

Entre as medidas, cito: comparecimento periódico no Fórum para justificar suas atividades; proibição de frequentar determinados lugares; afastamento de pessoas; proibição de se ausentar da comarca onde reside; recolhimento domiciliar durante a noite; suspensão de exercício de função pública; arbitramento de fiança; internamento em clínica de tratamento ou monitoramento eletrônico.

Quando a sociedade aperta o cerco exigindo do poder constituído vagas prisionais para os criminosos com o objetivo de combater esta mazela de insegurança, esta lei vem como um presente incrível para os infratores e criminosos.

Vamos, sim, cruzar nas ruas com quem assaltou sua casa com arma, com o ladrão que roubou seu carro, o criminoso que desviou milhões de reais dos cofres públicos. Talvez seja o preço da incompetência e a forma mais fácil de não construir presídios, porque não dá votos e as verbas... Bem, as verbas são para outras prioridades.

Além disso, a nova lei estendeu a fiança para crimes punidos com até quatro anos de prisão. O criminoso não passará mais uma noite na cadeia e sairá pagando a fiança arbitrada pelo delegado. Trata-se de um verdadeiro tiro no pé. Os que cumprem pena vão sair da prisão para um convívio harmonioso com a população.

Uma pergunta que não pode calar: a quem interessam estas benesses? O que fazem nossos parlamentares do Senado e da Câmara Federal que, literalmente, não enxergam o perigoso caminho que estamos tomando?

Será que neste continental país, repleto de bons e competentes cidadãos, ficaremos calados e anestesiados com este disparate? Por que fazem leis para beneficiar menos de 2% da população em detrimento da esmagadora maioria? Preparem-se! A Polícia Civil está de cabelos em pé. E a criminalidade vai aumentar sim, e rápido.

*Vice-presidente da ONG Brasil Sem Grades


30 de junho de 2011 | N° 16745
MATURIDADE EM FOCO


Palestras para mulheres no Moinhos

Saúde, qualidade de vida e moda para mulheres maduras são os temas do evento A Maturidade do Século XXI, em 5 de julho, no Moinhos Shopping. Seis profissionais estarão reunidos para tratar de sexualidade, insônia, feminilidade, moda, além de cuidados com a mama e a pele em mulheres maduras.

O encontro é promovido pelo blog Nos Passos da Maturidade (www.nospassosdamaturidade.com.br), idealizado pela também blogueira do ZH Moinhos Miréia Borges.

– Queremos mostrar para as mulheres maduras que existe vida após a maturidade. Muitas acham que devem só ficar em casa, que ficam feias, sentem dores. Mas é possível ter qualidade de vida – relata.

A primeira edição foi realizada em novembro do ano passado. A procura por dicas, orientações e comentários foi tão grande que o evento será realizado duas vezes ao ano, entrando no calendário oficial do shopping. A atividade é gratuita mas, como as vagas são limitadas (250 lugares), é necessário confirmar presença até o dia 4 pelo e-mail maduras@portoweb.com.br.

As palestras terão início às 19h30min. Os participantes são convidados a doar fraldas infantis ou geriátricas que serão entregues para a Clínica Esperança – que atende crianças portadoras do HIV – e para o Asilo Santa Teresinha.


30 de junho de 2011 | N° 16745
CLAUDIA TAJES


O poder do NÃO

Talvez não aconteça com todo mundo, mas comigo, é batata. Sou vítima frequente, quase diária, de um poder que engrandece, satisfaz e realiza quem o detém, poder esse outorgado a todo e qualquer funcionário que fique do lado de lá do balcão. O poder de dizer NÃO.

Se vou a um órgão público, por exemplo. Eis aí algo para se evitar ao máximo, mas todo cidadão é obrigado a passar por essa cruel experiência algumas vezes. Munida dos mais variados documentos, alguns que sequer foram pedidos, taxas pagas, livro na bolsa e paciência, tiro a senha (nunca tem menos de sessenta pessoas na frente) e já sei. Quando enfim for chamada, o/a encarregado/a vai examinar minha papelada apenas para dizer: NÃO pode, faltou o comprovante de sanidade mental. Senha 719!

Atendimentos telefônicos, daqueles em que é preciso digitar quinhentas opções para se chegar ao atendente. Quando a graça é alcançada, grande é a chance de se ouvir: infelizmente, o sistema está fora do ar e NÃO podemos fazer nada. Tente mais tarde.

Planos de saúde, caso clássico. Essa aconteceu na minha família. O plano autorizou o procedimento, mas errou a data, obrigando o usuário a ir novamente à sede e pegar outra senha e esperar, esperar e esperar, para saber que: NÃO é possível autorizar hoje, aguarde 48 horas. Mas quem errou foi o plano, o usuário argumenta. NÃO posso fazer nada. Próximo.

O antropologo Roberto DaMatta definiu assim a relação cliente/atendente: a humildade de quem chega contra a superioridade de quem está protegido pelo balcão da instituição. Se já é ruim para o cidadão da classe média, imagine-se para a população mais pobre, ignorada em razão de sua aparência e modo de apresentação. Ainda segundo DaMatta, o famoso jeitinho brasileiro teria sua origem aí: já que é tão difícil conseguir as coisas pelo caminho legal, por que não buscar formas alternativas? Triste.

Orelhas calejadas por tantos anos de NÃO, venho por meio desta agradecer a todos os funcionários de todas as instituições, as públicas e as privadas, que ficam felizes não por empatar, mas por ajudar a resolver a vida dos cidadãos. E agradeço também a um ex-chefe, que apontou como empecilho para eu não progredir na empresa o fato de não ser boa em dizer NÃO.

Quer saber? Prefiro assim.


30 de junho de 2011 | N° 16745
PAULO SANT’ANA


Dinheiro dos brasileiros

Leio como manchete que o empresário Abílio Diniz, proprietário do Pão de Açúcar, vai pegar de empréstimo R$ 4 bilhões do BNDES para adquirir o Carrefour.

Não entendo direito desse negócio, mas a mim parece imoralmente desolador que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, um banco público e oficial, vá destinar dinheiro do povo brasileiro para uma rede de supermercados comprar outra.

Onde é que está o “desenvolvimento social” nesta barganha?

Se fosse para fundar um supermercado, até que eu admitiria. Mas para comprar uma rede de supermercados que já existe, que é sólida, que portanto não vai entrar no mercado para “desenvolver”, me soa esta maracutaia a uma farra dinheirista com os recursos dos contribuintes brasileiros.

Mas será que o BNDES se presta para este tipo de negociata? É frustrante saber como se desenrolam no Brasil estes negócios fraudulentos.

Mas qual é o fim que dão ao suor dos brasileiros que se transforma em capital e é assim repartido como butim por empresas que se dedicam à pirataria capitalista?

É o fim da picada.

Tudo que o consumidor brasileiro deseja é a saudável concorrência entre o Pão de Açúcar e o Carrefour. Como é então que o BNDES, um banco público sob gerência governamental, entra num negócio que concretamente impede esta concorrência elogiável?

Para que o BNDES invista nessa transação, é necessário o interesse público.

Mas pode haver interesse público num negócio que impede que fabricantes de eletroeletrônicos, alimentos e bebidas percam o poder de barganha para vender seus produtos a diversas redes, concentrando-se esse negócio somente a um gigante do setor? Evidentemente que os consumidores terão acesso a esses produtos com encarecimento.

Mas pode o Estado incrementar, pelo BNDES, um negócio de varejo que vende salsichas e biscoitos?

Não teria o BNDES outros fins mais nobres para empregar o dinheiro dos brasileiros, utilizando-o em projetos sociais?

E não seria mais apropriado que o Pão de Açúcar se valesse de capital privado - e não do BNDES - para levar à frente esta suspeitíssima empreitada?

E não seria mais aceitável, ainda que talvez desaconselhável, que o BNDES usasse seu poder de fogo para aumentar a concorrência entre as redes supermercadistas, em vez de patrocinar a concentração?

É tão revoltante que atraiu a minha atenção, eu que sempre sou indiferente a esse tipo de assunto.

É o fim da picada.

Passando para outro assunto, mas não menos desagradável, quarta partida do Grêmio sem vitória, desta vez contra o Avaí, lanterna.

Exala-se desse desastroso episódio um aroma de segunda divisão.


30 de junho de 2011 | N° 16745
L. F. VERISSIMO


Gays

O mais notável nessa campanha por casamentos homossexuais não é o avanço dos movimentos gays e o ocaso de barreiras e preconceitos antigos, mas o prestígio do casamento. Com tantos casais heterossexuais dispensando o ritual matrimonial para viverem juntos, a insistência dos gays em se casarem como seus pais deveria aquecer o coração dos mais radicais dos bispos.

Eu sei que em muitos casos a oficialização do conúbio, se esta é a palavra, tem mais a ver com questões legais do que com romance, mas o que a maioria quer é o ritual. Quer as juras públicas de amor eterno e todo o simbolismo da cerimônia tradicional, mesmo sem véus e grinaldas.

Era de se esperar que quem escolheu um relacionamento sexual, digamos, anticonvencional, muitas vezes tendo que enfrentar a incompreensão ou a ira dos conservadores, quisesse distância do que é, afinal, o mais “careta” dos ritos sociais. Mas não. Querem o tradicional.

Este fenômeno deve ter a ver com outro de difícil compreensão. Ouvi dizer que as formaturas nas universidades brasileiras voltaram a ser paramentadas, com becas e tudo, não por insistência de pais tradicionalistas, mas dos próprios formandos, que, em vez da informalidade que se esperava deles num mundo cada vez mais prático e sem tempo para velhos costumes ou costumes de velhos, exigiram todas as formalidades.

No fim, as pessoas querem significado. Querem que o valor do que fazem seja enaltecido pela cerimônia, qualquer cerimônia.

Mesmo careta.

Seja como for, aposto que daqui a alguns anos, quando se puder fazer a estatística, menos gays, dos que estão se casando agora, terão se separado do que casais héteros. Se a instituição do casamento sobreviver aos tempos e aos modos, será em boa parte graças a eles e a elas.

Passado

(Da série “Poesia numa hora destas?!”)

Lembranças vagas.
Vultos sem precisão
no meio da cerração.
Uma praça, um possível coreto
e aquilo será um mastim,
ou a tuba do Serafim?
A mesma em que, num domingo,
entrou um gato desgarrado
e pôs-se a miar adoidado
no ritmo do dobrado?
Talvez com ouvidos afiados
ainda se possa ouvir os miados
como vozes abismais
repetindo “Nunca mais”.

quarta-feira, 29 de junho de 2011


ANTONIO PRATA

Jogando pela janela

Embora faça mais de uma década que porcos, bambis, peixes e gambás intimem-se à felação, não me acostumo

CURIOSOS SÃO os caminhos do engenho humano. Tome o caso do futebol e das janelas, por exemplo. Por mais de cem anos, os dois viveram isolados, sem que nenhum torcedor percebesse o potencial lúdico e ofensivo desta união.

Eis então que, em algum momento da década de 90 do século passado, a centelha da inventividade espocou nos neurônios de um boleiro, trazendo-lhe a brilhante ideia de escancarar as persianas, cravar as mãos na esquadria e dividir com o quarteirão suas fantasias mais íntimas: "Chuuuuuuupa porco!".

Estava criada, assim, uma nova forma de comunicação: o insulto-futebolístico-intercondominial.

