quarta-feira, 30 de novembro de 2016



30 de novembro de 2016 | N° 18702
MARTHE MEDEIROS

O inusual

Costumo ir ao Rio com frequência para cumprir compromissos, e sempre volto com alguma história para contar, ainda que nem sempre conte. Desta vez, trouxe duas que valem o registro.

A mais incrível foi ter sido entrevistada pelo Tony Ramos para a segunda temporada do programa A arte do encontro, que vai ao ar pelo Canal Brasil. Não bastasse o privilégio do convite, o que aconteceu durante a gravação me fez duvidar do meu instinto de preservação: sem aviso prévio, sem ensaio, com o programa em andamento, fui intimada a fazer com ele a leitura de um trecho de um livro de Philip Roth. 

Cinco páginas de diálogos entre um homem e uma mulher. Deveria ter saído correndo, mas não só encarei, como fui atrevida o suficiente para dar um leve toque de interpretação à minha personagem, a fim de não deixá-lo atuando sozinho. Ao final da cena, eu estava emocionada, não porque tenha sonhado alguma vez em ser atriz, mas porque sempre acreditei que a maravilha da vida está nesses pequenos milagres embrulhados para presente e entregues na sua mão num dia que você pensava que seria igual aos outros.

A segunda história: eu estava no Rio, também, para fazer uma sessão de autógrafos, que aconteceu às seis da tarde numa livraria lotada, em Ipanema. Eu estava sentada nos fundos do ambiente, à distância de uns 50 metros da única porta de entrada. 

Havia dezenas de pessoas à minha frente, todas aguardando sua vez, com celulares em punho para a selfie. Perto de mim, meu editor, alguns amigos, o staff da livraria, um garçom oferecendo água. Todos os olhares convergiam para onde eu estava, e então, casualmente, dei falta da minha bolsa, que estava apoiada no encosto da cadeira. Achei que alguém a tivesse guardado, mas não: ela foi furtada diante dos olhos de todos por uma gangue. 

As câmeras internas de segurança registraram a ação. Um homem e duas mulheres entraram na livraria apinhada, caminharam até onde acontecia a muvuca, e com uma ousadia bem ensaiada, fizeram um furto num ponto onde não haveria rota de fuga no caso de um flagrante – mas nada disso os intimidou. Foram bem-sucedidos não porque não houvesse ninguém olhando: foram bem-sucedidos porque todos estavam olhando – mas as pessoas só enxergam aquilo que esperam ver.

O inusual nunca está no script. Mas ele acontece, para o bem e para o mal, desmontando as nossas previsões. Estamos em plena vigência da experimentação da vida, com tudo o que ela traz e nos tira. Nossa obrigação? Manter os olhos abertos para além do previsível, e a alma preparada.    -

Este texto já estava pronto quando soube da tragédia de ontem: para esse tipo de episódio inusual, nunca estamos preparados. Minha profunda solidariedade à família dos atletas e jornalistas falecidos, e um abraço muito especial aos amigos Georgete e Paulo Paixão.



30 de novembro de 2016 | N° 18702
EDITORIAL

O CONFORTO DA SOLIDARIEDADE

O Brasil se une num mutirão de solidariedade para o mais importante: dar integral atendimento aos sobreviventes e apoiar as famílias das vítimas.

A tragédia que vitimou atletas, jornalistas, dirigentes, profissionais do esporte e tripulantes do avião que conduzia a delegação da Chapecoense à Colômbia une o Brasil na dor e no desalento, mas também desperta um forte sentimento de solidariedade coletiva. Impactados pela triste notícia da madrugada de ontem, os brasileiros logo começaram a se mobilizar para aliviar o sofrimento dos familiares e amigos das vítimas, primeiro pela busca de informações consistentes e confiáveis sobre o acidente, em seguida pelas providências das autoridades para dar assistência aos parentes dos mortos e feridos e, na medida em que as piores notícias se confirmavam, pelo sentimento de pesar, pela oração, pela disposição de ajudar e pelo carinho de milhares de pessoas anônimas que se alinham voluntariamente ao clima de consternação nacional.

Dar integral atendimento aos sobreviventes e apoiar as famílias das vítimas são as urgências do momento. Neste sentido, merecem reconhecimento a agilidade e a presteza dos governos federal e catarinense para dar acompanhamento às famílias e também para colaborar com as autoridades colombianas na identificação, liberação e transporte dos corpos.

