sexta-feira, 30 de abril de 2010


Jaime Cimenti

Nova Iorque, absoluta

No ensaio clássico de 1948, Aqui está Nova York, o jornalista E.B. White, um dos grandes do século XX, e um dos pilares da lendária The New Yorker, escreveu que uma simples revoada de aviões poderia acabar rapidamente com a ilha da fantasia e que N.Y. concede a dádiva da solidão e da privacidade a todos que aspirem a prêmios tão inusitados. A deliciosa evocação do espírito da cidade segue viva, mais de sessenta anos depois.

Depois do atentado de 11 de Setembro, a cidade, seus habitantes e visitantes estão ainda mais sensíveis, mas a Big Apple segue sendo o centro do mundo ou, ao menos, um de seus dois ou três locais mais importantes, ao lado de Paris e Londres, para citar só dois. Fala-se em 30 ou 40 milhões de turistas por ano e US$ 30 bilhões ou US$ 40 bilhões através deles. Nova Iorque é superlativa.

Não tem prá ninguém: Picasso e Tim Burton no MoMa, saxofonistas solitários e anônimos nas esquinas, aluguéis de espaços para anúncios eletrônicos na Times Square por US$ 300 mil dólares por mês, JK no prédio do Hotel Plaza por US$ 1,5 milhão, seis camisetas por US$ 10 em lojas ou camelôs, comida no Macy´s por R$ 18,00 o quilo, preservativos e pastilhas em homenagem a Obama, pessoas de todos os mundos na Quinta Avenida, almoço na Trump Tower por R$ 40,00, vista deslumbrante do 65° andar do Rockfeller Center, Broadway com milhares de pessoas parecendo um chat de internet ao vivo, táxi com telas digitais e GPS e muito, muito mais.

“Onde estão as casas?”, pergunta uma menina. “Estão no 55°, 26° ou 10° andar”, responde o guia turístico. Nova Iorque, eterna, absoluta, todo mundo junto e sozinho, navegando de graça nos computadores da loja da Apple na Quinta. Todo mundo lá, querendo o melhor, comendo o sanduíche de pastrami do Woody Allen no Carnegie Dely.

Duas fatias de pão, mais ou menos meio quilo de pastrami, para duas ou três pessoas, preço razoável. Um sem-teto olha para mim, diz que sou parecido com o advogado dele, que tomou seu dinheiro e me pede algum.

Um loiro alto, saradão, só de cuecas, botas e chapéu de cowboy, brinca com um violão na Times Square e tira fotos com japonesas e outras. Dizem que fatura US$ 20 mil por mês.

Na Parade do domingo de Páscoa estão velhos, moços, crianças, roupas e chapéus novos e velhos, seres humanos de todos os tipos, democrática e nova-iorquinamente no meio da Quinta Avenida, revelando a eternidade e a diversidade da cidade que jamais vai descansar para sempre.

TWITTERCÍDIO

Bonner se despede dos “sobrinhos”

Após se tornar uma das figuras mais populares do Twitter, o jornalista anunciou a saída do microblog

Uma das personalidades mais atuantes do Twitter, o jornalista William Bonner anunciou ontem que deixará de usar o microblog que se tornou febre no mundo inteiro. Em uma sequência de mensagens de 140 caracteres cada – o limite de texto da ferramenta –, o apresentador do Jornal Nacional justificou a saída por falta de tempo e surpreendeu seus “sobrinhos”, como ele chamava seus 515 mil seguidores.

Nos textos postados no início da noite, Bonner disse estar de cama, “com bolsa de água quente nas costas e dores terríveis”, e atribuiu a culpa por seu estado de saúde ao descaso com os exercícios físicos, provocado pela demanda gerada pelo Twitter. Por essa razão, foi substituído ontem na bancada do Jornal Nacional pelo apresentador Chico Pinheiro.

– E daí que tenho que abrir mão de alguma coisa. Não será da minha família, não será do meu trabalho. Sobrou o tempo do Twitter...

Em poucos segundos, uma simples busca no site por @realwbonner (o nome de seu perfil no Twitter) revelava a intensa repercussão que a saída de um dos usuários mais assíduos e influentes da ferramenta provocava: em menos de cinco minutos, mais de 2 mil menções ao apresentador foram feitas por usuários brasileiros. Uma delas da cantora Ivete Sangalo, que usa o Twitter para se comunicar com fãs e divulgar seu trabalho.

Diante das inúmeras mensagens, Bonner respondeu:

– Fechou-se um ciclo fantástico para mim. E muito divertido. O meu primeiro tweet, em junho do ano passado, explica o meu último, hoje (ontem) à tarde. E o ano cheio que temos pela frente vai exigir ainda mais de mim, profissionalmente. Achei que era hora.

Apresentador do JN recebeu o Oscar do Twitter este ano

O jornalista é um dos usuários brasileiros mais influentes do Twitter e contabilizava, até as 21h30min de ontem, mais de 515 mil seguidores – o apresentador Luciano Huck, um dos mais populares no microblog, tem quase 2 milhões de seguidores.

Tanta popularidade rendeu até um prêmio. Disputando com 700 profissionais de todo o mundo, ele recebeu o Shorty Awards, o Oscar do Twitter, na categoria jornalista, pelo voto popular.

Durante os quase 10 meses que utilizou a ferramenta, ele criou um atrativo que lhe rendeu um bom aumento no número de fãs. Ele pedia aos seguidores, diversas vezes, que escolhessem a gravata a ser usada na bancada do Jornal Nacional.

O jornalista promovia a chamada “interativa fashion”, em que fotografava três tipos de gravatas, postava em sua página pessoal e aguardava a decisão do público.Seu último texto foi postado após as 20h30min:

– Estão todos guardados no meu chip reservado a experiências inesquecivelmente ricas e prazerosas. Inté, tropa! Tenhamos todos BOAS NOITES.

priscila.montadon@zerohora.com.br


30 de abril de 2010 | N° 16321
PAULO SANT’ANA


A ideia da morte

Intriga-me a morte. Será possível que isto tudo acabe?

É possível não, é certo que isto tudo acabará para nós.

Dizem que o único ser vivo que tem certeza da morte é o homem, daí que ele mergulhe no tédio e seja tão inquieto.

Um dia haverá em que a morte nos chamará.

Para que alguém morra, basta que nasça, a vida já começa com o anúncio da morte.

Então, o homem passa fingindo que está vivendo. Em realidade, ele está sendo alvo da única ameaça que se cumpre inexoravelmente: a morte.

Ela é certa, tão certa como o sol nascerá amanhã, depois virá a noite, no dia seguinte será de novo sucedida novamente por outro sol.

O homem teme e evita a morte incansavelmente.

Será que o homem teme a morte somente porque ela significa o fim?

Ou o homem teme a morte porque não sabe o que acontecerá consigo logo depois da morte?

Está bem, o homem está vivendo, não cogita da morte, apenas cisma com ela à distância.

Mas é muito difícil entender que um dia fatalmente a morte virá.

E tudo o que se fez, tudo o que se realizou, filhos, mulher, netos, carreira, tudo também morrerá. Porque em realidade, quando uma pessoa morre, tudo em seu redor morreu para ela. É o fim de tudo e de todos. Que encrenca! A maior de todas as encrencas.

Existe um fascínio pela morte: é que ninguém sabe quando morrerá. Se houvesse um prazo delimitado, marcado, para morrer, imagino em que terror se transformaria a vida.

O homem sabe que vai morrer, ele só não sabe é quando vai morrer. Por isso, muitas vezes, ele disfarça, faz de conta que nunca vai morrer, tenta driblar a morte com a indiferença.

Mas como ficar indiferente a um ato que vai terminar com tudo?

Como vai se ignorar que algum dia todos os tijolos que cimentamos na vida ruirão por terra pela morte?

Ali, por exemplo, está um velho, ao meu lado, na minha frente. Descubro só agora por que ele não sorri, por que vive engolfado pela tristeza. Tem bom salário, tem boa família, leva uma vida prazerosa.

E, no entanto, não sorri. Está na cara que não sorri porque sabe que vai morrer, que está diminuindo o prazo para sua morte, todos os dias diminui o prazo.

Em realidade, o homem está condenado à morte. Existe para ele, em última análise, uma pena de morte.

E vai ser executado. Um inocente morrerá. Pelo único pecado de ter nascido.

A morte é certa. Não poderá detê-la nenhuma resistência.

O certo seria que o homem se resignasse com a morte e se preparasse para recebê-la. Mas haverá algum homem tão sábio e distinguido que receba a morte como um bálsamo ou uma libertação?

Acho que não há ou quase não há.

Em princípio, o homem odeia a morte.

Mesmo quando já não sabe mais o que fazer com a vida.


30 de abril de 2010 | N° 16321
DAVID COIMBRA


Boa bobagem

Atolice mais perigosa é a bem-intencionada. O pior burro é o burro bom. Porque o altruísmo lhe justifica a estupidez, as pessoas olham para sua ingenuidade dourada, sorriem para ela e suspiram: “Ele é do bem...”

Caso desse projeto Ficha Limpa, que irá à votação daqui a dias. Em um breve resumo, trata-se de um projeto de lei que proíbe a candidatura a cargos públicos de quem tenha sido condenado pela Justiça, diminuindo a possibilidade de recursos a instâncias superiores.

Muito bonito.

E muito equivocado.

O autor desse projeto, digamos que ele pretenda resolver as questões de segurança pública e descubra que a maioria das pessoas é assaltada depois das 22h, como de fato é. O que ele vai propor? Que as pessoas sejam proibidas de sair de casa depois das 22h.

O Ficha Limpa tem a mesma lógica. Em nome da presumida garantia de honestidade dos candidatos, ele retira do eleitor a prerrogativa de votar em quem quiser; assim como, em nome da segurança pública, o hipotético projeto contra assaltos retiraria do cidadão a prerrogativa de sair à rua quando bem entendesse.

O raciocínio é o seguinte: o eleitor não tem capacidade de avaliar se o candidato merece ou não o seu voto. Não sabe, por exemplo, pesquisar na internet, informar-se pela imprensa ou perguntar ao vizinho se o candidato está sendo processado ou se foi condenado em qualquer instância. Assim, o eleitor deve ser impedido de votar em quem tem possibilidade de ser mau candidato.

Uma proposta antidemocrática, embora sua intenção seja proteger a democracia. Uma tolice trágica, porque parece honesta.

E mais:

1. Quem garante que quem não está sendo processado é honesto e bom candidato?

2. Quem garante que quem está sendo processado é desonesto e mau candidato?

3. Quem garante que o autor do processo ou o juiz que condenou o candidato sejam honestos, tenham boa intenção e não sejam inimigos pessoais do candidato?

É um projeto ingênuo, mas não apenas ingênuo: é contraditório. Porque confia demais na Justiça ao supor que basta a condenação para classificar um candidato como mau, e não confia na Justiça ao impedir o julgamento em instâncias superiores.

O Ficha Limpa quer apressar a Justiça. E eis outra bobagem consagrada em território nacional. O brasileiro acredita que a Justiça é lenta. Não é. O defeito da Justiça brasileira é ser rápida demais. Provo: li que, em um ano, o Supremo Tribunal Federal julgou 145 mil processos.

No mesmo período, quantos processos analisou a Suprema Corte Americana? Cento e quinze. Não são 15 mil. Não são 1.500. São 115. Há 11 juízes no Supremo. Portanto, cada um, em média, apreciou uns mil casos por mês. O juízes americanos apreciaram... dois.

Como já disse, o defeito da Justiça brasileira é ser rápida demais.

Lenta é a lei.

Existem leis em excesso no Brasil. Leis, algumas dispensáveis; outras danosas inclusive a quem tentam defender. Como a proposta da Ficha Limpa, tão bem-intencionada. E tão tola.

quinta-feira, 29 de abril de 2010


CARLOS HEITOR CONY

O frágil lenho

RIO DE JANEIRO - Costumo dizer, sem nenhuma originalidade, que a era do computador ainda está na Pré-História. Nossos equipamentos, por mais sofisticados que sejam, são equivalentes aos dinossauros que habitavam a Terra antes do Dilúvio. O que vem por aí não se sabe.