Embora já faça mais de uma década que, pelas janelas do meu bairro, porcos, bambis, peixes e gambás intimem-se mutuamente à felação, ainda não consegui me acostumar com o fenômeno. Toda quarta e domingo, salto do sofá ao primeiro grito, deixando cair das mãos o livro ou o controle remoto, crente que está pegando fogo no prédio, que estão assaltando o apartamento de cima.

Fecho as janelas, aumento o volume, mas é difícil me concentrar com as imagens que cruzam o céu da cidade, dignas de um quadro de Bosch, de um dos "Caprichos de Goya", de uma versão hardcore da Arca de Noé, por Robert Crumb: homens com camisetas de seus times, as calças arriadas, recebendo fellatios de peixes, porcos, de gambás, do Bambi.

A relação entre o esporte bretão, a zoofilia e o sexo oral é um mistério a ser desvendado por psicólogos, cientistas sociais e semiólogos. A este modesto cronista cabe apenas levantar perguntas mais simples. Por exemplo: se desde o início da humanidade há janelas e discórdias, por que foi somente o futebol que deu às fenestras o atual status de arena?

Ou estarei errado, e nas noites estreladas da Grécia antiga ecoavam provocações como "chuuuuuupa, tebano frouxo!", "cala a boca, espartano maloqueiro!"? Terão as vozes se levantado entre os muros dos castelos, defendendo protestantes e católicos: "Vaaaaaai Luteroooo!", "Eô, eô, torquemada é um terror!"?

Acredito que não. Se a comunicação intercondominial já existisse no passado, teriam chegado até nós outros exemplos, para além das tranças de Rapunzel. Ao que parece, o fenômeno é recente e está só começando. Pelo que noto aqui em Perdizes, já não se restringe ao ludopédio.

Várias vezes por semana, alunos do Mackenzie urram, de forma nada polida, sua superioridade sobre os estudantes da PUC, ao que os filhos da PUC respondem, na mesma altura e baixeza; um tal de Arthur tem sido constantemente insultado, e há também meras manifestações de júbilo, encarnadas neste gritinho tão irritante que, desde o surgimento do Big Brother, disseminou-se como uma praga pelo país: "Uhu!".

Faz algumas semanas, li neste caderno que uns prédios já estão multando seus condôminos berrões. Acho bom. E iria além: em caso de reincidência, o linguarudo deveria perder o direito à janela, assim como um motorista inábil perde a habilitação. Acimentem-se as fenestras: o sujeito terá que viver para sempre num cubo sombrio, ouvindo o eco das próprias palavras e refletindo sobre seus obscuros significados.

antonioprata.folha@uol.com.br

DIOGO COSTA - ESPECIAL PARA A FOLHA

De que adianta ter empresas campeãs se os derrotados são os brasileiros?

Apoiar a fusão Carrefour-Pão de Açúcar pode vir a ser a mais nova missão do BNDES.

Enquanto burocratas e empresários discutem os detalhes de como proceder com a criação do "Carreçúcar", uma questão relacionada deveria preocupar analistas políticos e econômicos: por que o dinheiro público, coletado dos impostos, deve ser utilizado para financiar fusões de interesse privado?

Luciano Coutinho, presidente do BNDES, justifica as práticas do banco no modelo desenvolvimentista de planejamento econômico.

Em entrevista de 2009, Coutinho disse que "o Brasil precisa ter campeãs mundiais". A obsessão por "campeãs mundiais" pode fazer com que se perca a noção de que campeonato estamos disputando. De fato, o "Carreçúcar" pode se tornar uma empresa campeã.

Mas, quando pensamos no que é mais desejável para a sociedade, o título de campeão vale menos que a campanha. Em um regime de livre concorrência, ensina a velha teoria econômica, venceria a empresa que melhor atendesse as demandas dos consumidores.

Mas, no modelo brasileiro de capitalismo, a vitória de uma empresa não necessariamente corresponde a sua capacidade de satisfazer a sociedade. A justificativa é que o BNDES investe nos setores em que o país demonstra competitividade. Mas a competitividade de um país não se planeja -se descobre.

Há alguns anos, não se imaginava que a Índia se tornaria a grande exportadora de especialistas na tecnologia da informação. Também não se sabia que as Filipinas viriam a dominar o mercado mundial de circuitos integrados. Nem que o Chile se tornaria um grande exportador de salmão.

Só podemos saber de fato em que setores o Brasil é mais competitivo quando todos forem tratados igualmente e sem privilégios.

Há ainda um problema de incentivos. Diferentemente de um investidor privado, o BNDES não irá à falência se suas decisões se mostrem equivocadas. Quando uma empresa subsidiada pelo BNDES quebra, quem fica com a conta são os consumidores. É o socialismo invertido: o lucro é privatizado e os prejuízos são socializados.

A visão econômica por trás da fusão entre Carrefour e Pão de Açúcar não é nova. É apenas uma nova manifestação da velha ideologia desenvolvimentista. E a história do século 20 atesta o seu fracasso. De que adianta o Brasil ter empresas campeãs, quando os derrotados são os próprios brasileiros?

DIOGO COSTA é professor de economia e relações internacionais do Ibmec.

Eliane Cantenhede

E nós com isso?

Nós, os leigos, que fazemos compras em supermercados, pagamos a mais alta taxa de juros do planeta e morremos em impostos extorsivos, precisamos saber -- e entender-- o que afinal o BNDES pretende ao liberar R$ 4 bilhões para o empresário Abílio Diniz, do Pão de Açúcar, comprar o Carrefour.

Será que é para baratear os preços de verduras, frutas, arroz, feijão, carne, produtos de higiene, material de limpeza e eletrodomésticos, por exemplo?

Improvável, pois, com o Carrefour e o Pão de Açúcar juntos, não há concorrência. Você aí acha que eles vão ajustar seus preços pelo menor ou pelo maior? Dá um chute. Pelo óbvio, tudo deve ficar mais caro.

Será, então, que os fornecedores vão ter melhores chances de barganha para seus produtos?

Improvável, pois os dois gigantes, unidos, vão poder pintar e bordar, além de impor seus valores a seu bel prazer. De novo, questão de mercado e competição, ou de não competição.

Ah! Então é porque a fusão vai gerar empregos no país inteiro?

Improvável. Ao contrário, aliás. Quando houver uma loja do Carrefour ao lado de outra do Pão de Açúcar, é mais do que razoável imaginar que uma das duas vá fechar. E os empregados vão dançar --no olho da rua.

Enfim, essa operação toda precisa ficar devidamente clara, à luz do dia. Até porque o BNDES, que é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, deve explicações ao excelentíssimo público sobre como está empregando os recursos com vistas --veja bem-- ao desenvolvimento tanto econômico quanto social. A fusão se encaixa aí?

A graninha boa que o BNDES está despejando corresponde a 85% do capital para concretizar o negócio, e o super-gigante resultante dos dois gigantes terá nada mais nada menos que 32% do varejo nacional.

Agora é que nós, os leigos, vamos ver se o Cade é mesmo para valer. No mínimo, queremos respostas para entender tudo direitinho, certo? Até porque, no final, nós é que vamos pagar a conta.


29 de junho de 2011 | N° 16744
MARTHA MEDEIROS


Compostura

Uma das minhas fotos preferidas da infância mostra meu irmão e eu sentados em um degrau da casa da nossa avó. Eu deveria ter uns quatro anos de idade. Usava um vestidinho e estava sentada da forma mais moleca possível, de pernas abertas, sem perceber que a calcinha estava aparecendo. Certamente minha mãe não estava por perto, ou ela teria dito, como sempre dizia: “Fecha as pernas, menina, olha a compostura”.

A compostura era, para mim, um genérico do bicho-papão. Sempre à espreita. Se eu falava algum nome feio, olha a compostura. Se eu agia de forma mais folgada com algum idoso (qualquer um acima de 20 anos), olha a compostura. Se eu mastigasse o chiclete de boca aberta, olha a compostura. A danada da compostura me perseguiu a infância toda e, por causa dela, não tive escapatória, acabei virando uma moça educada.

No entanto, descobri com o passar dos anos que é possível ter compostura e ser espontânea ao mesmo tempo. Que compostura não é sinônimo de rigidez, e sim de adequação. Sempre acho estranho quando alguém defende a própria grossura argumentando que está sendo “ele mesmo”, como se ter uma postura elegante fosse falta de personalidade.

Lembrei disso outro dia, enquanto assistia na tevê ao Tiririca vestido de palhaço, fazendo campanha contra o nepotismo. A seu lado, dois personagens que representavam a mãe e o pai do deputado federal, eles também vestidos de palhaço. Tiririca, para deixar tudo bem explicado para a população, diz: “Pai, continue catando latinha. Mãe, continue lavando roupa pra fora. Não pode contratar parente” , enquanto ouvimos um forró de trilha sonora, dentro do clima de São João.

Propaganda eleitoral é sempre uma coisa muita chata, então Tiririca apostou na irreverência, sua marca registrada. E a intenção foi boa, corrige sua plataforma quando era candidato (“ajudar a todos, inclusive a minha família”). Compreende-se que precisa estar caracterizado para que seus eleitores o reconheçam, mas não consigo ser benevolente com essa papagaiada toda.

Nepotismo é assunto sério em qualquer lugar do mundo, e já que seus colegas parlamentares o escolheram para vir a público e usar a luta contra o nepotismo como bandeira para promover o partido, seria mais adequado fazê-lo com o traje que costuma usar em sessões do plenário, onde trabalha e recebe salário para garantir os interesses do povo que representa.

Ou com roupa casual, sem problema. Menos fantasiado. Por nada, não. Apenas por compostura. Para conferir um pouco de recato e decência a uma classe já tão desgastada como a política.

Tiririca não é mau sujeito, foi apenas “ele mesmo”. Uma criança mostrando a calcinha do país em rede nacional.

Ótima quarta-feira para você. aproveite


29 de junho de 2011 | N° 16744
DAVID COIMBRA


O frio e as mulheres de botas

Adoro mulheres de botas. Botas de salto alto, evidentemente. Essa é a vantagem do inverno. As mulheres usam botas de saltos altos e canos mais altos ainda, e os cabelos elas os deixam soltos, desabando-lhes costas abaixo como cascatas macias e cheirosas, e elas vestem calças justíssimas que lhes ressaltam as curvas e, às vezes, ainda que tapadas por todas aquelas roupas invernais, elas permitem que uma faixa de ventre liso surja quando o blusão curto se ergue para acompanhar um suspiro, um movimento mais largo de braço, um doce espreguiçar.

Ah, o inverno não é tão ruim assim.

Outra vantagem do inverno é que você pode esticar quatro fios de óleo no fundo de uma panela de ferro, não mais do que quatro fios de óleo, não passando de cinco, no máximo seis, jamais estendendo o limite para além de sete, ou, em último caso, oito, oito fios de óleo que serpenteiam no fundo negro da panela de ferro enquanto que, sob ela, arde o fogo azul da boca do fogão. Então, você espera que o óleo ferva num chiado e, durante a espera, toma uma cebola do tamanho do punho da Scarlett Johansson e, de posse de uma faca para exclusivo corte de cebola, a pica.

Pica a cebola, digo. E é importante que a faca sirva apenas e tão-somente para o corte da cebola, porque a cebola, além de ser o alimento preferido das baratas, além de ser ótima para regenerar tecidos, a cebola deixa facas cegas como um Homero. Assim, pique a cebola, que, depois de minimamente picada, será depositada com critério no chão quente da panela e lá ficará a crepitar.

Aí chegou a hora sagrada dos tomates. Sim, o valioso tomate, tão valioso que os italianos chamam de pomo d’oro, o fruto de ouro que veio da América para ser transformado, nas cozinhas da Velha Bota, em ingrediente essencial para cometer molhos densos. Seis tomates frescos como as manhãs de primavera e vermelhos como a metade de cima da bandeira do Inter, é o que você terá separado. Esses tomates também estarão picados, mais até do que a cebola, que, quando se apresentar translúcida, quase amarela, receberá a companhia deles. Os tomates.

Tomates e cebola bem misturados pela ação amorosa de uma colher de pau, é o que deve ser feito, ao passo que o calor do fogo haverá de ser rebaixado, e nesse instante o sabor dos temperos precisa ser acrescentado: uma pitada de pimentinha do reino preta, sempre preta, uma colher de sopa de mostarda, talvez duas, outras duas de ketchup, quem sabe três, muito molho inglês, e pronto. Basta aguardar pela reação física dos elementos mesclados e submetidos ao fogo brando. Não precisa sal, talvez haja de acrescentar um nada de água, e só.

Eis o melhor molho de espaguete que você pode preparar para uma mulher de botas de salto alto e canos mais altos ainda numa noite de frio enregelante. Depois de cozida e escorrida a massa e depositada numa travessa, besunte-a com manteiga sem sal, espalhe o molho sobre ela e, no topo desse monte oloroso, polvilhe queijo parmesão de preferência uruguaio, recém ralado com seu próprio ralador.

Agora você precisa de taças de fino cristal checo, um tinto levemente gelado e algum espírito para fazê-la rir, aquela linda mulher de botas de salto alto e cano mais alto ainda.

Sim, senhor, o inverno não é tão ruim assim.

A menos, é claro, que você tenha de assistir a um jogo desse time do Grêmio numa noite gelada de quarta-feira. Aí dá uma saudade do verão...

O Professor

Ao contrário do que se pensa, algumas pessoas são, sim, insubstituíveis. O lugar delas até pode ser preenchido, mas não da forma como elas preenchiam antes de se ir. Nunca mais haverá um Pelé ou um Garrincha. Nunca mais vi alguém com a técnica pura e líquida de Roberto Rivellino. Duvido que algum dia alguém faça no rádio esportivo o que fazem Lauro Quadros e o Professor Ruy Carlos Ostermann.

Agora o Professor deixou o Sala e reduzirá suas participações na jornada. Terá outras funções na empresa, também importantes. Para ele decerto que é bom. Para o ouvinte, nada mais será como antes. Ninguém tem a pontuação, a modulação, a categoria do Professor diante de um microfone. O Professor é um dos insubstituíveis.

Volta às origens

Como o Professor fará uma coluna especial aos domingos e às quartas, minha coluna passa ao que era quando começou: para as terças e os sábados.


29 de junho de 2011 | N° 16744
PAULO SANT’ANA


40 anos de rádio

Fui homenageado por estar completando 40 anos de atuação no programa Sala de Redação da Rádio Gaúcha.

A coluna By N9ve, publicada no Segundo Caderno de Zero Hora, retrata hoje com a mais rigorosa exatidão o que houve na festa dos 40 anos do Sala de Redação. Eis o que está registrando aquela coluna nesta edição: “O grande homenageado da noite foi Ruy Carlos Ostermann, na foto 1 ao lado de Paulo Sant’Ana.”

Foi mesmo o Ruy o grande homenageado da festa. Mas agora imaginem como me senti. O único entre todos os atuais debatedores do Sala de Redação que completava a mesma idade do programa, isto é, há 40 anos dando contribuição a este tradicional e mais longevo programa do rádio brasileiro, era eu.

E o grande homenageado da noite não era eu, segundo Zero Hora.

Imaginem como me senti numa noite em que se assinalavam os serviços prestados por todos que prestaram serviços ao programa!

Imaginem como me senti! E o pior e mais grave e mais sublime é que entendi.

Tinha de ser o Ruy o principal homenageado. Porque o Ruy estava naquela festa se despedindo do Sala de Redação.

E eu prossigo no Sala de Redação.

Então eu aprovo de que o Ruy tivesse sido o maior homenageado.

Porque a vida não é só a arte do encontro, é também a arte da despedida.

Por sinal, na festa, que durou 80 minutos, eu só tive um instante de brilhantismo. Foi quando o Cacalo, o Wianey, o Kenny, o Guerrinha e o Lauro discorriam sobre o fato de que o Sala de Redação não era ensaiado, todas as brigas que se sucederam entre nós nos debates eram verdadeiras.

Foi neste momento que matei a pau: “Dou meu testemunho que todas as centenas de brigas, algumas terríveis, entre nós, foram verdadeiras, não foram fingidas. Assim como dou meu testemunho que todas as necessárias reconciliações que houve entre nós foram falsas e fingidas. Todas fingidas.”

Lembramos na festa do Maurício Sirotsky e do Cândido Norberto, lembramos dos mortos que participaram, dos vivos que passaram pelo Sala, dos vivos que ainda participam do Sala, um espaço de rádio que tem pinta de eterno.

A mim soa nos ouvidos uma pergunta que muitos me fazem: qual o segredo do Sala de Redação?

A minha resposta é que o segredo do programa consiste em não ter segredos e que são parelhas as inteligências dos debatedores.

Se há alguma diferença entre eles é no talento, mas é pequena, quase imperceptível, só pode ser calculada se for contabilizada em 40 anos.


29 de junho de 2011 | N° 16744
JOSÉ PEDRO GOULART


Meia-noite e um pum

Não sei se é verdade, mas parece que até um arroto do Sinatra era afinado. Ré maior. E veja o caso do Woody Allen; esse filme dele, Meia-Noite em Paris, desculpem, é bem mal feitinho, relaxadinho; digamos, um punzinho. Mas, senhores, é um punzinho do Woody Allen. Devem haver safras de Chateau Petrus que não valem o que cobram, porém quem pode bebe mesmo assim: o sabor da lenda não tem preço.

Razão pela qual um filme do Woody Allen não tem preço. Esse é sobre as pessoas que vivem dizendo “que antigamente é que era bom” . É da natureza do ser humano imaginar esse tipo de coisa.

Ao enviar o protagonista numa viagem ao passado, Allen prevê um encontro com artistas célebres, aqueles que cruzaram pela Paris, nos famosos anos 20. Claro, sempre à meia-noite, quando esse tipo de magia se dá. Mas, surpresa, o pessoal daquela época especial também achava que “antes” é que era melhor, santa ironia.

Woody Allen está certo, exceto pelo fato de estar errado. (Embora não esteja, no fundo, como veremos – isso se você não me largar de mão antes.) Woody Allen está errado porque em muitas coisas (não todas) o passado de fato “era” melhor. Como eu sei disso? Ora, porque qualquer um que conheça o presente pode comparar, é só ter vivido em épocas diferentes.

O que não dá é para estabelecer comparações com futuro – a esse só podemos dedicar ilusão, essa sim, diferentemente da nostalgia, é matéria prima da felicidade. Aliás, o Woody Allen também acha isso. Demonstra na música que toca em seus filmes, no olhar saudoso com que olha através da câmera. Mas isso não impede que ele rode um filme por ano. As pessoas que realmente vivem só no passado não fazem nada.

E Woody Allen está certo quando indica que o inferno ou paraíso são portáteis. Isto é, vão com “a gente” onde quer que estejamos; carregados numa Louis Vuitton novinha ou levados por uma sacola de supermercado, pouco importa. A época, os lugares, os encontros, tudo é secundário perto da paixão quando somos capazes de senti-la. Ficar pensando que ela está, ou estaria, em algum outro lugar diferente do que estamos é que é fatal.

Allen vem dizendo isso há anos, com filmes mais ou menos afinados. A fonte parece inesgotável, embora, estou certo, ele sinta saudades de um mundo menos fugaz. O sujeito é um humorista romântico, quase um paradoxo.

Metade dos problemas da vida se resume no medo que todo mundo tem de ficar sozinho; a outra metade é realmente ficar sozinho. Talvez haja um único antídoto para isso, esteja certo, eu pelo menos estou, que o antídoto está contido nesse punzinho do Woody Allen.

terça-feira, 28 de junho de 2011



28 de junho de 2011 | N° 16743
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


As melhores lembranças

Há poucas coisas mais agradáveis do que uma festa de família, aí incluídos os amigos mais próximos. Foi o que aconteceu nos cinco anos bem celebrados de minha sobrinha Olívia. Uma aprazível comemoração reuniu, no apartamento amplo, misto de estúdio, da Avenida Independência, pessoas que tinham experiências comuns de vida e outras ligadas pelos laços duradouros e bonitos da amizade.

Criou-se um clima mágico de alegria, uma suave sintonia de sonhos e de realidade. Na hora de arte, que sempre ocorre nessas ocasiões, meu neto Santiago revelou-se um excelente pianista, no que foi coadjuvado pelo elenco de meninos e meninas, ótimos na interpretação das canções.

Atento, na plateia, fiquei pensando por que a vida não podia ser sempre assim: horas encantadoras de deslumbramento e aconchego, sem prazo nem tempo.

No outro dia, presenciei a batalha feroz de dois motoristas. Ao que parece, um havia barrado a ultrapassagem de outro numa avenida movimentada e agora ambos se digladiavam numa raivosa batalha verbal.

Não esperei para ver o fim do combate, mas refleti que os dois estavam possuídos de uma ira insana e desarrazoada.

É esta a cidade em que vivemos: para alguns, uma selva. Leio em Zero Hora sobre a impressionante quantidade de homicídios, o alarmante rol de latrocínios. Lamento ainda mais a saga das mães que têm de acorrentar seus filhos para que não vendam o casebre onde moram para, com o produto, comprar crack. Não se trata de um monopólio das classes menos privilegiadas. Gente diplomada é prisioneira da droga.

Mas, passados estes parágrafos sombrios, a que eu poderia acrescentar muitos outros, deixem-me voltar para a festa de Olívia. Gerou-se todo um ambiente de confraternização e entendimento. Surgiram, do fundo do baú das memórias, histórias aparentemente esquecidas, mas que reinventavam nossa trajetória como família, mais as contribuições dos amigos.

Foi quando eu me dei conta de que existir poderia ser um permanente aniversário, em que pessoas convocavam suas melhores lembranças.

Algum dia, Olívia será uma moça.

Só gostaria de que ela então recordasse um sábado bonito, em que todos nós lhe desejamos, no Parabéns a Você, toda a felicidade do mundo.

Ainda que com todo esse frio uma terça-feira gostosa para você.


28 de junho de 2011 | N° 16743
FABRÍCIO CARPINEJAR


SEXO e sexo

Sexo é tudo para o homem, na primeira colocação do ranking, seguido de futebol e carro. O quarto e o quinto lugares ainda estão vagos.

Sexo não é tudo para a mulher, situado no quinto lugar da lista, depois de casamento, amor, romance e paixão.

Sexo é envolvimento para o homem. É capaz de morar com uma mulher que faz sexo maravilhoso. Ele se apaixona pelo corpo para se apaixonar pela alma. Não desgrudará daquela que transa na primeira noite, as demais madrugadas são para confirmar que a estreia não foi uma alucinação. Admira quem é liberta de preconceitos, safada, exigente de posições fora do convencional.