A tecnologia tem disso, o elemento surpresa, que nem sempre é bom -dependendo do uso que dele se faz. A indústria nuclear, por exemplo, é um osso atravessado na garganta da humanidade, mais especificamente da ciência.

Mesmo nos avanços mais inocentes, há sempre um velho do Restelo para amaldiçoar aquele que por primeiro colocou uma vela em frágil lenho -para citarmos Camões.

A cena é conhecida. A esquadra de Vasco da Gama preparava-se para zarpar rumo ao desconhecido quando um velho apareceu no cais, amaldiçoando a expedição, na qual tantos morreriam. O velho condenou quem teve a ideia de colocar uma vela de pano num barco de frágil lenho.

Pois tudo se resume a isso: alguém cisma de botar um pedaço de pano num troço feito de madeira e pronto, a era das navegações estava começando, com os fenícios, depois com portugueses, espanhóis, venezianos. E tivemos Marco Polo, Colombo, Américo Vespúcio e o mundo novo.

Qualquer barca que faz o percurso Rio-Niterói, tecnologicamente dá um banho nos navios mais sofisticados daquela época. A informática é comparada a um tipo de navegação. Navegar na internet é expressão aceita universalmente. E ainda estamos no estágio da vela de pano em frágil lenho.

Nossa geração, inclusive as crianças que agora estão nascendo, poderão repetir o espanto de dom Pedro 2º quando experimentou pela primeira vez o telefone. Assustado, o imperador pediu que tirassem "aquele homenzinho" que estava falando dentro do aparelho.


Os portugueses preferiram ir à praia

JOÃO PEREIRA COUTINHO - Folha de S. Paulo - 29/04/2010

Portugal está a caminho da falência. Basta lembrar o que se passou na passada terça-feira. Não falo do corte do "rating" da República pela Standard & Poor's, que aumentou dramaticamente o risco da dívida portuguesa.

Falo de coisas banais. O dia era de greve dos transportes públicos. E os portugueses estavam na praia. A uma terça? Exato. Entre procurar formas alternativas de transporte para irem trabalhar e simplesmente não irem, os portugueses optaram pelo mar.

Verdade que nós, portugueses, sempre fomos um povo de marinheiros. Mas não foram apenas as praias a se encherem em dia de trabalho. Em Lisboa, é praticamente impossível arranjar uma mesa a um sábado à noite. E, nas últimas férias de Páscoa, os hotéis e os vôos lotaram.

Seria fácil vestir a toga do moralista. Não consigo. A irresponsabilidade do meu povo é um produto direto da irresponsabilidade dos líderes, que há vários anos também vivem na sua praia. A praia da fantasia.

Escutá-los é o melhor retrato. O presidente da República, Cavaco Silva, economista reputado e antigo primeiro-ministro (1985-1995), afirma diariamente que está tudo bem e não há motivo para alarme.

O governo, reeleito há seis meses, diz o mesmo. "Fomos os últimos a entrar na crise internacional e os primeiros a sair", ufanava-se José Sócrates em campanha eleitoral. E acrescentava: "Ainda está para nascer um primeiro-ministro que faça melhor no deficit do que eu".

Não duvido. Em 2009, Portugal começou com um deficit de 2,7%, passou para uma previsão de 5,9% e terminou nos 9,3%, o maior da sua história. E agora? Que fazer, quando os mercados olham para Portugal como se olha para um alcoólatra que precisa de empréstimos para pagar os empréstimos e continuar a beber?

Agora, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, está disposto a combater "o ataque dos mercados". E como se combatem essas naves espaciais de especuladores extraterrestres que não aplaudem o nosso crescimento medíocre (pior que o grego na última década) e a nossa carga de dívidas ainda mais pesada que a de Atenas?

Alguns lunáticos, entre os quais me incluo, responderiam: apresentando um plano credível, capaz de cortar na despesa de forma austera (como fez a Irlanda com os salários) e suspendendo obras faraônicas, como o TGV para Madri ou um novo aeroporto de Lisboa.

O governo discorda dos lunáticos. E, depois de apresentar um Orçamento e um Programa de Estabilidade e Crescimento que fariam as delícias dos estúdios Disney, Sócrates reuniu de emergência com o novo líder da oposição e propôs medidas de cosmética nos subsídios sociais. O líder da oposição concordou. Portugal, neste momento, não tem oposição.

Mas tem sol e mar. E a esperança, inconfessada, de que a União Europeia (e o FMI) faça com os portugueses o que promete fazer com os gregos. Salvá-los. Curiosamente, não parece passar pela cabeça de ninguém que, se a Alemanha salvar a Grécia, talvez não haja espaço para mais um.

Em 1975, Paulo Francis confrontava-se com os delírios lusitanos após a Revolução dos Cravos e escrevia nesta Folha: "Em Portugal há humor; falta governo".

Trinta e cinco anos depois, é difícil superar o Francis.


Mãe decide enfrentar o bullying

Familiares de um estudante de 13 anos de Porto Alegre aguardam que escola particular reprima a ação de aluno agressor

Mãe de um adolescente de 13 anos vítima de agressões no colégio, uma empresária da Capital é obrigada a enfrentar diariamente a tortura do bullying – prática cada vez mais comum nas escolas gaúchas, nem sempre preparadas para lidar com o problema. Desde fevereiro, o aluno de uma instituição de ensino particular de Porto Alegre se transformou no alvo predileto de um colega mais velho, de quem já recebeu um tapa no rosto, além de ameaças pessoais e virtuais.

Casos como esse motivaram a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa a aprovar, na terça-feira, um projeto de lei estadual cujo foco é prevenir ataques físicos e psicológicos no ambiente escolar.

A notícia serviu de alento à empresária de 49 anos, que prefere ter o nome preservado, mas não resolve o seu problema – assim como a lei municipal sancionada no fim de março, que incentiva o combate ao bullying nas escolas da cidade mas, na prática, ainda não decolou.

O drama da moradora da zona norte da Capital começou quando ela e o marido, um empresário de 45 anos, perceberam mudanças no comportamento do menino. De personalidade tranquila, o estudante da 7ª série ficou inquieto de uma hora para outra. Durante uma conversa, contou aos pais a causa da aflição: um garoto mais velho do que ele, 15 anos, matriculado na 8ª série, passou a ameaçá-lo pelo MSN, um programa usado para troca de mensagens.

– Aquilo começou do nada, sem motivo nenhum. Eu nem conhecia o guri. Agora todo colégio sabe, e ninguém mais quer correr o risco de ficar comigo – conta a vítima.

Em um dos diálogos virtuais, impresso pela mãe e encaminhado à direção do colégio, o aluno de 15 anos avisou que iria assaltar o colega. Em outra troca de mensagens, o agressor ameaçou chutar e matar o desafeto se ele fosse a uma festa. O adolescente foi e levou um tapa no rosto.

– Procuramos a escola várias vezes, mas nada acontece. O problema é que tratam todos como clientes, cheio de dedos – reclama o pai da vítima.

Depois que os familiares do garoto estiveram no colégio, as ameaças pioraram, e eles ficaram com medo de procurar a polícia para registrar queixa. A família planeja uma viagem forçada para fugir do problema.

Uma linda quinta-feira para você. Aproveite o dia


29 de abril de 2010 | N° 16320
LETICIA WIERZCHOWSKI


Cada um no seu quadrado

Maria Adelaide Amaral, roteirista de minisséries por excelência, vai escrever a próxima novela das sete, um remake de Ti-ti-ti (novela que lembro como uma das mais divertidas da minha adolescência noveleira). Numa recente entrevista, Maria Adelaide deixou claro que entrava no mundo das novelas “para justificar o seu salário”, já que a época das grandes minisséries se acabou.

Segundo a própria, não dá para ganhar o que ela ganha escrevendo fugazes séries de cinco capítulos. E a Globo não quer mais séries longas para não misturá-las com o Big Brother e confundir o público do seu campeão de audiência.

Eu não gosto e não assisto ao Big Brother, e o fascínio que o programa exerce na imensa maioria da população me parece estarrecedor. Ah, a falta que faz uma janela onde acompanhar de perto a vida alheia... Mas o fato é que o Big Brother é a vida real na televisão. Nunca antes, gente de verdade, com suas dúvidas mundanas, seus amores, seus ódios, seus risos, seus sonhos, vilanias e mesquinhezas esteve à mercê dos olhos alheios como nos episódios do Big Brother.

O sucesso do programa – mesmo que a mim ele pareça a coisa mais tola que alguém pode fazer com a sua noite – vem daí: apelar ao voyeurismo do telespectador. Porém, do que se deriva o declínio da audiência nas novelas e minisséries da Globo? É fato que a ficção está na tela dos nossos televisores há muito tempo.

E agora vem perdendo para a vida real. A resposta, a meu ver, seria a intromissão dessa mesma vida real na teia da ficção. Porque hoje os autores de novelas, pobres coitados, escrevem seus capítulos acorrentados ao Ibope. Nos tempos das grandes novelas da Globo, quando as tramas de Janete Clair paravam o Brasil (o país realmente parou no famoso episódio de O Astro, quando Janete Clair desvelou o mistério sobre a morte de Salomão Hayala e alcançou míticos 100 pontos de audiência) as tramas seguiam unicamente os volteios da alma da própria autora.

Enfim, creio que devemos deixar a ficção ser tudo aquilo que ela realmente é: matéria inventada, feita de sonhos, superior às mesquinhas realidades do Ibope, esse emburrecedor da dramaturgia televisiva. O povo escolhe o vencedor do próximo Big Brother, e deixa-se outra vez o destino da mocinha da novela aos cuidados do próprio autor.

Falando de sonhos e de ficção, eu recomendo a incrível experiência do Quidam, espetáculo que a trupe do Cirque du Soleil apresenta desde a semana passada aqui em Porto Alegre. Puro deslumbramento.


29 de abril de 2010 | N° 16320
PAULO SANT’ANA


Vantagens do pessimismo

O pessimismo, como já afirmei, é uma doença. Por ela, o paciente acha que tudo de ruim pode lhe acontecer, não confiando nunca que fatos favoráveis a si vão ocorrer.

Uma derivação mais grave do pessimismo é a hipocondria, trata-se da crença do paciente de que ele está ou logo em seguida vai ficar doente, alguma coisa de ruim vai acontecer com seu organismo.

Pensando melhor, vi que há vantagens em ser pessimista ou hipocondríaco.

Como sempre prevê delirantemente que alguma coisa ruim vai lhe acontecer – ou já está acontecendo – e como essas coisas na maioria das vezes não acontecem, todos os dias o pessimista obtém uma vitória, não lhe ocorreu o que de ruim tinha previsto. Ele tem, portanto, diariamente, com o que festejar.

É verdade que a preocupação com seu futuro não cessa. Mas pelo menos ele passou mais um dia livre da sua nefasta previsão.

Já com o hipocondríaco se dá algo não muito diferente: todas as semanas ou todos os meses ele vai ao médico para submeter-se a exames. Vai convicto de que encontrará alguma doença em seu corpo.

E, na maioria das vezes – ou sempre –, ele não tem doença alguma. Não é também uma forma de triunfo e de alegria? Pois, todas as vezes que os exames são negativos, de certa forma ele conseguiu uma vitória sobre a sua convicção, não tem doença alguma, sai do médico com justo motivo para festejar.

A não ser que os meus leitores entendam que é uma imensa frustração para o hipocondríaco que o médico não tenha achado doença nenhuma em seus exames. Mas, se isso acontecer, ele não é hipocondríaco, ele é louco mesmo, pirou e não tem mais salvação.

Pegue-se, por exemplo, um otimista e um pessimista com vidas absolutamente idênticas, em tudo, o que aconteceu para um aconteceu para outro.

Como nada de ruim ocorreu para nenhum deles, o otimista não lucrará nada por ter dado certo sua previsão.

Enquanto que o pessimista terá todos os motivos para saudar efusivamente que nada de ruim lhe aconteceu. Afinal, ele tinha certeza de que iria acontecer. O pessimista, portanto, é o único que lucra quando suas previsões não deram certo.