A possibilidade de experimentar uma vida extraordinária na cama arrebata sua confiança. O macho partilha de três fantasias: converter uma lésbica, tirar uma prostituta da profissão e casar com uma ninfomaníaca.

Para a mulher, envolvimento depende de forte retranca: segurar a primeira noite. Pode ter sexo na primeira manhã ou na primeira tarde. Mas primeira noite, não. Não pode aparentar facilidade, senão ele dispensará o esforço da conquista e não lhe dará valor.

Sua metodologia é retardar o grande momento até que ele se renda ao compromisso sério. Três dias de encontros sem nada é o ideal. Caso completar uma semana, é matrimônio na certa. Talvez até o candidato ficar alucinado de tesão a ponto de não diferenciar o que é real do que é imaginário.

Existe um momento em que o parceiro, embriagado pelo próprio desejo, diz sim para qualquer pergunta. A fêmea acalenta três sonhos eróticos: que ele não ronque, não durma no sofá e não palite os dentes. Caso a trinca de modos aconteça, ela abrirá mão da fantasia com o dentista, o psiquiatra e o pediatra do filho.

O homem nunca reclama do casamento ao transar sete vezes por semana. Chia diante de uma média menor. A mulher reclama do marido se ele pensa em sexo o tempo todo.

O homem é o único mamífero que conta há quantos dias está sem transar. Pode perguntar agora ao seu parceiro: não duvido que não mencione as horas e os minutos. Ficar sem sexo é como uma prisão perpétua masculina. Uma contagem de confinamento. Logo depois que ele trepa, inicia de novo seu cronômetro. É um Sísifo dos travesseiros.

Mulher apenas contabiliza os dias de abstinência quando completa três meses. O trimestre é um sinal preocupante, a ameaça de encalhe. Falta de sexo é como gestação para a ala feminina, surge com uma pequena barriga.

Para o homem, o amor é prêmio de bom sexo.

Para a mulher, o sexo é brinde de amor verdadeiro.

Os dois estão sempre certos.


28 de junho de 2011 | N° 16743
CLÁUDIO MORENO


Homens e mulheres (9)

Um povo só consegue definir a si mesmo quando se compara com outros. Sem recorrer a modelos exteriores, fica difícil chegarmos ao distanciamento necessário para enxergar nossas próprias características.

A melhor maneira de responder à pergunta “como é o brasileiro” seria colocar-nos lado a lado com o português, o alemão, o italiano ou o argentino – não tanto para apontar as semelhanças, mas muito mais para realçar as diferenças, que sempre acrescentam traços mais nítidos ao retrato.

Para consolidar sua identidade como nação, os gregos também recorriam à comparação com os demais povos, mas adotavam uma posição inaceitável no mundo globalizado de hoje: eles simplesmente dividiam a humanidade em duas facções desiguais – de um lado, representando a verdadeira civilização, ficavam eles, superiores na língua, nos hábitos, nos costumes ou nos próprios deuses; do outro, os não-gregos, inferiores por definição, a quem chamavam desdenhosamente de “bárbaros”.

Quando autores gregos descreviam as atrocidades cometidas pelos persas, por exemplo, e criticavam sua forma de governo, não era tanto dos persas que falavam, mas de si mesmos: não somos assim, não agimos assim, nós temos ideais diferentes.

Heródoto, nosso primeiro historiador, que visita o Egito quatro séculos antes de Cristo, já adota uma atitude mais avançada. Em vez de condenar, ele procura entender os hábitos e costumes diferentes que observa: se o Egito tem um clima único no mundo conhecido, se o Nilo, seu rio sagrado, também difere dos rios normais (porque enche no verão e seca no inverno), é natural que o povo de lá também tenha costumes opostos aos do resto da humanidade.

A relação homem-mulher, então, parece o inverso da Grécia: a egípcia vai ao mercado e cuida dos negócios, enquanto o homem trabalha em casa, no tear; ele carrega peso na cabeça, enquanto ela apoia a carga nos ombros; ela urina de pé, ele urina sentado; ela possui um só manto, enquanto ele sempre tem dois. Nenhuma mulher pode ser sacerdotisa, seja de um deus ou de uma deusa; os homens é que se encarregam disso... E assim por diante.

O depoimento de Heródoto é valioso para nós. Os papéis estavam trocados no Egito? Não importa; importa que lá, como em toda a parte, o papel do homem não era igual ao da mulher. A humanidade está mesmo dividida em duas facções distintas, a masculina e a feminina, inconfundíveis, definidas por tudo aquilo em que uma difere da outra.

Quando homens e mulheres aprendem a compartilhar esse gosto pela estranheza recíproca, passam a se entreolhar com tolerância, curiosidade e admiração: não somos assim, não agimos assim, não pensamos assim. Nós temos ideais diferentes.


28 de junho de 2011 | N° 16743
PAULO SANT’ANA


O tombo da professora

Existem dois afiados punhais cravados no meu peito permanentemente: o sórdido tratamento de saúde que se dá aos doentes brasileiros e este time do Grêmio arrastado e impotente, sem atacantes.

Saibam os que realizaram essas duas obras defeituosas que me afligem torturantemente durante todos os instantes da minha vida.

Estava no Sala de Redação na sexta-feira quando perguntaram ao torcedor convidado onde ele trabalhava. E ele respondeu que era funcionário da Santa Casa.

E eu: “E como é que tu arrumaste vaga? Por convênio ou pelo SUS?”.

Eu às vezes fico pensando que, ao contrário do Hugo Chávez e do Fidel Castro, o Lula bolou um engenhoso método de manter-se no poder durante décadas: botou a dona Dilma em seu lugar, manobra os cordéis do governo à relativa distância. Quando terminar o mandato de Dilma, ele reassumirá.

Tem a vantagem de que ninguém o classifica como ditador, ele respeita as eleições e não excede em oito anos o seu mandato formal.

Tudo isso realizado com muito talento, fazendo desaparecer a oposição e mantendo durante este largo período a fidelidade do eleitorado nacional.

A professora ensinava os alunos do ensino fundamental. Quando ela se dirigia a sua mesa, um dos alunos, o mais traquinas, jogou no chão da sala uma barra de sabonete.

A professora pisou em cima e levou um largo tombo, subindo por inteiro, até a cabeça, a sua saia.

A professora se recompôs e perguntou: “Alfredinho, o que tu viste?

“Vi as suas pernas, professora”, foi a resposta.

“Saia da sala, está suspenso por cinco dias”, disse a professora.

A mestra prosseguiu em seu interrogatório: “E o que avistaste no meu tombo, Pedrinho?”.

Pedrinho disse: “Vi seus joelhos, professora”.

“Saia da aula, estás suspenso por 15 dias”, sentenciou a professora.

Foi a vez do Danielzinho, que disse que “vi as suas coxas, professora” e foi suspenso por 30 dias.

Voluntariamente, o aluno Vicentinho foi se retirando da sala, e a professora perguntou por quê. Resposta do Vicentinho: “Pelo que vi, professora, me considero expulso da escola.”

Assim sou eu, pelo que tenho visto de bandalheiras e corrupções na vida pública, ainda mais com o que vem por aí nas obras da Copa do Mundo, me considero expulso da escola.

Chegou a um ponto que vou para a frente da televisão com a certeza de que vou assistir a mais uma derrota do Grêmio.

Há muito tempo que previ este vergonhoso desastre.

segunda-feira, 27 de junho de 2011



Casa arrumada

Casa arrumada é assim:

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...

E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.

Carlos Drummond de Andrade


27 de junho de 2011 | N° 16742
DAVID COIMBRA - ESPECIAL


A homenagem do Grêmio ao Sala

Ahomenagem que prestamos hoje aos 40 anos do Sala de Redação, nós, os colunistas da Zero fardados de anos 70, camisas com cores berrantes, calças com bocas de sino, nossos dedos em V de paz e amor, nossos cabelos com caracóis, essa homenagem vem bem a calhar para os tempos em que vive o Grêmio.

O Grêmio voltou aos anos 70.

Sua diretoria, como quase todas as diretorias daquela época, não se contenta em ser apenas inoperante; é também iludida com uma grandeza que o clube não desfruta mais.

Seu técnico, como ocorreu com Foguinho, o grande Oswaldo Rolla, é um ídolo que está prestes a ter o currículo manchado pelo feio borrão do fracasso.

Seu time é um dos piores do Brasil, cheio de promessas que não se realizam e desculpas que não convencem. É um time que joga no ritmo dos anos 70, devagar, bocejando, encarando a derrota sem reclamar.

A derrota de ontem para o Botafogo foi uma derrota do time dos anos 70.

Aquele que supostamente é o melhor do grupo, Douglas, é, na verdade, o maior armador do Brasil: armador de contra-ataque. Douglas é um Alexandre Tubarão, o meia habilidoso e lento que, em 1976, entrou no time jurando que seria um maestro e saiu provando que era um coveiro.

Rafael Marques, o protegido de Renato, é um Beto Fuscão: sempre mostra desenvoltura no ataque, sempre mostra defeitos na defesa. Mas o pior da sua escalação não é o seu desempenho: é que tira da equipe uma afirmação, uma joia das categorias de base, Saimon, que havia arrumado a defesa e que agora perde a confiança adquirida em campo sentado nas sombras do banco de reservas.

Fernando é um Jerônimo, o pachorrento centromédio que em meados dos anos 70 parecia jogar com a mão nos bolsos do calção.

E o ataque, qualquer um do ataque, pode ser um Nenê, um Loivo, um Carlinhos. A escolher.

Para arrematar, as esperanças da direção recaem sobre André Lima e Leandro. É só olhar para eles e ver: lá estão Alcino e Zequinha, atacantes quase decisivos, quase goleadores, quase bons.

O Grêmio, para desespero do torcedor, também faz sua homenagem ao Sala de Redação.

Como se fosse há 40 anos

Falcão estava colocando a cabeça encaracolada para fora do time de juniores do Inter quando o Sala de Redação começou, em 1971.

Agora, no dia do aniversário de 40 anos do Sala, Falcão comemora aquele que talvez seja o seu melhor desempenho como técnico, justamente do Inter.

O 4 a 1 no Figueirense foi convincente. O Inter jogou como se fosse um time de Falcão. Do Falcão camisa 5, de passadas longas e queixo erguido. Do Falcão craque de bola.

Há 40 anos era aquele Falcão que começava.

Hoje, pode ser um recomeço do novo Falcão.


27 de junho de 2011 | N° 16742
PAULO SANT’ANA


40 anos, uma vida!

E assim vou levando a minha vida. Não é grande coisa, mas é a minha vida.

Não adianta a gente se comparar aos outros, tudo o que só interessa é a vida da gente.

Às vezes, eu me descontento com a minha vida. Pensando melhor sobre os grandes momentos da minha vida, até que sou ingrato ao queixar-me.

Tive filhos, tive mulheres, tive netos, tive a minha profissão, que acabei honrando e na qual fui reconhecido.

Fiz muito bons amigos, colhi poucos inimigos. Não foi uma vidinha, foi uma passagem impactante, melhor do que poderia esperar o meu talento.

O que importa é que é a minha vida. Deus nos joga na Terra e nos manda fazer a vida.

Então, a gente se encaixa num espaço próprio e vai lutando.

Minha vida, vejo agora, foi repleta de realizações e de frustrações.

Mas não há nada que não atingi que tivesse esperado atingir. E, das coisas que não esperava atingir, esta doença foi a menos esperada e a mais perversa.

É que eu, como todas as pessoas, não contava com este estado da vida que nos põe em clara desvantagem: a velhice.

Por ela, lamentamos que não fizemos os exercícios físicos que nos preparassem para o inverno da existência, martela a nossa consciência que tivéssemos escolhido o tabagismo como entretenimento e lenitivo da batalha da vida.

Então, a vida também é lugar para arrependimentos, para remorsos sobre as nossas escolhas, tínhamos que ter procedido assim em determinadas encruzilhadas, de outro jeito em outras ocasiões.

Bobagem, o que foi não mais será. E o que será nunca virá como já veio.

O importante é que estou vivo e me encho ainda de esperança. O importante é que nesta estreita faixa que me restou da existência ainda há lugar para a esperança. Tanto mais possível quanto se tornaram menores e menos ambiciosos meus sonhos.

À medida que o tempo foi passando, foram tão grandes as realizações e tão fortes as trombadas, que foram se reduzindo os desejos e hoje a esperança é menos tênue porque ainda pode satisfazer as agora raras aspirações.

É a minha vida. E eu só peço que consiga reunir forças para que hoje no início da noite eu possa estar de pé, vencendo a tontura permanente e os efeitos drásticos da radioterapia, para receber a homenagem que bondosamente me prepararam os que organizaram a festa dos 40 anos do Sala de Redação no Teatro Bourbon.

Eu tenho de reunir forças para estar lá. Porque a homenagem que me querem fazer é merecida.

O Sala de Redação é um fato importante das nossas vidas.

E é imprescindível homenagear e ser homenageado pela vida.


27 de junho de 2011 | N° 16742
KLEDIR RAMIL


Atchim

Minha mulher até hoje se assusta com meu espirro. É que sou um adepto do espirro criativo. Espirro criativo é uma performance artística áudio-coreográfica, que aproveita a oportunidade para transformar o que seria um simples ato reflexo do corpo humano em uma obra de arte.

Como sou um sujeito que convive com um processo crônico de sinusite alérgica que fecha meu nariz, costumo desfrutar ao máximo toda vez que a vida me proporciona o prazer e a liberdade de um espirro, um minifuracão que chega a atingir a espantosa velocidade de 150 km/h.

Aprendi desde criança que trancar espirro é um perigo, pode descer pro... pras partes de baixo. Quando vem aquela vontade, tem que deixar sair. E aproveitar a ocasião. Um espirro bem dado é quase um orgasmo. Comentei isso com um amigo e ele me retrucou: “Ou eu não sei espirrar direito, ou você nunca transou na vida”.

Acho um desperdício soltar apenas um atchim discreto quando se pode criar uma ópera, uma peça sinfônica. Ontem mesmo soltei um rasqutiamaniafructieblon!!! Em alto e bom som. Minha alma, em enorme euforia, saiu junto pelas fossas nasais.

Graças a Deus consegui agarrá-la a tempo e fazê-la retornar às suas funções de origem. Às vezes, aproveito para prestar alguma homenagem, lembrando celebridades como Rachmaninoff, Dostoiévski ou até mesmo para exorcizar alguns demônios, como Olarticoechea.

Em cada país, o espirro tem sua sonoridade típica. Na França se diz atchum, na Alemanha, hatschi e, nos Estados Unidos, atchoo. No Japão é hacushon, na China, penti e, na Tailândia, hutchew.

Ou seja, quando você for viajar, procure estudar a maneira correta de espirrar em língua estrangeira, senão você vai ficar sem as respostas simpáticas, do tipo “Saúde”, “Deus te crie... pro bem, porque pro mal já está criado”.

O nome do espirro é uma onomatopeia que tenta reproduzir o som que é emitido na hora do orgasmo, quer dizer, do ato reflexo. E, como toda onomatopeia, é passível de interpretações variadas. É aí que entra o espirro criativo. Todo mundo tem o direito de escolher o som que vai emitir. Você não precisa ficar condicionado a um simples atchim. Liberte sua alma. Invente seu próprio espirro. Personalize, customize. Enfim, divirta-se um pouco. Afinal, dizem que o mundo vai acabar em 2012.


27 de junho de 2011 | N° 16742
L. F. VERISSIMO


Comparações

O escritor argentino Manuel Puig era um notório cinéfilo e certa vez mandou para seu amigo cubano Guillermo Cabrera Infante uma sugestão de elenco para um filme imaginário sobre a literatura latino-americana em que atrizes famosas fariam os papéis principais.

Assim Julio Cortazar seria interpretado por Hedy Lamarr (“Bela, mas fria e remota”, segundo Puig), Carlos Fuentes por Ava Gardner (“Cercada de glamour, mas será boa atriz?”), García Márquez por Liz Taylor (“Rosto bonito, mas pernas muito curtas”) e Vargas Llosa por Esther Williams (“Disciplinada, mas que chatura”). Puig se incluía no filme, interpretado por Julie Christie, “uma grande atriz, que, desde que encontrou o homem certo (na época, Warren Beatty), deixou de atuar”.

Puig – que também era notoriamente gay – disse sobre Julie Christie e, presumivelmente, sobre si mesmo que sua sorte no amor causava inveja nas outras estrelas. Não se sabe quem era o Warren Beatty do argentino.

Jogos deste tipo são totalmente subjetivos e cada um pode fazer as comparações que quiser – se bem que comparar o Vargas Llosa com a Esther Williams me parece, por alguma razão, perfeito. Não que o peruano seja previsível e chato, pelo contrário. É que ele mergulha com estilo e nada de frente e de costas numa piscina que ninguém mais frequenta.

Me lembrei de outra lista de comparações, também inteiramente subjetiva, feita pelo Paulo Mendes Campos numa crônica intitulada “O Botafogo e eu”, aquela que termina assim: “E a insígnia do meu coração é também (literatura) uma estrela solitária”.

Na sua lista, o cronista diz que Michelangelo é Botafogo, Leonardo é Flamengo, Rafael é Fluminense, Stendhal é Botafogo, Balzac é Flamengo, Flaubert é Fluminense, Bach é Botafogo, Beethoven é Flamengo, Mozart é Fluminense. Segundo o Paulo, “Dostoievski é Botafogo, Tolstoi é Flamengo (na literatura russa não há Fluminense)”. Baudelaire é Fluminense, Verlaine é Flamengo, Rimbaud é Botafogo.

A lista termina assim: “Camões não é Vasco, é Flamengo, Garret é Fluminense, Fernando Pessoa é Botafogo. Sim, Machado de Assis é Fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!”.

domingo, 26 de junho de 2011


FERREIRA GULLAR

Razões que a razão desconhece

Afinal, quem é Cesare Battisti para merecer o amparo especial de nossas autoridades e instituições?

O CASO Cesare Battisti parece exigir reflexão, tal o impacto que causou a decisão do Supremo Tribunal Federal ao confirmar a do presidente Lula, negando-lhe a extradição.

Como se sabe, a extradição foi pedida pelo governo italiano, conforme os termos do tratado assinado pelos dois países. Battisti havia sido condenado, na Itália, à pena de prisão perpétua pelo assassinato de quatro pessoas.

De acordo com aquele tratado, a extradição pode ser negada em caso de crime político. Sucede que os homicídios por ele cometidos se caracterizavam como crimes comuns, o que foi reconhecido pelo STF, em 2009, autorizando sua extradição para a Itália. No entanto, nessa mesma ocasião, admitiu caber ao presidente da República consumar ou não a extradição.

Pois bem, Lula ficou com o processo até o último dia de seu governo para, só no derradeiro momento, negar a extradição do italiano. A todos nós surpreendeu o ato do presidente da República, contrariando uma decisão de alta corte de Justiça do país. Em que se funda tal arbítrio, se aquela corte reconheceu que os crimes cometidos justificavam o pedido de extradição?

A principal alegação do procurador-geral de Justiça foi que Battisti, se devolvido a seu país, estaria sujeito a tratamento arbitrário e vingativo, argumento destituído de lógica, uma vez que a Itália vive sob regime democrático. O mais incompreensível de tudo isso é que o STF, ao apreciar a decisão de Lula, contrária a seu julgamento anterior, voltou atrás, aceitou a permanência de Battisti no Brasil e mandou soltá-lo.

Acresce o fato de que, tendo entrado clandestinamente no Brasil portando documentos falsos, não pode ser aceito como visitante legal ou imigrante. Tampouco pode ser admitido como refugiado político, já que não foi nessa condição que entrou no país. Teria que ser expulso, mas, como esta é a terra do jeitinho, logo um jeito se deu para legalizar-lhe a situação à margem da lei.

Mas, afinal de contas, quem é de fato Cesare Battisti, para merecer o amparo especial de nossas autoridades e instituições? O que faz dele um personagem importante a ponto de levar o presidente da República e o STF a porem em risco nossas relações com um país cujo povo faz parte de nossa história?

Cesare Battisti, depois de militar no Partido Comunista Italiano, dele se afastou para ingressar em organizações que desejavam chegar ao poder pelas armas. Praticou atentados, assaltou cidadãos e terminou condenado a seis anos de prisão.

Na cadeia, conheceu o teórico de uma organização terrorista, chamada Proletários Armados pelo Comunismo. Isso no final da década de 1970, quando a Itália vivia sob regime democrático e quando qualquer cidadão poderia candidatar-se e disputar o poder pelo voto.

Mas aqueles "revolucionários" -que não tinham voto algum e, por isso, jamais chegariam ao poder democraticamente- queriam alcançá-lo pela força das armas. Como também não eram mais que um pequeno grupo de cretinos sectários, voltaram-se para os atentados e assaltos, a fim de roubar o dinheiro dos cidadãos e comprar armas.

Foi assim que Battisti matou quatro pessoas: uma porque a considerava fascista; outra que era chofer da penitenciária onde estivera preso, e as outras duas -um joalheiro e um açougueiro-, para lhes roubar dinheiro.
O resultado dessa série de atos criminosos e irresponsáveis foi a prisão de seus autores e o fim da tal organização. Battisti então fugiu para a França, de onde, ao ter sua extradição decretada, fugiu para o Brasil.

Foi então que escreveu um livro onde dizia renunciar à conquista do poder pela violência e passou a usar esse argumento para não pagar pelos crimes cometidos.

Mas de que vale essa renúncia feita depois que sua organização havia sido desmantelada pela repressão e ele mesmo já não podia viver em seu país? Iria fazer revolução armada na França ou no Brasil? E a vida das pessoas que ele matou, quem paga por ela? Com a palavra o ex-presidente Lula e os ministros do STF, que lhe garantiram a impunidade.

Resumo da ópera: o cara matou quatro pessoas inocentes, foi condenado à prisão perpétua, fugiu, entrou no Brasil ilegalmente mas, ainda assim, obteve o apoio de nossas autoridades para aqui viver livre e impune.

DANUZA LEÃO

Sejamos civilizados

Como saber com que tipo de pessoa você está lidando se ela não se altera, não se irrita

PARA QUE SERVE ser civilizado?

Para não sair agredindo as pessoas que pegam a vaga do seu carro, não furar a fila, não puxar os cabelos daquela que ousou olhar mais de três segundos para seu amado, não roubar, não sair por aí atacando as moças.

Ser civilizado é saber que existem leis para frear nossos impulsos mais primários, leis que quando são quebradas acabam em escândalo e cadeia, às vezes -pelo menos para quem é pobre.
Mas existe um problema, entre pessoas civilizadas: de tão civilizadas, elas acabam praticamente iguais. Afinal, a educação, os bons modos, o traquejo, a cortesia, as boas maneiras, nivelam as pessoas -por cima, mas nivelam.