O triste para os pessimistas e para os hipocondríacos é que nunca cessam suas previsões catastróficas. Eles escapam de serem atingidos hoje, satisfazem-se com isso, mas já começam imediatamente a nutrir medos de que amanhã serão vítimas de uma tragédia ou de uma doença maligna.

Além disso, quando algo de ruim acontece com o pessimista, ele se orgulha de tê-lo previsto.

Enquanto que o otimista que é atingido por algo ruim tem todos os motivos para decepcionar-se amargamente com seu otimismo.

Recebo um profundo elogio ao SUS e ao Instituto de Cardiologia: “Prezado Sant’Ana: Hoje, quando assistimos diariamente nos jornais e na televisão à precariedade de nossos hospitais, principalmente os atendimentos pelo SUS, quero fazer um registro para enaltecer o Hospital de Cardiologia, pois tive meu irmão,

ex-juiz de futebol Orion Sater de Melo, internado por quase um mês naquela instituição, onde passou por um procedimento cirúrgico e pude constatar o ótimo atendimento prestado a todos os que lá procuram auxílio, desde o setor de emergência, CTI, até nos quartos de internação existe um serviço muito sério e responsável, tanto executado pelos médicos quanto por todas as outras pessoas que lá trabalham.

Parabéns aos diretores responsáveis por aquela instituição que é exemplo e referência para todo o Brasil.

E olha que estamos falando de atendimento pelo SUS, não há como não elogiar este serviço magnífico que nos presta o Instituto de Cardiologia, Paulo Sant’Ana. Isto com certeza merece registro, pois nem tudo está perdido na saúde pública. Este hospital orgulha a nós, gaúchos. (as.) Odilon Sater de Melo (odilon.melo@hotmail.com)”.


29 de abril de 2010 | N° 16320
L. F. VERISSIMO


Uma tradição

Quando Catarina, czarina de todas as Rússias, convidou o enciclopedista francês Denis Diderot para ser uma espécie de filósofo em residência no palácio Hermitage, em São Petersburgo, estava seguindo uma tradição que começara anos antes com o convite da rainha Cristina da Suécia a René Descartes para ir dar uma sacudida intelectual no seu reino.

Anos mais tarde, Frederico o Grande, da Prússia, também quis ter o seu francês e mandou buscar Voltaire para ser seu interlocutor e consultor literário e legitimar sua pretensão a rei-filósofo, um legítimo produto do Iluminismo.

Descartes, com sua ideia doida de que o homem inventara Deus com a razão que Deus lhe dera, foi hostilizado pelos pensadores locais como já tinha sido combatido pela Igreja na França. Escreveu de Estocolmo para um amigo: “Me parece que aqui as ideias congelam, exatamente como a água”. Foi o frio da Suécia que o matou, embora se desconfie que os médicos da corte, inspirados pelo ciúme que ele provocava, tenham ajudado um resfriado a se tornar mortal.

Denis Diderot ficou dois anos em São Petersburgo. Seu relacionamento com a czarina e sua corte foi no mínimo pacífica e a separação foi amigável.

A visita de Voltaire ao palácio de verão de Sans Souci, perto de Berlim, se estendeu para três anos e foi feliz enquanto durou – ou até Voltaire ser preso a mando do rei quando tentava voltar para casa, acusado de quebra de contrato e corrupção e de ter roubado alguns dos seus poemas eróticos, provavelmente a acusação que mais doeu.

Mas é curioso como os três (entre outros, como Rousseau, Condorcet, D’Alembert, que também levaram conselhos franceses a poderosos de outras terras) foram adotados por monarquias absolutas justamente por serem notórios hereges, cuja crítica à ortodoxia religiosa implicava, por tabela, uma crítica a todo poder absolutista, e cujas ideias mais tarde dariam origem às revoluções republicanas. (É de Diderot a frase “A humanidade só será livre no dia em que o último déspota for enforcado com as tripas do último padre”).

Talvez os monarcas intuíssem que mostras de inquietação intelectual e credenciais progressistas os salvariam da onda racionalista que se aproximava, ou talvez apenas quisessem intelectuais iconoclastas aos seus pés, como animais domados.

Mas qual era a razão dos intelectuais para aceitarem os convites? Na época, não se recusava um bom patrono, ainda mais um patrono com verbas reais, mas mesmo assim...

Já era, então, a questão, que atravessaria a História, da relação dos intelectuais com o poder e do poder com os intelectuais. Onde terminam a fascinação e a vaidade e começa a cumplicidade, onde termina a admiração e começa a cooptação.

quarta-feira, 28 de abril de 2010


JOSÉ SIMÃO

Fla e Timão! O clássico da balada

Sabe por que o ministro se chama Temporão? Porque só aparece de tempos em tempos!

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta!
"Ministro da Saúde recomenda sexo contra hipertensão." Aí não é mais hipertensão, é HIPERTESÃO! E o ministro arruma mulher? Rarará! Não adianta só recomendar. De repente o cara é hipertenso, mas não arruma mulher!

E o Blogdobonitão revela o alerta do ministro: "Mas com a mulher dos outros o SUS não cobre!". Então não tem graça. Prefiro continuar hipertenso. E sabe por que o ministro da Saúde se chama Temporão?

Porque só aparece de tempos em tempos! E hipertenso é o cara que paga imposto. IPI, IPVA, IPTU e IPERTENSO! Rarará! E a Padrefolia!? Papa aceita renúncia do bispo irlandês. E sabe o que o bispo irlandês pedófilo falou para o papa? "DÁ PRA DEVOLVER O MEU DVD?" Rarará!

E mais uma da minha morenanta predileta, Lucianta Gimenez: "Tem gente que é que nem Maomé, tem que ver pra crer". Maomé, são Tomé, tudo termina em "é" mesmo. BÉÉÉ! E Flamengo X Corinthians? Ronaldo, Roberto Carlos, Vagner Love, Adriano. Se sair gol, não vai ter dancinha, vai ter BALADA! O clássico da balada! Ronaldo e Adriano vão lutar sumô. O clássico do sumô! E o Kaká é tão fino que tem lesão no púbis.

O Romário tem lesão na virilha, o Ronaldinho tem lesão no saco, o outro tem lesão na panturrilha. Mas o Kaká, como é fino, tem lesão no púbis! E um amigo meu foi assistir a Santos e Santo André numa birosca em Vila Margarida, em Santos. E olha a pichação na parede do banheiro da birosca. "Proibido cagar e cheirar.

Sujeito a MURRO E PONTAPÉ." O brasileiro é cordial. Assim como o Ciro. Ops, o TIRO GOMES! Rarará! E a Susan Boyle vai cantar para o papa! Se eu encontrasse com a Susan Boyle, eu diria: "Sou da paz! Leve-me ao seu líder".

Ela não é uma mulher, é uma IPP. Indivídua Portadora de Perereca! Rarará! É mole? É mole, mas sobe! Ou como disse o outro: é mole, mas trisca pra ver o que acontece. Antitucanês Reloaded, a Missão.

Continuo com a minha heroica e mesopotâmica campanha Morte ao Tucanes. É que em Manaus tem um campo de futebol chamado Arranca Dedo! Ueba! Inclui na Copa 2014! Mais direto, impossível. Viva o Brasil! Viva o antitucanês!

E atenção! Cartilha do Lula. O Orélio do Lula. Mais um verbete pro meu óbvio lulante. "Corneta": associação dos cornos que vão pra Copa. Rarará! O lulês é mais fácil que o ingrêis. Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje só amanhã. Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br

ANTONIO DELFIM NETTO

A lição grega

A TRAGÉDIA GREGA impressiona. Com 2.500 anos de história e fonte inspiradora da cultura ocidental, a Grécia sofre as consequências de uma imprevisão quase inacreditável. Está terminando num patético "IMF go home", que parecia apenas coisa da "esclarecida" esquerda da América Latina.

E, no entanto, o FMI, com um aporte de 10 bilhões a 15 bilhões, e a União Europeia, com 30 bilhões, estão tentando salvar a Grécia de um "default" que a expulsaria da zona do euro.

Consumada como se consumou a capacidade do país de viver à custa da poupança mundial, com uma dívida pública de quase 300 bilhões (115% do PIB) e um deficit orçamentário de 13,6% do PIB (quando o compromisso para entrar na zona do euro era de deficit fiscal anual máximo de 3% do PIB e dívida/PIB máxima da ordem de 60%), as perguntas mais interessantes a fazer talvez sejam: há outra saída além de 1º) um "default", que cortaria instantaneamente o consumo alimentado pelo fluxo de recurso externo, ou de 2º) um arranjo para acomodar o ajuste do consumo durante alguns anos? A resposta é não!

O problema grego ilustra dois fatos elementares. O primeiro é que nenhum país pode viver permanentemente de recursos fornecidos por credores externos. Credores são selvagens: querem receber o que irresponsavelmente emprestaram no tempo das vacas gordas!

O segundo é em relação ao FMI. Com sua arrogância, duvidosa ciência e receitas ideológicas, ele alivia a situação dos países, permitindo que a transição da "alegre vida" à custa de financiamento para a "dura vida" à custa de trabalho seja feita paulatinamente.

Atribuir, porém, os seus problemas ao FMI equivale a atribuir os incêndios aos bombeiros que vieram apagá-lo, e não aos governos piromaníacos que os produziram. A questão é física: por bem ou por mal, com ou sem FMI, o consumo e o investimento gregos somados não podem mais ser maiores do que o PIB que produzem.

Em outras palavras, o "excesso" de consumo e de investimento que era financiado pelo exterior vai ser "cortado", com ele ou sem ele.

Com ele, o corte do consumo se ajustará por vários anos e, provavelmente, será menos dramático. A grande lição da crise grega para os países emergentes em relativo equilíbrio interno e externo e montados em "reservas" que caíram do céu da expansão mundial é recordar "que as consequências vêm sempre depois".

Deficits fiscais produzidos por políticas distributivas exageradas, aumentos cumulativos automáticos de despesas de custeio que sacrificam os investimentos públicos e câmbio valorizado são uma boa receita para transformar a alegria de curto prazo em tragédia grega no longo prazo...

contatodelfimnetto@uol.com.br


28 de abril de 2010 | N° 16319
MARTHA MEDEIROS


O melhor da vida em duas horas e meia

Eu já havia assistido ao espetáculo Alegría, que esteve excursionando pelo Brasil dois anos atrás, mas escutei comentários de que o Quidam era ainda melhor, então me dirigi ao Cirque du Soleil com bastante expectativa, o que é preocupante, já que expectativa é o caminho mais curto para a frustração. Mas a expectativa não só se cumpriu, como deu diversas piruetas sobre si mesma.

Em duas horas e meia, as coisas mais importantes da vida desfilaram diante de uma plateia extasiada, provocando uma transcendência essencial nesse mundo materialista. De minha parte, senti como se tivesse entrado em um sonho. Meu país das maravilhas coube dentro de uma tenda de circo.

Afinal, que coisas mais importantes da vida são essas?

1) Fantasia: desconectar-se do real e acreditar no impossível.

2) Humor: enxergar o lado divertido de tudo o que é sério.

3) Confiança: nossa integridade subordinada ao autocontrole de alguém, nossa capacidade de brilhar dependendo do que é extraordinário no outro.

4) Beleza: o capricho e o bom gosto revelado em todos os detalhes, do figurino à música, do cenário à iluminação. E gestos nunca rudes, a vida sem peso, fluida, lânguida como só os invertebrados parecem conseguir.

5) Infância: o resgate do encantamento, da crença no que é mágico, do medo que excita, do sorriso verdadeiro de quem nasceu com vocação para brincar.

6) Poesia: cada silêncio, cada instante, cada cena em busca de um só objetivo, o de provocar impacto e emoção, mesmo sem o uso de palavras.

7) Erotismo: o reconhecimento de todas as possibilidades do corpo, a sedução sem vulgaridade.

8) Movimento: negar-se à paralisia, surpreender com a presença onde não se é esperado, habituar-se a um ir e vir sem lógica, testemunhar os dias acontecendo.