Como saber com que tipo de pessoa você está lidando se, pelo menos aparentemente, ela não se altera, não se irrita, não se enerva e tem sempre uma paciência infinita para lidar com todo tipo de problema?
Quanto mais civilizadas, mais parecidos são todos.

Pense um pouco: se você frequentar sempre um mesmo grupo, vai perceber que os homens se vestem praticamente da mesma maneira, bebem o mesmo tipo de bebida, frequentam os mesmos restaurantes, passam férias nos mesmos lugares e falam sobre as mesmas coisas.

Mais: todos têm como sonho de consumo ter um apartamento em Nova York, se possível no mesmo bairro dos amigos, se possível no mesmo quarteirão, se possível no mesmo edifício. Todos têm a mesma opinião sobre as coisas mais fundamentais, praticam o mesmo tipo de esporte e, se têm uma casa de campo ou de praia, é sempre na mesma região -se não for no mesmo condomínio.

Os filhos frequentam as mesmas escolas, se casam entre eles e os casais praticam o adultério também entre eles.

Mesmo que não se conheçam, eles sempre têm do que falar, mesmo com os estrangeiros, pois esta casta, digamos assim, é internacional e está sempre ligada nas mesmas coisas. Quando falam de gastronomia, falam dos mesmos restaurantes; dos de São Paulo, Nova York ou Tóquio, eles sabem de tudo -tudo igual, claro.

Nada, em nenhum deles, é original; dificilmente num jantar alguém chegaria sem sapatos ou começaria a cantar, entre o primeiro e o segundo prato. Como são muito civilizados, bem educados e conhecem perfeitamente as regras de etiqueta -que como são sempre as mesmas, são muito monótonas-, nada acontece em suas vidas que seja especialmente trepidante.

E quando a mulher de um desses homens tão elegantes e civilizados desaparece com um guitarrista obscuro, ninguém consegue compreender como isso pode acontecer.

Essa padronização, no fundo, é uma grande muleta; se todos usam o mesmo Rolex, o mesmo terno Armani, a mesma agenda Hermès, ficam mais seguros e protegidos; o mundo vira uma espécie de clube, e eles adoram um clube -são todos sócios do mesmo.

E a gente fica pensando: se acontecesse uma catástrofe que varresse da Terra essas tais muletas e se encontrassem todos num jardim, nus, sem os sinais exteriores que diferenciam as classes, o que fariam esses homens? E as mulheres, sem seus "tailleurs" Chanel e suas bolsinhas Prada?

Com tanta civilização, as mulheres não conhecem os maridos, os filhos não conhecem os pais, ninguém sabe o que o outro pensa sobre a vida e as coisas do mundo; a padronização civilizatória é de tal ordem que acaba ninguém conhecendo ninguém, e pouquíssimos se conhecem a si próprios.

E um dia a gente morre.

danuza.leao@uol.com.br

CARLOS HEITOR CONY

Para o mundo admirar

RIO DE JANEIRO - Não deram muita atenção a uma advertência do deputado Romário sobre os preparativos da próxima Copa do Mundo, a ser sediada no Brasil em 2014, isso se a Fifa não mudar de ideia.
Em seu primeiro mandato, o baixinho começa a entender do negócio e observa a cena política e administrativa como antes observava os lances no gramado.

Ele disse o que todos estamos começando a pensar. Apesar das boas intenções, e do jeito como as coisas estão indo, ainda que façamos a Copa de 2014, ela não terá o brilho que nosso orgulho esportivo pretende.

Romário acredita na Copa, mas acha que ela será problemática em termos de infraestrutura. Afinal, ele é do ramo e sabe como as coisas se passam dentro e fora dos campos.

Para ter uma ideia, na metade do ano em que estamos, ainda se discute sobre as licitações sigilosas ou não que prepararão os estádios, as vias de acesso, os alojamentos, os transportes e outros quesitos de importância vital para a realização de um grande evento mundial.

Evidente que as grandes empreiteiras, com equipamentos e pessoal especializado, algumas até com know-how internacional, estão assanhadíssimas para participar do suntuoso banquete que, bem ou mal, o Brasil terá de promover. Entre elas, será uma briga de facão em quarto escuro. O que rolará de pressões e comissões não será mole.

Temos tradição quando o Estado se vê obrigado a preparar tão grandioso bolo.

Todos os ingredientes, o tamanho das obras e o pouco tempo disponível também serão fatores para fazer da Copa, senão um escândalo, mais um novo canal do Panamá, que deu o nome (Panamá) às grandes mutretas.

Independentemente dos resultados esportivos, o país terá de dar, como disse o compositor Ary Barroso em sua "Aquarela do Brasil", "para o mundo o que admirar".

LIANE CANTANHÊDE

Hackers pela ética

BRASÍLIA - Com CUT, UNE e MST fora de combate a partir de Lula, por conveniência ou oportunismo, entra em ação pela ética pública um tal de LulzSec para azucrinar e expor os Poderes da República. Tão instigante quanto preocupante.

Num espaço de horas, esses hackers atacaram sites da Presidência da República, Prefeitura de São Paulo, ministérios da Cultura e de Esportes, Petrobras, IBGE, Infraero, Receita, Senado e o Portal Brasil. Uns talvez nem tenham sido efetivamente atacados, mas já se sentiram previamente ameaçados.

Ao que tudo indica, a onda começou como uma brincadeira, mas ganhou espuma política com a ideia de protesto contra os desvios éticos que se multiplicam em diferentes esferas de poder e da federação, sem que um só "cara pintada" ponha os pés nas ruas, agora ocupadas por milhões em marchas para Jesus, legalização da maconha e Parada Gay, como neste domingo.

Ao ocupar esse vácuo de vigor e protesto político, os hackers provocam alertas, dúvidas e temores.

O alerta para os governos e demais Poderes é que a sociedade, de alguma forma, está de olho.

A dúvida no Congresso é como criminalizar esse tipo de ação virtual, tema dos parlamentares nesta semana, com votação na quarta.

E o temor da Polícia Federal e da Abin (o órgão de inteligência da Presidência) é que, de ameaças que causam só dor de cabeça, eles possam evoluir com o tempo para ataques ao sistema nervoso central.

De um lado, os Poderes se veem desconectados e vulneráveis. De outro, os ataques se multiplicam, e os autores, inebriados com a súbita força e fama, ganham a confiança e a desenvoltura de uma Lisbeth Salander ("Trilogia Millennium", do sueco Stieg Larsson).

Hipoteticamente e no limite: vai que um grupo desses se anima a daqui a alguns anos invadir o sistema de controle aéreo?

Já aconteceu de brincadeiras evoluírem para tragédias.

elianec@uol.com.br



CLÓVIS ROSSI

A vida começa aos 80

SÃO PAULO - É paradoxal, chocante até, que o mais completo elogio de Fernando Henrique Cardoso tenha saído do computador de uma adversária, a presidente Dilma Rousseff, e não de um prócer de seu partido, o PSDB.

Do PSDB, ao contrário, FHC ganhou o ostracismo. Em todas as campanhas eleitorais desde 2002 (inclusive), o partido escondeu o seu quadro que havia chegado mais longe, o homem que derrotara o mito Lula por duas vezes já no primeiro turno. Ao contrário do próprio Lula que precisou sempre do segundo turno até para vencer um peso leve como Geraldo Alckmin.

A carta de Dilma parece ter tido o dom de tirar FHC do armário do ostracismo. Confesso que, a princípio, fiz uma interpretação preconceituosa do episódio: achei que o ex-presidente estava sendo tratado como café com leite, como a gente dizia na infância, para designar os moleques pequenos que admitíamos na "pelada" da rua apenas por compaixão, mas cujos lances não eram registrados na súmula imaginária do jogo.

No caso de FHC, os 80 anos, em tese, fariam dele uma peça -respeitável- do museu da História, mas sem peso no jogo político.

Enganei-me: primeiro, ele ocupa o primeiro plano em uma discussão sobre tema essencial, o tratamento a dar ao problema das drogas, arriscando-se a tomar posição quando a grande maioria do mundo político prefere esconder-se.

Segundo, acaba de ser lançado candidato à Presidência em 2014, em coluna de Nelson Motta na quinta-feira, no "Estadão", mesmo sabendo o autor que FHC terá 84 anos na ocasião. Mais: o colunista ousa imaginar Lula como adversário de FHC.

Seria um duelo para fazer esquecer todos os inesquecíveis duelos do cinema de faroeste, entre os dois melhores presidentes do Brasil que me tocou viver, apesar das críticas duras que mereceram.

crossi@uol.com.br

sábado, 25 de junho de 2011



26 de junho de 2011 | N° 16741
MARTHA MEDEIROS


Os bons tempos

Tenho uma tendência a acreditar que tudo era mais intenso antes, tanto o amor quanto a arte e também a rebeldia

A vida era melhor antes ou é melhor hoje? Quem faz parte do time dos nostálgicos não pode perder Meia-Noite em Paris, em que Woody Allen faz não só uma homenagem à mais linda cidade do mundo como também uma reverência aos efervescentes anos 20, quando grandes autores, músicos e pintores foram protagonistas da Era de Ouro do cenário artístico europeu.

Tenho uma tendência a acreditar que tudo era mais intenso antes, tanto o amor, quanto a arte e também a rebeldia. Ao mesmo tempo, sei que houve um antes desse antes, igualmente reverenciado. O personagem Gil (Owen Wilson), homem do século 21, não se conforma com a sociedade vazia e consumista de hoje, da mesma forma que a personagem Adriana (Marion Cotillard), musa dos anos 20, sonha em voltar para a Belle Époque, que teve seu auge em 1890.

Por sua vez, os artistas da Belle Époque não se davam conta da revolução que estavam promovendo naquele final do século 19 e afirmavam que prefeririam ter vivido durante a Renascença: o passado sempre parece mais consistente do que o presente.

Não há dúvida de que só um olhar distanciado pode nos dar a verdadeira dimensão do encanto que há nos dias que correm. Quando comparamos hoje com ontem, suspiramos ao lembrar de uma época em que tudo parecia menos superficial, em que a violência e a poluição não faziam parte das discussões, em que a tecnologia não pasteurizava a arte e não havia a patrulha do politicamente correto.

Lembro que, há alguns meses, assisti ao documentário Uma Noite em 67 (que traz imagens do Festival da Canção da TV Record) com o mesmo olhar saudosista do personagem do filme de Allen: 40 anos atrás, parecíamos mais modernos do que somos agora.

Mas será mesmo?

Se até hoje reverenciamos Hemingway, Fitzgerald, Picasso, Gertrude Stein, Cole Porter, Dalí e Buñuel (entre muitos outros retratados no filme), é porque a genialidade deles ultrapassou o tempo, tornando-os eternos. É comum enaltecer a significância de pessoas que inauguraram um novo mundo através de seu olhar criativo e inquieto, mas esses homens e mulheres fascinantes existem e existirão em todas as épocas.

Os atuais anos 2000 não entrarão para a história como “anos dourados” ou “anos rebeldes”, e sim como uma eletrizante era virtual, os anos que revolucionaram os contatos globais, ou seja, de alguma forma atraente os dias de hoje também farão suspirar aqueles que estiverem lá adiante, vivendo uma realidade que ainda nem supomos como será.

A humanidade jamais perderá o hábito de olhar poeticamente para trás, seja a época que for: saudade também é reciclável.

A partir desta edição, Carla Pilla passa a ilustrar a coluna de Martha Medeiros


26 de junho de 2011 | N° 16741
VERISSIMO


A belga

Ele seria publicado na Bélgica, e a tradutora vinha ao Brasil para olhar dentro da sua alma de escritor

O escritor ficou surpreso quando soube que seu livro seria traduzido na Bélgica, e preocupadíssimo quando soube que a tradutora do livro iria procurá-lo. Como, procurá-lo? Ela viria ao Brasil, era isso? Quando? Por quê? A partir do dia em que se confirmou que a tradutora iria procurá-lo, o escritor não falou em outra coisa. Dizia aos amigos que não conseguia dormir, pensando na chegada da belga.

– O que essa mulher quer comigo?

E por que vir ao Brasil? Se tinha alguma dúvida sobre o livro, por que não usar o e-mail? Ela usara o e-mail para anunciar que viria. Por que não usar para dizer o que queria?

Aos poucos, o escritor foi ficando com raiva. Da tradutora belga, da editora belga, do seu próprio livro. Pra que traduzir aquilo? Era um romancezinho de nada. No Brasil ninguém lera. E ninguém conhecia a tal editora. Por que não o deixavam em paz?

Os amigos argumentavam que era uma boa, ser traduzido. Ele passaria a ser conhecido internacionalmente.

– Eu não quero ser conhecido! E que língua se falava na Bélgica, afinal? – Francês.

– Espera aí, francês é no sul. No norte é uma espécie de holandês.

Aquilo só aumentou a irritação do escritor. Ele não sabia nem em que língua seria traduzido. Francês ou uma espécie de holandês? Os e-mails da tradutora eram em inglês. Ela se referira ao livro como “your marvelous book”. O que seu livro tinha de maravilhoso?

Ela não o entendera, era isso. Ela o interpretara erradamente. Vira símbolos onde não havia símbolos. Mensagens cifradas onde não havia nenhuma. E vinha para descobrir o que ele “realmente” queria dizer com seu livro de nada.

Era isso. Olhos nos seus olhos.

A belga vinha para olhar dentro da sua alma. E ele não queria ninguém olhando dentro da sua alma.

O escritor pensou em mandar um e-mail dizendo: “Epidemia de malária. Estou de cama, sem poder receber ninguém. Não venha”. Mas desistiu. E resolveu apelar para o seu amigo Romualdo. O Romualdo era dentista e, ao contrário dele, tinha pinta de intelectual.

Usava cachecol no inverno e no verão. Fumava cachimbo. Receberia a belga como se fosse o escritor. Desnudaria a sua alma para a belga. E concordaria com todas as suas interpretações.

Romualdo topou. Só pediu que o escritor fizesse um rápido resumo do livro, que ele não lera. “Viu só?” disse o escritor. “Ninguém leu”. Romualdo e a belga encontraram-se durante uma semana. No apartamento dele, onde a belga estranhou a ausência de livros. ‘Não leio nada”, explicou Romualdo, no pouco inglês que o cachimbo deixava passar “para não ser mal influenciado”.

Quando voltou para casa, a belga mandou um e-mail dizendo que adquirira uma perspectiva completamente nova do livro depois de conversar com o autor, principalmente das alusões dentárias, que ela não pegara na primeira leitura.

Até hoje o Romualdo se recusa a contar ao escritor o que disse para a tradutora, e o escritor só saberá o resultado da conversa dos dois quando ler a tradução belga. Se não for numa espécie de holandês, claro.


26 de junho de 2011 | N° 16741
DAVID COIMBRA


A estátua que cantava no deserto

Todas as manhãs, durante dois séculos, um gigante de pedra com mil quilos de peso e 18 metros de altura cantava uma melodia triste no deserto do Egito. Parece lenda, mas é verdade: a grandiosa estátua, que ainda existe, entoava uma melodia ao alvorecer, na entrada da antiga cidade de Tebas.

O monumento fazia parte de uma dupla de esculturas chamadas “Colossos de Mêmnon”. Elas estão sentadas com majestade eterna no local onde foi plantada a velha capital egípcia, destruída mais tarde por Alexandre Magno.

Esse Mêmnon foi rei da velha Etiópia. No fim da Guerra de Troia, ele se aliou ao rei Príamo, que resistia na cidade sitiada pelos gregos. Tratava-se de um guerreiro poderoso, que fez seu nome no campo de batalha, mas pereceu “sob a destra do invicto Aquiles”, segundo um autor pós-homérico.

Para os gregos, a estátua de Mêmnon cantava em saudação a sua mãe, Aurora, que vinha beijá-lo com meiguice a cada nascer do sol. A música melancólica que saía diariamente do enorme bloco de pedra encantou o mundo antigo. Turistas de toda parte iam ver o monumento e nele inscreviam seus nomes. Um desses antepassados dos grafiteiros foi o imperador Adriano, que visitou o Egito por volta do ano 100 e voltou para Roma maravilhado com o milagre.

Tudo muito lindo. Mas a realidade não é exatamente assim.

Em primeiro lugar, os Colossos de Mêmnon não são de Mêmnon. Eram as estátuas do faraó Amenhotep III, que reinou no Egito no século 13 antes de Cristo. Uma das estátuas de fato “cantava”, mas não era uma saudação à Deusa Aurora. É que, em 27 a.C., um terremoto mutilou a escultura, escavando-lhe uma pequena fenda.

O orvalho da noite penetrava nesse espaço e, de manhã, o sol o aquecia e fazia a pedra se dilatar. A dilatação e a evaporação provocavam o som que os gregos diziam ser o “canto” do rei morto em homenagem à sua mãe divina.

No século 2, o imperador romano Séptimo Severo ordenou uma restauração das estátuas, a brecha aberta pelo terremoto foi fechada e o Colosso se calou para sempre.

Quebrou-se o encanto.

Eu, aqui, preferia que não tivessem consertado os Colossos, preferia que a pedra continuasse cantando e que os cientistas não tivessem explicado nada disso. Eu preferia a ilusão.

Certos mitos têm de ser preservados. Grêmio e Inter arriscaram-se quando convocaram dois de seus maiores mitos, Renato e Falcão, para a realidade chã de dirigir seus times no século 21. Renato permanece intocável à ação das misérias do dia a dia. É mais fácil que toda a direção do Grêmio saia maculada por algum revés do que ele, seja lá o que aconteça. Mas Falcão... Falcão, se seu time não reagir logo, corre o risco de virar um ídolo descaído.

A principal diferença entre Renato e Falcão não é a capacidade maior ou menor de um e outro, nem o time melhor ou pior que um e outro têm à disposição. Não. A principal diferença é a postura que eles adotaram ANTES de assumir o comando de seus times.

Durante 15 anos, Falcão abdicou da sua condição de ídolo. Durante 15 anos, Falcão empenhou-se para se mostrar isento, indiferente às paixões. Os comentários e as colunas de Falcão foram sempre cautelosos, quase anódinos, jamais emocionais. Falcão comentava o jogo do Grêmio com a mesma equidistância com que comentava o do Inter. Não houve nada parecido com um torcedor em Falcão, nesse tempo todo.

Renato, ao contrário, não perdia oportunidade de reafirmar seu amor pelo Grêmio e de repetir que sonhava um dia ser o treinador do clube.

Renato, até hoje, é o colosso de pedra que canta; Falcão emudeceu há muito tempo no coração sensível do torcedor.


26 de junho de 2011 | N° 16741
PAULO SANT’ANA


O direito à bicicleta

A praça é do povo como o céu é do condor.

O poeta poderia ter acrescentado que as ruas e avenidas são dos pedestres, dos carros, das motos e das bicicletas.

O direito de locomoção é fundamental na civilização.

E o que se nota em Porto Alegre? Nota-se que o direito de locomoção dos pedestres, dos carros e das motos são respeitados.

E que o direito de locomoção das bicicletas é violentamente desrespeitado.

Não há ciclovias, vias expressas para bicicletas em Porto Alegre.

Foram recentemente construídas em Porto Alegre a Terceira Perimetral e a duplicação da Avenida Juca Batista e não foram implementadas nelas, incrivelmente, ciclovias.

Desconhece-se aqui, irracionalmente, o direito das pessoas de andarem de bicicleta, de locomoverem-se por esse veículo de tradicional mobilidade em todo o mundo. Não há em Porto Alegre ciclovias de passeio. E o mais grave: não há aqui ciclovias de trabalho.

As pessoas têm direito a se locomover de bicicleta para passear, têm direito à bicicleta como meio esportivo e têm direito, principalmente, à bicicleta como meio de transporte para o trabalho formal e informal, ainda mais com as condições cada vez mais precárias do transporte coletivo por ônibus.

Em Porto Alegre, os ciclistas atuais, cerca de 15 mil, mais os ciclistas em potencial, cerca de 300 mil, são violentamente desrespeitados.

Isso mesmo, se tivéssemos ciclovias, poderíamos ter 300 mil ciclistas em nossa cidade, a transitar por cerca de 400 quilômetros privativos deles, segundo um estudo publicado pelo arquiteto Ricardo Corrêa em 2007. Nada disso, lamentavelmente, foi considerado por sucessivas administrações municipais em nossa cidade.

Isso precisa necessariamente ser modificado.

Chega a ser comovente ver os ciclistas se esgueirando, vindos da Restinga, pelos acostamentos da estrada. Comove também que na zona norte da cidade os ciclistas manobrem pelas ruas e avenidas, em direção ao Centro e outros arrabaldes, ou na direção inversa, sem nenhuma via ciclística expressa a ampará-los.

É imprescindível que se inicie a regeneração desse defeito desumano da cidade.

As pessoas, muitas delas dirigindo-se ao trabalho, têm o direito de usar a bicicleta como meio de transporte mais acessível e barato. Há alguns trajetos em que as pessoas chegam mais depressa a seus destinos por bicicleta do que se fossem usar transporte coletivo, em face dos atalhos.

E a tudo isso a cidade permanece cega e surda.

Até quando, prefeito Fortunati? Até quando, senhores vereadores? Até quando, cidade de Porto Alegre?

Sem bicicletas, ou reduzidas a número humilhante, Porto Alegre não se insere no mundo civilizatório.


Japonesa vira ídolo – mas ela não existe

Eguchi Aimi é a nova integrante da banda pop japonesa AKB48. É linda e apareceu recentemente num comercial de bala, junto com as companheiras do grupo.

É claramente a mais bonita e a que mais tem destaque na propaganda. No último domingo os fãs da banda ficaram chocados com uma notícia: Eguchi não existe.

Pelo menos não individualmente. Ela é a mistura das feições das outras integrantes da AKB48.

As moças foram mixadas no mundo digital, dando origem à mais perfeita delas. Tem gente chorando no Japão até agora: em poucos dias, a cantora irreal arrebatou corações de todo o país, virou fenômeno.

Veja o vídeo do comercial. Eguchi é a que fica ao centro.

TONI SCIARRETTA DE SÃO PAULO

Casino "quebra sigilo" do Carrefour

Câmara de arbitragem poderá ter acesso a e-mails trocados entre grupo rival francês e empresário Abilio Diniz

Objetivo é evitar sumiço de provas que mostrem conversas entre Pão de Açúcar e Carrefour; Abilio não se pronuncia

O grupo francês Casino conseguiu obter na Justiça francesa o acesso aos e-mails do rival Carrefour, trocados com o empresário Abilio Diniz, presidente do conselho do Pão de Açúcar.