9) Arte: teatro, dança, cinema, música, fotografia, literatura, os canais de expressão de tudo o que nos identifica e nos transporta para o lado lúdico da existência.

10) Doação: compartilhar o que se sabe e o que se sente com os outros. Há quem também chame de amor.

Você pode não concordar com a minha lista, mas terá que fazer malabarismo para me convencer a mudar de ideia a respeito do que é que importa de fato nesta louca vida.

Uma ótima quarta-feira para você. Aproveite o dia


28 de abril de 2010 | N° 16319
DAVID COIMBRA


Os que são só vestígio

Os espartanos, soldados forjados desde a infância na austeridade e na aspereza, quando os espartanos resolviam beber de verdade, beber como homens, diziam que iam beber vinho “à maneira cita”. Porque os citas bebiam vinho puro, ao contrário dos gregos, que o misturavam com água. Claro, o vinho grego não era como o feito em Bento. Era marrom, mais denso, mais capitoso. Compreensível que os gregos o diluíssem.

Compreensível também que os citas o bebessem como os caubóis bebiam uísque: puro. Porque os citas eram durões, sim, senhor. Guerreavam por gosto, eram cruéis por hábito. Desenvolveram a desagradável mania de furar os olhos dos escravos. Não raro, esfolavam seus inimigos vivos, e ser esfolado vivo dói.

Se o inimigo tivesse sorte, o decapitavam, descarnavam-lhe a cabeça e serravam a caveira à altura das sobrancelhas. O tampo do crânio servia-lhes de tigela nas refeições. Se você fosse jantar na casa de um cita, seria de bom-tom perguntar na cabeça de quem estava comendo.

Os citas eram arqueiros e cavaleiros famosos no mundo antigo. Volta e meia lutavam a soldo, como mercenários. Eram nômades, não cultivavam a terra, mas criavam gado sobretudo pelo leite das vacas.

Tirado o leite, derramavam-no em um pote e mandavam um daqueles escravos cegos sacudi-lo até que o líquido se transformasse em nata pastosa. Os citas adoravam nata, mas não a serviam com moranguinhos, uma lástima. Falavam uma língua de cepa iraniana e vagavam em bandos ferozes entre as terras russas e o Oriente Médio.

Heródoto, em uma de suas viagens de conhecimento, esteve entre os citas que viviam às margens do Rio Dnieper, um rio de águas límpidas e, segundo o próprio Heródoto, muito saborosas. Contou a respeito deles uma história curiosa. Por algum motivo, esses citas marcharam para fora de seus domínios para fazer guerra aos medos.

Os medos tinham esse nome não porque não fossem valentes, mas porque se originavam da Média, que, por sua vez, tinha esse nome não porque ficasse em um ponto equidistante de qualquer coisa, mas porque, bem, porque esse era seu nome.

Os citas demoraram 28 anos para derrotar os medos, um povo muito resistente. Quando voltaram para casa, tiveram uma péssima surpresa, descrita assim por Heródoto: “Suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aos escravos, daí resultando toda uma nova população”.

Infiéis, aquelas citas! Não procederam como a grega Penélope, que durante 20 anos manteve-se intocada, aguardando a volta de Ulisses, que devia ser um galo cinza. Não. Na falta de homem, as citas fogosas requisitaram os escravos e se refocilaram com eles. Esses escravos sortudos eram cegos, mas seus filhos não. E foram os filhos que se postaram diante das muralhas da cidade para combater os citas de retorno.

A luta contra os filhos das suas mulheres foi ainda mais encanzinada para os citas do que a travada com os medos. Por pouco eles não foram derrotados. Só venceram porque um comandante gritou:

– Vocês não estão vendo que lutamos contra escravos e filhos de escravos??? Apanhem seus chicotes e marchem contra eles agindo como os senhores que são!!!

Foi o que os citas fizeram. Caminharam com autoridade contra os rebeldes, que se assustaram ante tamanha ousadia e puseram-se a correr.

O que se depreende da história narrada por Heródoto?

Que não existe ninguém insubstituível.

Se você ficar muito tempo longe do seu lugar, quando voltar pode encontrá-lo ocupado. Caso da lateral-esquerda do Grêmio e da centroavância do Inter. Os titulares não deram conta, Neuton e Walter estão suprindo as necessidades, e muito bem. Mais um pouco e só uma guerra para tirá-los de onde estão.

Imagino que os citas não tenham aprendido com o episódio, porque, 200 ou 300 anos depois de Heródoto, eles desapareceram da face da Terra. Não deixaram nada escrito, não deixaram descendência aparente ou cultura que cultivar.

Os citas hoje não são nem lembrança, são apenas vestígio. Tanto quanto são na vida os antigos amores, os desafetos do passado, as dores curadas e alguns ex-titulares da Dupla Gre-Nal.


28 de abril de 2010 | N° 16319
PAULO SANT’ANA


Não caibo em mim de emoção

Imagine se você é fã de um cantor e recebe de repente a notícia de que ele quer gravar um disco acompanhado de você. É uma emoção singular.

Foi o que me aconteceu nos últimos dias, a produção do Zeca Pagodinho me telefonou e quer gravar comigo e com o cantor uma faixa de um CD que será lançado.

A música deverá ser Faixa Amarela, um excelente samba de pagode:

Eu quero presentear

A minha linda donzela

Não é prata nem é ouro

É uma coisa bem singela

Vou comprar uma faixa amarela

Bordada com o nome dela

E vou mandar pendurar

Na entrada da favela.

A letra do samba é muito extensa, o tom em que Zeca Pagodinho canta é muito alto para mim, mas entendo que com muito esforço posso decorar a letra e, quem sabe, o cantor concorde em baixar um tom para mim.

Imaginem a minha emoção e o meu nervosismo.

Mas tenho de pensar positivo: vai dar.

Se der, é a glória.

Um ditado de pensamento positivo que se deve decorar e repetir a todo momento: hoje está melhor do que ontem e será pior do que amanhã.

Recebo uma montanha de e-mails ansiando para que eu volte para o Jornal do Almoço, de onde me afastei por cirurgia faz uns cinco meses.

Estou pronto para voltar, falta apenas uma decisão da direção da RBS, para quem têm de ser enviados os e-mails solicitantes.

Não vejo mais a hora de voltar para o público do Jornal do Almoço e a companhia das minhas queridas Cristina Ranzolin e Rosane Marchetti.

Que saudade!

Um outro exemplo de como somos espoliados no Rio Grande do Sul. Uma passagem de ônibus entre Uruguaiana e Porto Alegre custa R$ 109,65, distância de 642 quilômetros.

Já uma passagem entre Petrolina e Recife, com a distância maior de 721 quilômetros, custa apenas R$ 80.

Por que nós, gaúchos, temos de ser assim castigados em todos os preços? Será uma sina azarenta termos nascido aqui?

De São Paulo a Três Corações, em Minas Gerais, o leitor Luiz Noer (luiznoer@hotmail.com) pagou quatro pedágios, cada um ao preço de R$ 1,10.

Aqui no RS, o mínimo que se paga por cada passagem são R$ 6.

Que sina a nossa!

“Sem falar na tal faixa amarela/ gravada com o nome dela/ que vou mandar dependurar/ na entrada da favela”. Não me sai da cabeça que eu possa vir a gravar uma faixa de CD com o Zeca Pagodinho.

Porque das outras vezes que cantei com celebridades, quase sempre foi por instâncias minhas.

Agora não, foi o Zeca Pagodinho que me mandou chamar!


28 de abril de 2010 | N° 16319
DIANA CORSO


Sonata de Outono

Amor de mãe é coisa muito bonita, da qual muito se fala nestes dias de outono, mas sua ausência pode tornar-se uma verdadeira obsessão para um filho. Notamos que quanto mais um filho for compulsivamente dedicado à sua mãe, quer seja na prática ou nos pensamentos, tanto menor será sua certeza de ter sido amado por ela.

Se o vínculo materno-filial for consistente, seus protagonistas poderão tomar distância um do outro, sem pensamentos doentios de preocupação ou mágoa. Amor de mãe é como uma pedra fundamental: se a qualidade dessa base for pouco sólida, ao filho caberá preencher essa falha através de uma convocação interminável para que a mãe, ou mesmo as memórias dela, lhe ofereçam o sentimento de consistência que lhe falta.

O filme de Bergman, Sonata de Outono (1977), é um clássico sobre as mazelas de ser um filho pouco amado. É a história de uma mãe que viaja muito, deixando para trás um marido entristecido, acompanhado de Eva, a filha angustiada e atenta, e sua irmãzinha, uma doente crônica.

Eva admira a mãe, pois Charlotte é uma talentosa pianista, mas observa o peso insuportável que a família representa para ela, ao mesmo tempo em que cobiça o reconhecimento daquela que está ausente mesmo quando volta. A busca desse amor materno fugidio torna-se para a filha um modo de vida, cresce como alguém que não pode imaginar-se amada.

Já madura, Eva encontra um marido em cujo amor ela não se deixa crer, vivem anos de rara felicidade e têm um filho, que infelizmente morre ainda criança. Ela não se desespera, sua vida parece destinada a ser truncada no que diz respeito à maternidade.

Um dia é da caça e outro do caçador: após anos de distanciamento, Eva convida Charlotte a visitá-la. A teia está armada e o confronto, inevitável: num discurso ruminado por décadas, Eva acusa de forma implacável a mãe narcisista, enquanto esta procura justificar-se, alegando sua fragilidade, que a fazia esperar amor e proteção da própria filha.

A mãe abrevia a visita, sua partida precipitada é a prova de que a filha está vingada. Porém, quem dará valor a uma vida que ela sempre considerou medíocre frente à fama da mãe, quem vai ressarci-la do preço que pagou pela dedicação a essa mágoa?

Homenagens dos filhos nas datas festivas são bem-vindas. Mas essa personagem de Bergman, norteada pelo ressentimento, nos ajuda a perceber outro valor: acima de todas as coisas, às mães deveríamos agradecer-lhes quando usufruímos da leveza do vínculo. Entre mães e filhos, o maior presente é a possibilidade de ir e vir, em paz com o sentimento de continuarem existindo.

terça-feira, 27 de abril de 2010



7 de abril de 2010 | N° 16318
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Anos Dourados

No dia 21 de abril de 1960, repicaram os sinos de todas as igrejas de Viena. É que naquele dia nascia Brasília, a mais jovem capital do mundo. Cinquenta anos depois, uma sombra de corrupção e de escândalo paira sobre a belíssima cidade do Planalto Central, mas mesmo ela não pode apagar a aura de esplendor que a cerca.

Brasília não é um capítulo solitário de nossa História. É a culminação de uma soma de fatores sociológicos e políticos que levaram uma nação a compreender a própria grandeza. De repente, pela visão e a ousadia de um presidente da República, a civilização litorânea de tantos séculos venceu o continente das terras altas e além, para identificar sua própria magnitude.

Planalto e Amazônia deixavam de ser territórios, ou abandonados, ou interditos, para se converterem em parcelas de um país com a vocação do desenvolvimento.

Em paralelo, ocorriam extraordinárias mudanças no cotidiano da nação. Não era apenas uma metrópole que surgia no áspero Cerrado. Enquanto se erguiam palácios, templos, conjuntos funcionais, no outrora esquecido centro do Brasil, o país descobria seu destino.

Um grupo de jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre eles um gênio chamado Antônio Carlos Jobim, inventava a Bossa Nova, que logo iria conquistar o mundo. O Cinema Novo iluminava as telas com um modo inaugural de contar o homem e o universo. Éramos campeões mundiais do futebol à pesca submarina.

Grandes estradas rasgavam as selvas, como artérias de um corpo gigantesco que se redescobria. Hidrelétricas domavam rios, levando luz e força ao que antes era treva. Um enorme número de fábricas lançava nas ruas os produtos da jovem indústria automobilística nacional.

Pelas avenidas, podiam-se ver Romi-Isettas, Volkswagens, DKWs, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys, JKs, jipes e lambretas.

Tudo isso era o efeito Brasília. Quanto mais subiam as torres do Congresso, quanto mais Juscelino Kubitschek se fixava no Palácio da Alvorada, quanto mais o Brasil alargava o seu desenvolvimento, mais a cidade se afirmava como capital de todos os brasileiros. Vivi tudo isso. Sei do que falo. Conheci de perto os Anos Dourados.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia.


27 de abril de 2010 | N° 16318
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Caiu a trapezista

Aquela foto de ontem, com um grupo de artistas do Cirque du Soleil de costas para a plateia, formando uma parede tão compacta quanto pode ser uma parede humana com indivíduos de pé, aquela foto de ontem me deixou meio daqui, como se dizia na minha adolescência e não sei se ainda alguém diz.

Na verdade eu a vi no domingo ainda, furungando na internet para esquecer a derrota do meu time no Grenal. E no clicrbs vinha ela e um texto dando conta do fato: caiu uma trapezista lá de cima, e imediatamente os parceiros improvisaram a parede.

Improvisaram mesmo? Logo me dei conta de que o movimento deve ser ensaiado – também esse movimento, quero dizer. Eles têm passo marcado para tudo, de forma a poderem conviver com saltos, elipses, intervalos, objetos ao ar, voos, deslocamentos rápidos, muito movimento de muita gente com muitos elementos cênicos.

Sem ensaio, não tem como fazer nada daquilo, daquela maravilha que todos conhecem, seja no Cirque du Soleil ou no Cirquinho Dudu. Então retifico: eles não improvisaram ao fazer aquela parede; eles cumpriram um dos passos ensaiados. Ensaiados para os casos de quedas ou passos em falso ou, no limite, tragédia, que espero não seja o caso atual.

Essa preparação não me sai da cabeça. Imagino aqueles artistas ensaiando para quando tudo dá errado. Se um escritor erra na concordância ou na escolha do vocabulário, nada de grave; mas se o músico erra uma nota em cena aberto, a coisa já complica, porque se trata de artista de performance, não de artista de gabinete como é o escritor.

E quando o erro é não de uma nota, mas de um movimento? E quando desse erro resulta machucado físico? “Vamos ensaiar, pessoal! Assim, ó: quando um de vocês se estabacar no chão...”

E para que fazem a parede, em casos como esse? Não para confortar ou curar o caído, é claro, porque disso se encarrega um pessoal com formação específica, enfermeiro, médico, sei lá. Então só sobra uma chance: para poupar o público do reverso do espetáculo, de seu lado escuro.

Assim como os palcos e teatros têm, em regra, uma face pública e outra privada, o bastidor, também a cena aberta pode ser subitamente fechada. Esfria-se na marra o que era até então chama viva.

É o mesmo, pensando bem, que acontece com o choro do palhaço, com a pereba da bailarina, com a dor de cabeça do músico, coisas que ninguém nunca viu. Essa gente que vive no calor das artes ao vivo, vou te contar.


27 de abril de 2010 | N° 16318
PAULO SANT’ANA


Cara de palhaço

Canso de me perquirir sobre por que razão tenho de pagar preços mais altos do que os outros.

Nos últimos anos, estou cansado de saber que a cesta básica mais cara do Brasil é a daqui onde moramos. Ninguém paga mais do que nós, gaúchos, pela cesta básica em todo o Brasil. Por quê? Quem é que me decifra, sem tergiversações, este enigma?

Da mesma forma, por que os imóveis aqui em Porto Alegre são os mais caros de todo o Brasil, ninguém decifra.

O meu azar é que moro exatamente aqui. Se a cesta básica daqui é a mais cara do Brasil, por lógica todos os alimentos que ingerimos aqui são os mais caros do Brasil.

E se os imóveis daqui são os mais caros do Brasil, então os aluguéis e as taxas de condomínio seguem o mesmo ritmo.

E, por azar, eu moro aqui. Por que será?

Há séculos pergunto e não encontro resposta definitiva, a não ser algumas hesitantes.

E, por azar, eu e meus leitores moramos aqui.

Agora mesmo o leitor Guilherme Sarda (guilhermesarda@hotmail.com)manda me dizer que todos os postos de gasolina de Florianópolis cobram em torno de R$ 2,29 pelo preço da gasolina comum. E me manda as notas comprovantes desse preço.

Aqui em Porto Alegre, o preço é de R$ 2,59 por litro. Por que a gasolina custa 30 centavos de real mais caro em Porto Alegre do que em Florianópolis? Pergunta-se e ninguém responde?

Não há razão lógica e sólida para essa diferença.

E, no entanto, um tanque de gasolina, vejam só, custa R$ 18 a mais aqui em Porto Alegre do que em Santa Catarina. Um assalto!

E, em algumas cidades do interior gaúcho, um tanque custa quase R$ 30 a mais que em Santa Catarina.

R$ 30 a mais por tanque, isto é uma fortuna!

E os donos de postos de gasolina de Santa Catarina já têm lucro com aquele preço menor que cobram por lá.

O que está acontecendo afinal, a não ser esta cara de otário espoliado que faço sempre que entro nessa comparação?

O leitor Hélio Hettwer (augusto.hettwer@terra.com.br) manda me dizer que o pedágio na BR-101, em Porto Belo, Santa Catarina, custa R$ 1,10. E ele pergunta: “Que palhaçada é esta de nos cobrarem nas praças de pedágios do Rio Grande do Sul cinco vezes mais que lá? Os pedágios daqui custam no mínimo R$ 6 e lá saem por R$ 1,10. Que palhaçada é esta?”.

Exatamente. Nós, gaúchos, somos uns palhaços.

Evidentemente que essa diferença nos preços dos combustíveis daqui para SC influi tremendamente no desenvolvimento do nosso Estado.

E eu moro aqui, os meus leitores moram aqui. São todos eles, todos nós, vítimas dessa espoliação.

Não é um azar nosso?

Por que será que estoura sempre em nós?


27 de abril de 2010 | N° 16318AlertaVoltar para a edição de hoje
MOACYR SCLIAR

De um diário americano

Minha geração cresceu sob o signo de uma frase que, em praticamente todo o mundo, era repetida à exaustão: “Yankees, go home”.

Um protesto que tinha fundamento: autoinvestidos no papel de polícia do mundo, os Estados Unidos intervinham, direta ou indiretamente em qualquer lugar onde os interesses americanos pudessem, a critério deles, estar ameaçados.

Foi o que aconteceu na América Latina nos anos 60 e 70; as ditaduras militares receberam o apoio, aberto ou disfarçado, do grande irmão do Norte.

Mas o tempo passou, o mundo mudou, e os Estados Unidos mudaram também. A eleição de Obama foi disso uma prova decisiva, e bem assim a reforma do setor saúde, uma das grandes bandeiras do candidato.

Quem imaginaria o reduto do liberalismo admitindo um sistema assistencial no qual o Estado tem um papel importante? Foi uma grande vitória, e terá profunda repercussão. Como observou Thomas Friedman, o brilhante colunista do New York Times, os inimigos dos Estados Unidos (que não são poucos) aguardaram com muito interesse o desfecho dessa briga.

Uma derrota de Obama tiraria toda a autoridade do presidente e colocaria em xeque a liderança americana.

Que, aliás, já não é a mesma coisa; vivemos num mundo multicêntrico, com novas potências (entre elas o Brasil) emergindo. Mas ainda estamos falando do país mais rico e militarmente mais poderoso do planeta.

Não é mau que esse país tenha uma posição de liderança. Como diz Friedman, muitos se queixam do excessivo poder americano, mas o contrário seria pior. Já imaginaram um mundo comandado pelos aiatolás e pelo fundamentalismo?

Obviamente os Estados Unidos não são um paraíso democrático. A plataforma do movimento conhecido como Tea Party, comandado pela ex-candidata Sarah Palin, é assustadora. Para começar, a denominação reporta-se a um incidente do século 18, quando comerciantes de Boston preferiram jogar ao mar um carga de chá do que pagar à coroa inglesa os impostos.

Foi um gesto de autonomia, mas foi também uma mensagem antiestatal, que tem desdobramentos: o Tea Party acha que ajudar os pobres é contraproducente, que Obama dá demasiada atenção aos negros, e que o governo é socialista (sic).

Mas o Tea Party tem o apoio de uma minoria, menos de 18% da população. A democracia americana é uma garantia de que esse pessoal não imporá suas ideias ao país.

Mas não estamos falando só de política. A história americana é marcada por vários característicos importantes em nosso tempo: a criatividade, o pragmatismo, a tremenda disposição para o trabalho.

Ninguém obriga as pessoas a gostar dos filmes americanos, da música americana, da literatura americana: é uma escolha certamente condicionada por propaganda, mas basicamente espontânea. Yankees go home?

Pode ser. Mas o “home” americano (Nova York, por exemplo) está cheio de brasileiros. Que não parecem muito contrariados na Big Apple. Ao contrário: compram adoidado.

segunda-feira, 26 de abril de 2010



26 de abril de 2010 | N° 16317
DUAS CABEÇAS DE VANTAGEM


Depois do intervalo

Algo ocorreu no recesso do vestiário do Grêmio, ontem à tarde, no intervalo do Gre-Nal que o time de Silas venceu por 2 a 0, no Beira-Rio. Algo do qual provavelmente o próprio Silas tenha sido o protagonista.

Porque o Grêmio que retornou ao gramado molhado do estádio do Inter foi um time muito diferente do que se apresentou no primeiro tempo de jogo. Foi um time interessado, agressivo, aceso, quase perfeito, que marcou os dois gols e arrancou com representativa vantagem para decidir o Campeonato Gaúcho, domingo que vem, no Olímpico (pode perder por um gol de diferença, e será campeão).

De certa forma, esse Gre-Nal 380 reproduziu uma tradição do clássico: se as duas equipes se equivalem, a que atravessa a semana em baixa vence. O Grêmio foi mal contra o Avaí, na quarta: perdeu, quase se desclassificou. O Inter foi bem contra o Quito, na quinta: goleou, foi o campeão de seu grupo.

Ontem, o Grêmio teve outro comportamento. E o Inter também. O Grêmio surgiu com um inédito e competente arranjo armado pelo lado esquerdo entre Hugo e o estreante Neuton. Por coincidência, dois reservas. Hugo jogava no lugar de Douglas, suspenso, e Neuton no de Fábio Santos, lesionado. Ambos reluziram na tarde chuvosa da Capital, Hugo atuando com uma vibração ainda não vista neste ano, e Neuton, no frescor de seus 20 anos, marcando e apoiando com a autoridade de um veterano.

Aos 15, o Grêmio teve uma chance preciosa: Borges recebeu lançamento de Hugo e entrou sozinho na área. Era só ele e Abbondanzieri. Era só marcar. Mas ele bateu para fora. A partir de então, o Inter melhorou. Adonou-se do jogo. Aos 19, depois de um bate-rebate na área do Grêmio, Walter pegou um rebote e chutou fraco.

Edilson tirou de cima da linha. Um minuto depois, o Grêmio reagiu: Jonas invadiu a área pela direita e deu um corte para dentro. Dois zagueiros se passaram do lance, escorregando pela linha de fundo afora. O atacante do Grêmio bateu rasteiro e Abbondanzieri defendeu.

Os 26 minutos seguintes foram do Inter. O time de Fossatti insistiu, reteve a bola e jogou a partir da linha divisória, martelando, martelando. Mas não conseguiu entrar na região bem vigiada por Rodrigo, zagueirão cheio de autoridade no estilo “a área é minha casa”. O Inter, assim, ficou rondando ao longe, rosnando sem morder. Seu melhor lance foi uma falta que Sandro chutou com violência da intermediária, beliscando o travessão.

Aí os times foram para o intervalo.

E tudo mudou.

Silas tirou Ferdinando e colocou Adilson, segundo ele por lesão. Funcionou. Adilson jogou com a atenção de um Dinho, impedindo que os meias do Inter girassem e ficassem de frente para o gol. Jonas, Borges, Hugo e até Neuton se aproximaram, facilitando a troca de passes.

No Inter, o sempre interessado Guiñazu corria de uma lateral para outra, impedindo quase sozinho os avanços do adversário. Num desses lances, levou o cartão amarelo que o deixa fora da decisão do próximo domingo.