O objetivo da "quebra de sigilo" do Carrefour é comprovar a existência de negociações entre as duas partes para possível fusão no Brasil.

Segundo o Casino, Abilio violou acordo de acionistas, fechado em 2006, ao sondar o rival Carrefour, também francês, para o negócio sem seu conhecimento. O Casino divide o comando da varejista brasileira com Abilio.

A Justiça teve acesso a 150 documentos do Carrefour, a maioria e-mails de executivos. Desse total, 22 eram correspondências com Abilio e com executivos da Estáter, consultoria contratada pelo empresário brasileiro para estudar a fusão, e estariam ligadas ao caso.

Procurados, Carrefour, Estáter, Pão de Açúcar e Abilio Diniz não quiseram falar sobre o assunto.

"QUEIMA DE ARQUIVO"

A Justiça francesa permite o sequestro de documentos importantes que possam comprovar a eventual violação de acordos comerciais ou societários privados.

O objetivo é impedir a "queima de arquivo" e o sumiço de provas processuais.

O Casino não terá acesso ao conteúdo dos e-mails apreendidos pela Justiça, que ficarão à disposição da câmara de arbitragem contratada para decidir sobre a disputa societária.

A câmara tem três membros votantes -um indicado pelo Casino, outro por Abilio e um terceiro definido em comum acordo.

ACORDO

O grupo francês sustenta que o acordo de acionistas impede que Abilio procure o Carrefour -ou qualquer outra empresa- para eventuais negociações sem a sua participação.

Já o empresário brasileiro argumenta que, juridicamente, o acordo de acionistas não fala sobre a prospecção de negócios, tarefa entendida como de responsabilidade do presidente do conselho. Também alega que o negócio seria, mais tarde, levado ao Casino, caso se mostrasse viável.

O Casino teme que a aproximação do empresário brasileiro com o Carrefour seja uma tentativa de trocar de sócio, um ano antes de Abilio ceder o comando da varejista ao grupo francês, conforme previsto em acordo de acionistas.

Em 2006, Abilio vendeu o controle da varejista ao Casino, que passou a ter o direito de exercer a troca no comando a partir de junho de 2012, pagando simbolicamente R$ 1 por uma ação.

Na semana passada, o Casino aumentou sua participação no Pão de Açúcar em 3,3%, passando a ter 37%.

Ruth de Aquino

A ousadia do moleque

Lindoooo. Mlk, arrebentaaaa. Na linguagem dos fãs no Twitter, estamos falando do “muleke” Neymar. O moicano de 19 anos que bordou nas chuteiras seu lema: ousadia num pé, alegria no outro. Com seus dribles de gênio e saltos de bailarino, esse menino de Mogi das Cruzes libertou no campo o orgulho brasileiro, contra os perdidos uruguaios.

“Tu, em campo, parecias tantos, e, no entanto, que encanto! Eras um só.” Os versos são de Armando Nogueira, dedicados a Nilton Santos. Vale roubar a rima nesta semana de poesia, porque Neymar também tem Santos no sobrenome.

Neymar é “da Silva Santos” e por isso levará o nome do clube de batismo para onde for, na certidão e no passaporte. Mesmo quando for sequestrado pelos bárbaros do Norte. É Neymar da Silva Santos Júnior, mas o chamam de rei da América e do mundo. “E as palavras, eu que vivo delas, onde estão?”, perguntou Armando Nogueira ao descrever o transe da multidão em torno de Tostão, no fim da Copa de 1970.

Onde estão as palavras para descrever a saudade antecipada desse garoto que reinventa o chute, desvia o trajeto lógico da bola e faz um gol tão seco e desconcertante que o goleiro do Peñarol se pergunta se seu reflexo falhou? Porque o Sosa ainda esbarrou na bola. Mas ela serpenteou com veneno divino para o canto do gol até beijar a rede por dentro.

“Estando alegre, as coisas acontecem naturalmente. Ainda mais sendo ousado, partindo para cima do adversário. Foi isso o que o nosso time fez.” Neymar disse isso em abril, quando o Santos venceu o São Paulo. Naquele jogo, não fez gols, mas ajudou Elano e Ganso a marcar. “O entrosamento é tudo. Só de olhar, já sabia onde o Ganso estava.” Agora, na final da Libertadores, no Pacaembu, os amigos deram o troco. Ganso recebeu a bola de Arouca e devolveu de letra.

O volante Arouca esticou para Neymar à esquerda. O camisa 11 tinha tantas opções na cartilha dos treinadores. Poderia avançar mais em direção ao gol. Ou enfeitar. Mas, naquela fração de segundo em que o craque não pensa, só mira, ele surpreendeu a Muricy e a todos com o chute rasteiro, preciso e rápido.
Com dribles de gênio e saltos de bailarino, Neymar deu um show no campo. Dá para ele continuar como é?

Quase fez mais um, no finalzinho, aos 45, mas uma trave caprichosa tirou dele o título de artilheiro da Libertadores. Deu show para as câmeras e a torcida. Corria meio parabólico, ria, espichava os cabelos. Sem camisa, abaixou o calção e quase tirou a cueca junto. O corpo é esguio, 64 quilos em 1,74 metro, ainda não foi bombado pelo futebol europeu para aguentar o tranco de zagueiros altos.

E Neymar se ajoelhou. Chorou aos soluços como só menino chora. Para ser beijado, consolado, mimado pelos adultos. Viajou no dia seguinte com estilo pop. Blazer, boné, calça justinha, brincos em profusão. “A cabeça ainda está um pouco confusa, mas é só felicidade. Já troquei o chip e agora o pensamento é só na Seleção.”

As chuteiras de Neymar não são da humildade. Mas da petulância que deixa irados os adversários com a ingrata missão de marcar seus passos no gramado. Ele foi o atleta que mais driblou e mais sofreu faltas na Libertadores.

Ah, Neymar. Não dá para pedir que você continue como é. Podemos evitar o exílio precoce? Os urubus milionários que falam estrangeiro abriram as portas para você. Os galácticos espanhóis pagam sua multa de € 45 milhões e muito mais. Mas a gente quer que você e Ganso derrotem o Barça de Messi & Cia. no Mundial dos Clubes em dezembro.

A gente quer ver você por aqui até a próxima Copa. Não dá para esperar que você se comporte como Nilton Santos, que vestiu por 16 anos a camisa do Botafogo e foi eleito em 1998 para a Seleção do século por jornalistas do mundo inteiro. O mundo é outro.

Mas dá para esperar que você não seja vaiado por se fazer de morto no campo? Que você não inche seus músculos naturais, não engorde com bebida, não se renda ao apelo do cai-cai, não fique acomodado nem marrento com a fama, não vire escravo das baladas e boladas – e não se esqueça da ousadia e alegria? É pedir muito a um moleque que vai ser pai antes dos 20 anos e tem o mundo a seus pés?


25 de junho de 2011 | N° 16740
NILSON SOUZA


Incidente em São Paulo

Pois não é que aconteceu esta semana, na capital paulista, algo muito parecido com o que Erico Verissimo imaginou para o enredo de seu último romance, o célebre Incidente em Antares. Uma greve dos serviços funerários retardou ou impediu o sepultamento de várias pessoas, causando transtornos e sofrimentos de toda ordem para os familiares dos mortos. São Paulo tem 22 cemitérios públicos, que realizam em conjunto cerca de 300 sepultamentos por dia.

Os jornais registraram alguns episódios verdadeiramente chocantes, de pessoas velando parentes em casa ou tentando removê-los em carros particulares, o que é proibido por lei. A greve em serviços essenciais também é, mas quem vai convencer os grevistas, que invariavelmente consideram suas causas mais importantes do que os direitos dos demais cidadãos? Triste, muito triste – ao contrário do livro, que é extremamente divertido.

Os mortos de Erico, insepultos devido a uma paralisação dos coveiros, ficam indignados com a desconsideração dos vivos e aproveitam-se da condição de intocáveis para fazer justiça. Saem pela cidade a atazanar a vida de parentes, amigos e autoridades, denunciando safadezas e mentiras. Como já passaram dessa para melhor, sentem-se livres das convenções sociais para dizer verdades, para aterrorizar os maus e para promover o julgamento de uma sociedade hipócrita.

Erico, pela boca ferina dos seus cadáveres, não leva ninguém para compadre: bate nos políticos à esquerda e à direita, espeta os poderosos, alfineta a imprensa, ironiza os intelectuais e atinge com maior contundência os falsos moralistas. Só poupa os humildes.

Entre os mortos que ocupam o coreto principal da cidade, exigindo o próprio sepultamento, há um bêbado, uma prostituta, um pianista suicida, um “subversivo” torturado pelo delegado e um anarquista. Todos esses, mesmo na condição cadavérica, encontram afetividade por parte de parentes e amigos. Já os poderosos – a matriarca da família mais nobre da localidade e o advogado falcatrua – só presenciam dissabores na sua breve incursão de mortos-vivos. No conjunto, porém, os insepultos dão uma inesquecível lição de integridade e justiça aos cidadãos da cidade inventada pelo escritor gaúcho.

Quando finalmente vão para seus túmulos, a comunidade se refaz do susto, desenvolve um plano para acobertar o fenômeno e retoma seus vícios rotineiros. Qualquer semelhança com o episódio paulista talvez não seja mera coincidência. Finda a greve, tende a arrefecer também a investigação de irregularidades nos serviços funerários, entre as quais a ação de papa-defuntos nas portas de hospitais e no IML, a indicação de serviços particulares por funcionários públicos mediante comissão e o superfaturamento de obras.

Antares não é difícil de localizar neste país.


25 de junho de 2011 | N° 16740
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


Truco, Pitôco, Rabão

O truco é o mais tradicional jogo de cartas do gaúcho brasileiro e do “gaucho” castelhano.

Existe o truco-de-amostra e o truco-cego, que por não ter amostra é muitas vezes chamado de “pitôco” ou “rabão”, demonstrando que não tem rabo...

Em Porto Alegre funciona desde 14 de junho de 1983 o Clube de Truco Pitôco, reunindo Mestres da estatura de Aristheu Penalvo Filho e Nei Machado.

Nei, que é um excelente poeta, escreveu estes versos, que tem vocação de canção:

Sou do Pitôco,
Eu sou diferente,
A gente não sente
E segue jogando
Perdendo ou ganhando
Que nem acredito.
Aprendendo as manhas,
Realizando façanhas.
- Não perco no grito.

“Venia” Maria,
Com sua picardia
Sobre o Riachuelo.
São do mesmo pelo
As cartas da mão.
Presta bem sentido
- É flor, atrevido!
Nunca fui chambão.

Sou do Pitôco,
No jogo sou forte,
Um dia de sorte
Outro de mormaço
E até me faço
Passar por maluco,
Nunca dou refresco:
É laranja ou pesco,
Envido, seu truco!

Sou do Pitôco,
Este é o meu jogo
É chispa de fogo
Que mexe com a gente
E empurra prá frente
Do jeito que vem.
E vai-se orelhando,
Ansioso, peleando
Com aquilo que tem.

Sou do Pitôco,
A vida é assim:
Quando chegar o fim,
Daqui do Pitôco
Levarmos um troco
Dentro do chapéu,
Queremos os parceiros
Que foram pioneiros,
Num truco no céu!