Mais perigoso, o Grêmio acertou a trave do Inter duas vezes: aos nove, num chute de Jonas, e aos 36, após cobrança de falta de Rochemback. No Inter, Walter empreendia uma luta solitária. E, graças a sua força e objetividade, levava vantagem.

Mesmo quando marcado por Mário Fernandes, apoiava as costas no peito do zagueiro, girava e chutava de qualquer distância, e seu chute sempre saía perigoso, e a bola só não entrava porque sob o travessão havia Victor.

Aos 22 minutos, a superioridade do Grêmio foi para o placar. Edilson cobrou escanteio da direita, Rodrigo saltou antes de Sandro e Sorondo, e mandou um testaço para o fundo da rede. O gol não fez com que o Grêmio mudasse sua forma de atuar.

O time de Silas continuou sólido e belicoso. Vinte minutos depois do 1 a 0, Rochemback cobrou uma falta da intermediária, a zaga do Inter se adiantou para deixar os atacantes em impedimento e Borges correu a partir do lado da barreira para cabecear e ampliar o placar.

Que, afinal, foi justo. Graças ao que aconteceu sob as arquibancadas, abaixo do nível do gramado, no recôndito do vestiário do time visitante no Estádio Beira-Rio.

Ainda que com chuva uma gostosa segunda-feira e uma linda semana pra você. Esta que encerra abril de 2010


26 de abril de 2010 | N° 16317
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Um padre

Deu no clicRBS: o padre chama-se Martinho Kavaya. É sacerdote, natural de Angola. Viveu em Pelotas por sete anos para adquirir conhecimento e servir em seu ministério.

Atuou como vigário na catedral São Francisco de Paula, estudou e defendeu tese. Hoje é doutor em Educação. Nas fotos, vê-se que é homem ainda no vigor da idade, sorriso verdadeiro, cheio de esperanças.

Está voltando para o seu país, e leva consigo mais de 40 mil livros que lhes foram doados pelas comunidades pelotense e gaúcha. Leva, portanto, uma biblioteca inteira, a fazer inveja a muitos municípios brasileiros.

O Exército Nacional ajudou-o a acomodar todo esse material num contêiner, e o destino é a cidade de Ganda. Padre Martinho está feliz. Volta para Angola com a alma e a mente disponíveis para ajudar, apoiar, repartir. Volta, enfim, imbuído do verdadeiro espírito missionário.

Martinho, na infância, viveu a crua realidade da guerra, e seu passado registra um episódio por ele mesmo narrado: “Vi meu avô e minha avó serem decapitados na minha frente quando era criança, e prometi que mudaria meu país através da educação”. Promessas assim não se esquecem, e o Padre Martinho transformou sua dor em gesto concreto de solidariedade.

O lado raro, disso tudo, é que a cidade de Ganda, para onde vai essa grande biblioteca, para onde volta o Padre Martinho e suas esperanças, situa-se justo na província de Benguela que, bem e tristemente o sabemos, foi um dos mais atuantes empórios do comércio negreiro destinado ao Brasil.

De Benguela importávamos seres humanos reduzidos à situação animal; a retribuição que damos ora damos, por via do Padre Martinho, é em livros, cultura e saber. Não se trata de compensar males passados, que esses são incompensáveis, mas trata-se de um ato simbólico de reparação.

Vá, Padre Martinho. Dê o testemunho de seu tempo e de sua palavra.

Num momento crítico, em que a Igreja Católica é acossada por uma torrente de insultos, muitos esquecem de exemplos iguais a este, operosos, saudáveis e construtivos, que honram a nossa espécie e dignificam a instituição a que serve o Padre Martinho.


26 de abril de 2010 | N° 16317
PAULO SANT’ANA


Gigantesca vitória

Há muito tempo, o Grêmio não obtinha uma vitória tão retumbante e singular como a de ontem.

O Internacional era o grande favorito, vinha de classificação maiúscula na Libertadores, enquanto o Grêmio se debatia na frustração de não ter se classificado para a finalíssima do segundo turno.

Todo o favoritismo do Internacional caiu na partida. O Grêmio foi muito melhor que o adversário na maioria das ações. A vitória já poderia ter vindo aos 14 minutos do primeiro tempo, quando Borges só tinha Abbondanzieri.

Apesar de Jonas ter chutado duas vezes na trave, a maior oportunidade do gol no Gre-Nal foi esta, perdida pelo Borges. Foi de lascar!

Grande vitória, inesperada vitória. O jogo estava em 0 a 0 e, se terminasse assim, eu estava preparado para escrever vastos e rasgados elogios ao treinador Silas, que armou uma muralha à frente da área gremista e nunca perdeu a chance de contra-atacar – ou simplesmente atacar. Foi estupenda a atuação de todos os jogadores do Grêmio, inclusive o menino Neuton, estreante da lateral esquerda, sobre quem recaiu grande responsabilidade, tendo se saído airosamente.

Silas é o grande herói desta vitória.

Não é fácil dominar o Internacional no Beira-Rio. Pois o Grêmio dominou e tomou conta do gramado no segundo tempo.

Havia uma grande e inteligente faixa diante da torcida colorada no estádio: “Bem-vindos ao inferno!”.

Sabe-se que o Beira-Rio é um inferno, mesmo, para os adversários quando está lotado.

Pois o Grêmio suportou esse inferno, enfrentou as labaredas, saltou sobre elas e acabou obtendo a maior vitória gremista dos últimos tempos, porque conquistada na casa do maior rival, porque o jogo era decisivo, porque desde 1993 o Grêmio não ganhava no Beira-Rio em Gre-Nais do Gauchão, porque os 2 a 0 permitem que o Grêmio ganhe o título mesmo que possa vir a perder por diferença de um gol no Gre-Nal do Olímpico.

E porque, principalmente, Guiñazu levou o terceiro cartão amarelo e não joga o segundo Gre-Nal.

Na Gaúcha, um torcedor do Grêmio flauteou no fim do jogo: “Se o inferno é aqui, eu quero voltar aqui mais vezes”.

Brava torcida gremista que foi ao Beira-Rio e acreditou na vitória. Esses quase 2 mil gremistas são a joia da coroa do clube das três cores.

Eles enfrentaram 40 mil torcedores do Internacional e enfrentaram principalmente um favoritismo colorado que era admitido até pelos gremistas, ou seja, é uma façanha ainda maior comparecer fisicamente àquele inferno.

Se para quem é gremista já foi difícil e nervoso assistir ao jogo pela televisão, imaginem o que sofreram os quase 2 mil gremistas que foram ao Beira-Rio.

Eles são a essência do clube, eles são os heróis, parabenizo a cada um deles pelo feito, um abraço de solidariedade e admiração a cada um deles.

A grande vitória de ontem pertence a esse bravo punhado de torcedores.


26 de abril de 2010 | N° 16317
L. F. VERISSIMO


Impactos

Poucas coisas na vida são tão impactantes quanto uma grande orquestra tocando num espaço pequeno. “Impactantes” é a palavra certa: o sonzão da banda nos bate no peito, nos cerca por todos os lados e nos derruba, quase que literalmente. Uma boa banda é empolgante em qualquer circunstância.

Quando a circunstância é um bar onde o som não tem para onde ir a não ser pelos seus ouvidos, diretamente para suas entranhas, a experiência é inesquecível. Lembro que tive essa sensação quando ouvi a banda do Count Basie tocar no velho Birdland, em Nova York, há uns 200 anos. O Basie ainda era vivo e eu também.

O Birdland que existe hoje, em outro endereço, é uma versão racionalizada do Birdland de então, um porão apertado, com o teto baixo. Você pagava a entrada, descia uma escada e podia escolher: para a esquerda tinha um cercado com cadeiras para quem só queria ouvir; para a direita, mesas para quem podia pagar mais, o que nunca era o meu caso.

Ao primeiro acorde da banda do Count Basie, rebatido pelo teto baixo do Birdland, eu caí da cadeira. Exagero, mas foi como se.

Tudo isso para contar que tive uma sensação parecida há poucos dias ouvindo a banda Mantiqueira no bar Tom Jazz, em São Paulo. A orquestra, com suas 13 figuras, ocupava quase metade do espaço do bar, sem contar o mezanino.

Música brasileira de primeira qualidade, feita por virtuoses brasileiros, liderados pelo legendário Proveta no sax alto e clarinete, autor, também, da maioria dos arranjos. Casa lotada e entusiasmada. Ao primeiro ataque da banda, só não caí da cadeira, nem metaforicamente, por falta de espaço. Fantástico.

Outra experiência inesquecível em São Paulo foi ouvir a Mônica Salmaso cantando num teatro com o André Mehmari. Só os dois, voz e piano. Uma das melhores vozes e um dos melhores pianos que você pode ouvir em qualquer lugar do mundo.

E um repertório perfeito, que incluía o Senhorinha, do Guinga e do Paulo César Pinheiro, como se sabe a coisa mais bonita feita no Brasil depois da Patrícia Pillar.

E já que estamos falando de prazeres musicais, não deixe de ouvir o novo CD do Edu Lobo. Novas composições do Edu (algumas com o acima citado Paulo César) e alguns prazeres antigos, como quatro canções feitas pelo Edu com o Chico Buarque para os musicais Cambaio e o antológico Grande Circo Místico.

domingo, 25 de abril de 2010


FERREIRA GULLAR

Primeiro aninho

Viver em Brasília não era mole; nosso único divertimento era ver subir e descer os aviões

BRASÍLIA COMPLETA 50 anos de existência, mas pouca gente sabe que fui um dos organizadores da festa de seu primeiro aniversário. É que tinha sido convidado por Paulo de Tarso, o primeiro prefeito da cidade, a presidir a Fundação Cultural.

Aceitei o convite porque Brasília era uma coisa nova e instigante e também por ajudar-me a sair do impasse em que me encontrava: perdera o entusiasmo pelas experiências neoconcretas e não sabia que rumo tomar.

Tomei o avião que me levaria à nova capital e nele, por coincidência, ia o jornalista Raimundo Souza Dantas, convidado para ser oficial de gabinete do presidente Jânio Quadros. Soube, depois, como surgiu o convite. Jânio perguntara a José Aparecido de Oliveira, seu secretário particular, se conhecia um negro que pudesse trabalhar no gabinete presidencial. "Conheço", respondeu Aparecido. "Mas negro retinto?" "Sim, presidente, retinto." E Jânio: "Chame-o, quero-o ao meu lado".

Raimundo Souza Dantas não só era negro retinto como também distinto e terminaria embaixador em Gana. A notícia despertou tal entusiasmo que, quando ele voltou ao Rio de Janeiro, foi recebido no Galeão pela batucada de ritmistas das escolas de samba. Temendo que sua nomeação fosse rejeitada pelo Senado, pôs um revólver na sua mesa de cabeceira para fazer uso dele e livrar-se de um possível vexame. Não foi preciso.

Viver em Brasília, naquela época, não era mole não. O vento erguia nuvens de poeira -um talco vermelho que tisnava nosso rosto e nossas roupas. Não havia transporte coletivo. Eu me valia do carro da fundação. Nosso único divertimento era ir ao aeroporto ver subir e descer os aviões. Por isso, quando um grupo de teatro rebolado, do Rio, me telefonou propondo apresentar-se na cidade, topei sem hesitar.

O Teatro Nacional era, então, apenas uma casca de concreto, sem nada dentro. Como esperávamos apresentar, ali, em breve, um espetáculo de Jean-Louis Barrault, improvisáramos um palco e uma plateia para viabilizar a temporada.

Antes de Barrault, chegou o grupo carioca, cujo espetáculo se chamava "O Cão Chupando Manga". Ao assistir a um de seus ensaios, assustei-me com a licenciosidade das falas e das cenas e mais ainda quando passei a receber pedidos de altas autoridades para reservar-lhes ingressos a elas e suas famílias.

No dia seguinte à estreia, tal foi a indignação dos convidados que o presidente Jânio Quadros enviou um bilhete ao prefeito mandando tirar o espetáculo de cartaz. Quando os jornalistas me procuraram, declarei que não o faria, já que não era censor. Isso gerou uma crise que foi superada por um fato inesperado: o grupo fugira da cidade sem pagar-nos o aluguel do teatro.

Dias depois, o prefeito me chamava ao seu gabinete para tratar da comemoração do primeiro aniversário de Brasília. Na parte cultural, que a mim cabia, programei uma exposição do acervo do Museu de Arte de São Paulo, uma temporada do Teatro de Arena e um desfile da escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

Os dois primeiros eventos não implicavam maiores problemas, mas o desfile da Mangueira, sim, a começar pelo número de sambistas que teríamos que transportar até Brasília. Felizmente, a Aeronáutica se dispôs a colaborar, pondo à nossa disposição um avião onde caberiam umas cem pessoas.

Não era o ideal, mas dava para animar a festa, sobretudo porque, ao contrário dos outros eventos, este seria na rua, com participação dos funcionários todos e dos candangos que trabalhavam na construção da cidade.

Mal saiu na imprensa a notícia do desfile, meu gabinete se encheu de funcionários dos mais diversos órgãos públicos: eram mangueirenses que haviam sido transferidos para lá e queriam desfilar na sua escola. Desfilaram. Foi o grande acontecimento do aniversário da cidade. Era tanta gente que o prefeito quase não conseguiu chegar ao palanque.

Mas preparar as comemorações não foi fácil porque, naquela época, para conseguir um prego era preciso atravessar a cidade inteira. Um major do exército, para nos ajudar, definiu a situação: "O problema, doutor Gullar, é viatura e gasolina".

Passado o sufoco, fiz uma "embolada" que cantei numa festa na casa do prefeito:
"Não adianta, seu prefeito, abrir estrada
Não adianta carnaval na Esplanada
Não adianta superquadra sem esquina,
Catedral de perna fina/ Rebolado de menina
Que o problema é/ Viatura e gasolina."

Meses depois, Jânio Quadros renunciava e eu voltava ao Rio já com outra cabeça: trocara a vanguarda artística pelo engajamento político.

ELIANE CANTANHÊDE

O nosso Eyjafjallajoekull

BRASÍLIA - Lula deu aquele sorriso encantador de serpentes, e Ciro Gomes manteve a candidatura a presidente e trocou o domicílio eleitoral do Ceará, onde foi governador e prefeito da capital, para São Paulo, onde não é nada. O PSB blefou, estimulando seu sonho presidencial enquanto negociava suas boquinhas com Lula e o PT nos Estados. E o PT e o eleitor paulista não lhe deram legenda nem opção.

Mas o grande vilão do complô contra Ciro foi... Ciro. Política é a arte de somar, articular, manipular, e ele só divide, confronta, se isola.

Depois de anos inativo no Ministério da Integração e na Câmara, nosso vulcão Eyjafjallajoekull entrou em erupção. Era questão de tempo.

Sua coleção de lavas é espetacular. Não mais aquelas de 2002, contra mulheres, radialistas, repórteres, mas a atual. Ele passou anos xingando a suposta arrogância de São Paulo, mas transferiu o título para lá. Chamou Serra de "figura detestável", e agora diz que o tucano "é mais preparado, mais legítimo, mais capaz" do que Dilma. Foi fiel amiguinho de Lula todos esses anos, mas acha que o presidente "está navegando na maionese".

Sem disputar a Presidência nem o governo de São Paulo (o PT não deixou, e Mercadante vai hoje para o sacrifício), será que Ciro vai ter a pachorra de disputar a reeleição para a Câmara?!

Vejamos o que ele disse sobre seu mandato: "Nunca mais vou ser deputado na vida. Não tenho mais paciência de passar nove horas conversando fiado e não fazendo nada pela vida de ninguém". Se for para a reeleição, estará naturalmente se candidatando a não fazer nada.

O importante, porém, é avaliar o efeito Eyjafjallajoekull na eleição, como todos estão fazendo. O PSB fica mais livre para acordos estaduais. PT e o PSDB avaliam perdas e ganhos e como atrair os 10% de eleitores que estão soltos no ar. Quanto a Ciro? A erupção logo perde a graça e passa. Os voos de Serra e Dilma continuam normalíssimos.

elianec@uol.com.br

CARLOS HEITOR CONY

O tamanho da alma

RIO DE JANEIRO - A primeira vez que ouvi falar em computador foi um alumbramento. Faz tempo, aí pelo final dos anos 50, quando o chamado "cérebro eletrônico" ocupava quarteirões e podia responder a qualquer pergunta ou resolver qualquer questão. Além de grandes,como os navios, eram infalíveis como os papas.

Até que, anos depois, fui dirigir uma revista que prometia horóscopos e regimes de emagrecimento pelo computador. Foi contratado um equipamento monstruoso, cheio de bobinas enormes.

A revista distribuía um cartão a ser perfurado pelos leitores com os dados individuais. Recebia em casa o resultado. O sucesso foi tal e tanto que logo fizemos grafologia por computador. O leitor mandava um texto manuscrito, o equipamento decifrava o caráter e anunciava o futuro do cara.

Até que um dia decidi testar a eficiência do nosso redator mais importante e lido, que era exatamente o cérebro eletrônico.

Pedi um regime para emagrecer, recebi uma relação de alimentos que deveria evitar. Quanto ao horóscopo, fui informado que receberia uma herança que ainda não recebi e faria uma viagem que ainda não fiz. Pior mesmo foi o conselho para evitar mulheres de escorpião e libra. Fui feliz com elas.

Quanto à grafologia, o computador declarou-me um caráter impoluto, uma força de vontade capaz de criar mundos e fundos e uma deficiência de glóbulos vermelhos ou brancos, não me lembro mais.

Na Antiguidade, ninguém se metia em nada de sério sem antes consultar as vísceras dos pássaros. Tenho uma amiga que acredita em cartas, sejam elas ciganas, do tarô ou do baralho comum, que a ajudam periodicamente a quebrar a cara em questões de amor e dinheiro...

De minha parte, acho que tudo funciona desde que, como queria o poeta, a alma não seja pequena.

sábado, 24 de abril de 2010



25 de abril de 2010 | N° 16316
MARTHA MEDEIROS


Terapia do joelhaço

Extra, extra, só existe o seu desejo. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo

Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existe duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”.

Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar: “Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer?

Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce. Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara”. Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta.

Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo.

O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.


25 de abril de 2010 | N° 16316
MOACYR SCLIAR


Você não está se lembrando de mim

As pessoas em geral não perdoam o fato de serem esquecidas. Isso vale para o rosto, vale para o nome

Escrevo ficção há muitos anos. Nos meus romances e contos, figuram numerosos personagens, homens, mulheres, crianças. Pois bem: não sou capaz de descrever nenhum deles.

São criaturas absolutamente imaginárias, que estão no texto apenas para justificar o jogo de palavras que, ao fim e ao cabo, são a verdadeira realidade do ficcionista. As palavras, eu as conheço e as reconheço.

Tudo que preciso fazer, quando escrevo, é convocá-las lá do compartimento mental em que ficam, à espera paciente do chamado. E, quando se apresentam, não tenho o menor problema em identificá-las e em colocá-las no lugar certo.

A dificuldade em identificar personagens estende-se à realidade. Sou péssimo fisionomista; mais, sou péssimo em lembrar nomes. E isso é uma desgraça. As pessoas, com toda a razão, não perdoam esse tipo de esquecimento.

Daí resulta uma frase que sempre me deixa humilhado e consternado: “Você não está se lembrando de mim” (ou: “Tu não estás te lembrando de mim”, no caso do RS. É a mesma coisa, só varia a geografia).

Notem, não se trata de uma constatação, não é um comentário despreocupado e muito menos alegre. É uma acusação, uma magoada acusação. As pessoas em geral não perdoam o fato de serem esquecidas. Isso vale para o rosto, vale para o nome; é desagradável, por exemplo, ver o nosso nome grafado de forma errada. A mágoa tem uma dupla origem.

De um lado, e quando se trata de alguém que não vemos há muito tempo, a pessoa pensa: “Deus, devo ter envelhecido tanto que esse cara nem me reconhece”. Mas, mesmo quando se trata de esquecimento puro e simples, o interlocutor não desculpa.

Poderia cogitar de Alzheimer, por exemplo, o que forçosamente faria com que tivesse pena do esquecido; mas não, Alzheimer algum justifica essa falta. O raciocínio da pessoa é outro: esse sujeito me esqueceu porque não tenho importância para ele, não sou um político, um intelectual, um empresário, um profissional bem-sucedido; não sou ninguém.

Tal ressentimento é avassalador. Nunca esqueço (“nunca esqueço” é boa, ao menos neste contexto) uma história que me contou o poeta Ferreira Gullar, que é de São Luís do Maranhão, mas mora no Rio.

Uma vez voltou a sua cidade natal para lá autografar um livro. Na fila, estava alguém que havia sido muito importante em sua vida: o diretor do jornal para o qual trabalhara. Só que Gullar não lembrava o nome desse homem.

A fila avançava, e nada da memória funcionar. Por fim, ali estava o diretor a sua frente. Ferreira Gullar foi obrigado a confessar o esquecimento. Resposta do homem: “Você não lembra agora. Quando precisava de mim, você lembrava”. Virou as costas e foi embora.

Histórias como essa nos dão inveja dos políticos. Ouvi dizer que Paulo Maluf foi a uma convenção partidária em que havia mais de mil participantes. Ele sabia o nome de todos – e de suas mulheres (ou equivalentes). Alguém dirá: mas isso é uma coisa calculista, interesseira. Pode ser. Mas que funciona, funciona.

Certo, existem técnicas destinadas a corrigir este problema, ou, ao menos diminuí-lo. Mas, para os maus fisionomistas, tais técnicas, não servem de consolo. Elas não respondem à pergunta crucial: por que esqueci a fisionomia e/ou o nome de uma determinada pessoa? A psicanálise verá nisso o resultado de um conflito inconsciente.

Mas identificar o conflito nem sempre melhora a memória do esquecido. Mas a solução virá. Por intervenção divina: no Céu, todo mundo terá de usar crachá, com o nome em letras garrafais. E aí a frase “Você não está se lembrando de mim” será apenas uma lembrança, mesmo que inesquecível, do passado.


25 de abril de 2010 | N° 16316
PAULO SANT’ANA


Feliz ou infeliz

O tema hoje é o que mais almejam os seres humanos: a felicidade.

Já escrevi certa vez que os filósofos erram quando dizem que o supremo dever do homem é a busca da felicidade.

Mas, se os próprios filósofos declaram que a felicidade, por ser efêmera, não existe, como pode ser dever do homem procurar o que não existe?

Então, eu corrigi os filósofos: por revés, o dever do homem na Terra é buscar ser menos infeliz.

Aí que entra o célebre verso do Ataulfo Alves, o grande sambista: “Eu era feliz e não sabia”. Esse verso é uma adaptação do dito de filósofos, que sempre perquiriram que o homem muitas vezes não sabe que é feliz.

Eu iria mais adiante: o homem só é feliz quando não sabe que é feliz, o que no fim das contas nada significa.

E por outra parte pergunto: não é de todo pertinente que o homem também não saiba que é infeliz?

Eu, de minha parte, garanto que o homem só pode se sentir feliz quando, sem saber, ele é infeliz.

Ou de maneira mais radical: só um idiota pode se sentir feliz.

Só pode dizer que era feliz e não sabia quem venha posteriormente a ser tão infeliz que passe a invejar o estado anterior que ostentava.

“Eu era feliz e não sabia” quer dizer que não gozou da felicidade por desconhecer que com ela tratava.

E só agora, que é infeliz, tem consciência de que aquele estado que vivia era o de felicidade.

Ora, quem é feliz e não sabe que é feliz, por lógica, não é feliz.

Em suma, para ser feliz é preciso sentir-se que é feliz.

Já aquele que é infeliz e não sabe, por lógica, é feliz. É uma espécie de loucura delirante, a pessoa sofre e não sabe que sofre, por consequência não sente a dor e o infortúnio quando estes batem à sua porta, invadem seu domicílio e a submetem.

Ou seja, os que são infelizes e o desconhecem ou são muito fortes, ou estão loucos.

Pode-se dizer que são felizes.

É que no meio desses estados existem outros mil, como, por exemplo, o dos que são felizes tão somente por estarem sempre esperando a felicidade. É a felicidade da esperança, a felicidade dos crentes que têm a certeza de que Deus virá para chamá-los para o reino dos céus.

A única felicidade para eles consiste em esperar a felicidade. Isso é o que se chama de sonho.

O sonho é o lenitivo para o sofrimento, sofre-se, mas mergulhando no sonho o sofrimento passa a não doer, passa a não existir, sobrepujado pela esperança.

Além disso, o estado de felicidade é sempre cotejado com a felicidade ou a infelicidade alheia.

É impossível ser feliz se moram ao nosso lado ou convivem conosco pessoas que consideramos felizes.

A felicidade alheia, muitas vezes, é a causa única da nossa infelicidade.

Muitas vezes é impossível para nós encarar com naturalidade a felicidade alheia. Ela nos agride e não raro nos torna infelizes.

Por todas essas barafundas, não há nada mais difícil, senão impossível, do que ser feliz.


25 de abril de 2010 | N° 16316
DAVID COIMBRA


Marcela, a leviana

Brás Cubas, embora morto, já que narrava sua história a partir do negror da tumba, foi personagem imortal de Machado de Assis. Pois Brás Cubas, quando vivo, e bem vivo, envolveu-se com Marcela, espanhola tão bela quanto leviana.

Como sói acontecer com os homens, quando eles se envolvem com mulheres belas e levianas, Brás Cubas deu-se mal. Depois de ter sido abandonado pela cachopa, desabafou, num suspiro de dor:

“Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis”.

Não se poderia dizer o mesmo de certos jogadores? Quando chegam, eles amam, eles beijam o escudo do clube, falam dessa torcida maravilhosa.

Em campo, a bola vai sair para a lateral, eles sabem que não a alcançarão, mas se atiram de carrinho na direção dela, vão deslizando pela grama, vão arrancando leiva, e as arquibancadas estremecem de paixão. O torcedor vê neles a garra, a alma guerreira que tanto preza.

Passam-se, porém, menos do que os 15 meses de Marcela e vem alguém e lhes oferece pouco mais do que 11 contos de réis. Não precisa ser um espanhol, um italiano. Pode ser qualquer croata, qualquer ucraniano, até um árabe, não importa, o que importa são os contos que eles agarram com idêntica gana com que dão carrinho atrás da bola perdida, e bandeiam-se para outro clube e lá beijam escudo e chamam a torcida de maravilhosa.

Levianos como Marcela, é o que são.

Promiscuidade

Segunda-feira, durante a nossa fremente reunião de pauta, espocou um assunto: no Gre-Nal deste domingo deve haver apenas um gaúcho em campo: Bolívar. Nenhum dos outros jogadores viveu desde a infância a rivalidade Gre-Nal. Isso influenciaria no clássico? A maioria dos colegas achou que não, que hoje todos os jogadores são profissionais e que se comportam com a mesma frieza em qualquer partida. Durante a semana, ficou provado que sim.

Leandro, jogador do Grêmio, não contente em tão-somente ser conselheiro de Walter, centroavante do Inter, emprestou seu apartamento para Índio, zagueiro do mesmo Inter. O que ele faz pelos jogadores do Grêmio não se sabe, mas os colegas colorados estão bem servidos. Inclusive na outrora sagrada semana do Gre-Nal.

Como a torcida do Grêmio vai receber Leandro no jogo de hoje, depois de toda essa promiscuidade? Se Leandro fosse daqui, se tivesse crescido no bolor da rivalidade, saberia que um jogador do Grêmio não é inimigo de um jogador do Inter, mas será sempre o seu principal adversário. Saberia que um fracasso em Gre-Nal pode significar o fracasso de um jogador no clube.

Não saber disso, ou agir como se não soubesse disso, é ser leviano. É ser como Marcela.

Só o que importa

O único jogo que realmente importa, para gremistas e colorados, é o Gre-Nal. Atenção: não é o que mais importa. É o ÚNICO que importa.

Porque os títulos, as vitórias, as derrotas e os fracassos de um só têm relevância quando confrontados com os do outro.

Grêmio e Inter foram campeões do mundo. O que interessam esses títulos para o torcedor do Flamengo ou o do Palmeiras? Nada. Ou quase nada. No máximo, o torcedor de outro clube vai olhar para a Dupla Gre-Nal com uma réstia de admiração.

Mas apenas uma réstia e apenas admiração, nunca inveja, que inveja se tem de quem está próximo, nunca orgulho, que orgulho se sente do que se é dono.

O futebol só existe por isso: para despertar o orgulho ou a inveja. Existe pelos sentimentos fortes, jamais pelos pálidos. Sentimentos ralos como a admiração ou a simpatia não são suficientes para sustentar o futebol.

Por isso, só o Gre-Nal importa. Assim, no fim deste domingo, alguns jogadores serão amaldiçoados, enquanto outros serão glorificados. Porque um torcedor irá para casa com orgulho, enquanto outro irá com inveja. E é só isso, só o orgulho e a inveja, só o Gre-Nal importa.


Demos graças a Grace

Exposição em Londres reverencia Grace Kelly, a atriz que encerrou a carreira no auge para virar princesa e assim congelou para sempre
sua imagem de clássica perfeição

Kobal/Other Images
ACIMA DO TEMPO



Grace numa nuvem de chiffon, no antológico vestido de Janela Indiscreta, e fazendo de escudo a bolsa famosa (na foto à direita): elegância suprema

Em seu apogeu, Hollywood especializou-se em criar dois tipos de divindades femininas, arquétipos de mulheres cravados no fundo da mente coletiva da humanidade. Uma era a diva: temperamental, volátil, complicada, erótica, dionisíaca.

Em outras palavras, Marilyn Monroe. A outra era a deusa: clássica, etérea, enigmática, apolínea. Em resumo, Grace Kelly. As mulheres intuíam que os homens desejavam Marilyn, mas no fundo elas sempre quiseram ser Grace.

Ou, pelo menos, ter as roupas dela. Sinônimo de classe, porte, graciosidade e elegância supremamente acima de tendências, a deusa Grace (de pés de barro: reparem nos dedos largos e nas unhas achatadas na foto à esquerda) chegou a batizar oficialmente em 1955, no auge do sucesso, um jeito de vestir: o "visual Grace Kelly", manual de bom gosto e bom comportamento que consistia basicamente, na avaliação do jornal especializado WWD, de "vestidinhos acinturados, tailleurs bem desenhados e, à noite, longos de chiffon".

Perfeita de roupa de baile ou calça e camisa masculinas, Grace atingiu o status reservado apenas àquelas privilegiadas para quem a elegância brota como uma fonte interior e atemporal.

Na foto à direita, por exemplo, fora as luvas brancas, tudo poderia ser usado hoje: os óculos escuros, as sapatilhas, o tubinho seco, o casaco volumoso e, claro, a bolsa – ela mesma, a Kelly original, tão exibida hoje por celebridades que de Grace não têm nada, delicadamente empunhada por ela para proteger da curiosidade dos fotógrafos os sinais de gravidez de Caroline, sua primeira filha do antológico casamento com o príncipe Rainier de Mônaco.

Esse estilo clássico reina soberano na exposição de roupas, acessórios e fotos da atriz que virou princesa recém-inaugurada no Victoria and Albert Museum, de Londres. "Poucas pessoas merecem ser chamadas de ícone. Grace Kelly com certeza é uma delas", diz Jenny Lister, curadora da exposição.

Filha de milionário que se fez do nada, educada em boas escolas, Grace Kelly tinha os fundamentos básicos para se transformar na beleza clássica por excelência. Pele cremosa, maxilares bem desenhados, nariz perfeito, sobrancelhas intermináveis, olhos azuis bem separados por alguns estonteantes centímetros e uma expressão que podia significar "vem" ou "pare", ou alguma coisa entre os dois.

Incentivada pela mãe nadadora e pelo pai remador e campeão olímpico, estudou balé, aprendeu tênis, fez equitação e se aprimorou em tudo o que se esperava de uma jovem de família rica na época. Menos, evidentemente, se tornar atriz. Todas as resistências foram vencidas sem dramas nem escândalos, como tudo o que sempre fez.

De repente, como num passe de mágica, Hollywood assistiu à explosão do fenômeno Grace Kelly. A beleza gelada e o guarda-roupa quentíssimo eclodiram em 1955, quando Grace tinha 26 anos, num dos três filmes que fez com Alfred Hitchcock, o clássico Janela Indiscreta, em que surge como uma visão de esplendor no vestido de corpete de veludo negro e imensa saia esvoaçante de chiffon branco.

Obra de Edith Head, a grande figurinista da Paramount, a quem Hitchcock encomendou trajes que lembrassem as etéreas bonecas de porcelana de Dresden.

A mesma Edith desenharia o longo de cetim verde-azulado com que Grace Kelly deslumbraria em três ocasiões (sim, ela repetia roupas): numa pré-estreia, em capa da revista Life e ao ganhar o Oscar de melhor atriz. Mas foi a maior concorrente de Edith, Helen Rose, da MGM, quem no ano seguinte produziu (com 35 costureiras e bordadeiras) seu vestido de casamento com o príncipe Rainier, uma exaltação à pureza núbil que provocou piadinhas cínicas ("Sou tão velho que conheci Grace Kelly desde antes de ela ser virgem").

Numa reviravolta acompanhada no palco mundial em escala que só seria comparável, posteriormente, à despertada pela princesa Diana, em 1956 Grace saiu da cena de Hollywood e entrou numa realeza meio recauchutada, a de Mônaco, mas suficientemente pomposa para despertar todos os infinitamente repetidos clichês sobre contos de fada.

Com uma princesa de beleza deslumbrante vinda diretamente de Hollywood quase na sua porta, os grandes costureiros de Paris fizeram fila para vestir Grace – e pela primeira vez ela começou a usar alta-costura, com a classe de sempre. É desse período a maioria dos cinquenta vestidos mostrados na exibição, todos emprestados da espetacular coleção abrigada no palácio de Mônaco.

Sua Alteza Sereníssima usava Balenciaga, Givenchy e, principalmente, Dior, grife dirigida na época por Marc Bohan. "Era uma ótima forma de divulgar as coleções", diz a representante da Dior no Brasil, Rosângela Lyra, para quem, "guardadas as devidas proporções, podemos dizer que Carla Bruni é a versão moderna de Grace Kelly".

Grace Kelly, já deu para perceber, não era santa. Por falta de vergonha na cara (segundo as traídas), para conquistar a atenção masculina que nunca teve do pai ou simplesmente porque gostava de homens bonitos, o "vulcão coberto de neve", na definição de Hitchcock, vivia em erupção.

A lista, entre apócrifa e confirmada, inclui quase todos os atores com quem contracenou (William Holden, Clark Gable, Gary Cooper, Bing Crosby, Marlon Brando, Ray Milland), o presidente John Kennedy e, depois de casada, Aly Khan e o xá do Irã. Isolada num casamento de fachada, limitada pelas exigências do cargo e com os filhos crescidos, a certa altura Grace Kelly passou a beber demais e a se queixar da vida.

"Eu sei onde tenho de estar todos os dias pelo resto da minha vida", comentou, chorando, com o produtor John Foreman. Em 14 de setembro de 1982, dois meses antes de completar 53 anos, sofreu um derrame na direção de seu carro e despencou de um abismo na Riviera Francesa. Foi o tempo justo para evitar a decadência que se avizinhava e entrar no panteão dos mitos.

Fotos Philippe Halsman/Magnum/Latin Stock, Sipa Press e Camera Press/Other Images
COMO UMA DEUSA



Escultural no longo de cetim que repetiu em três ocasiões (à esq.), falsamente virginal entre as madrinhas no casamento com o príncipe de Mônaco e outonal, no palácio, vestindo Dior (à dir.): ícone de estilo