Igualmente sensatas e oportunas têm sido as providências adotadas pelas entidades que dirigem o futebol ao reorganizar o calendário esportivo e garantir condições especiais à Chapecoense para que continue participando das competições, com a anuência explícita e solidária dos demais clubes. Algumas agremiações, inclusive, já manifestaram a intenção de ceder atletas ao time catarinense, para recompor seu elenco.

O Brasil está unido neste mutirão de solidariedade. Porém, tão logo seja superado o impacto inicial, é essencial que as autoridades apurem com rigor as causas do acidente, principalmente para que dele se tirem os devidos ensinamentos no sentido de prevenir outros desastres dessa natureza. Reconforta constatar tanta cooperação e fraternidade, mas precisamos também transformar esses sentimentos grandiosos em ações práticas, para que a normalidade da vida seja retomada no seu devido tempo. A melhor homenagem que todos podemos fazer aos jovens atletas e aos demais profissionais que tiveram sua viagem interrompida é continuarmos a caminhada – com bravura e humanidade.


30 de novembro de 2016 | N° 18702
TRAGÉDIA NA COLÔMBIA

VOZES QUE SE CALARAM

O avião que carregava a Chapecoense rumo ao título da Copa Sul-Americana também conduzia os sonhos de profissionais que queriam contar essa glória.

A maior tragédia futebolística da história foi ao mesmo tempo a maior tragédia da imprensa brasileira. Ao todo, 20 profissionais de comunicação morreram na queda do avião. O sobrevivente Rafael Henzel está internado na Colômbia.

Entidades ligadas à comunicação em todo o país emitiram notas e prestaram homenagens aos profissionais mortos no acidente.

AS VÍTIMAS

GIOVANE KLEIN VICTÓRIA
Repórter da RBS TV de Chapecó, 28 anos
Gaúcho de Pelotas, Giovane desembarcou em Chapecó há pouco mais de três anos para acompanhar a mulher, Isabella Ibargoyen, também jornalista, na cidade do Oeste. Em 2015 entrou na RBS TV, onde fez amigos e deixou lembranças das brincadeiras na redação.
LAION MACHADO ESPÍNDULA
Repórter do Globo Esporte de Santa Catarina, 29 anos
Gaúcho de Terra de Areia, trabalhou no Correio do Povo e no Globo Esporte RS antes de ser contratado pelo site em Santa Catarina para, justamente, acompanhar a Chapecoense, que chegava à Série A do Brasileirão em 2014, após a Copa do Mundo. Em Chapecó, Laion também virou professor do curso de Jornalismo em uma faculdade da região.
DJALMA ARAUJO NETO
Cinegrafista da RBS TV Florianópolis, 35 anos
Pai de dois filhos, ele estava desde 2003 nos quadros da RBS TV e tinha experiência em coberturas esportivas, como os Jogos Pan-Americanos do Rio em 2007. Era considerado um dos melhores cinegrafistas do Estado, principalmente em partidas de futebol.
BRUNO MAURI DA SILVA
Técnico de externas da RBS TV, 25 anos
O cuidado com o sinal de imagem dos jogos dos times catarinenses estava sob sua responsabilidade. O palhocense de 25 anos era um dos profissionais de confiança do setor técnico para grandes coberturas. Formado no curso de tecnólogo de Telecomunicação do Instituto Federal de SC (IFSC), Bruno trabalhava na RBS TV desde 2012.
André Luiz Goulart Podiacki
Repórter de esportes do Diário Catarinense, 26 anos. Era natural de Florianópolis e formado pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina.
Victorino Chermont
Repórter do Fox Sports, 43 anos. Era natural do Rio de Janeiro e tinha passagem pela Rede Globo.
Deva Pascovicci
Narrador do Fox Sports, tinha 51 anos. Passagens por TV Manchete, SporTV e Rede CBN.
Edson Luiz Ebeliny
Nascido em Chapecó e conhecido como Picolé, era repórter e locutor na Rádio Super Condá (AM 610), de Chapecó, onde trabalhava desde 2003. Viajava acompanhando as partidas do time. Instantes antes do embarque em São Paulo, na segunda- feira, postou no Facebook: “Vai começar a viagem. Guarulhos para Bolívia/Bolívia Colômbia. #cobrirdecisão #chapecoense é o Brasil na final. Um abraço a todos!” Deixa mulher e filhos.
Gelson Galiotto
Natural de Rondinha (RS), 41 anos. Era narrador esportivo da Rádio Super Condá (AM 610), de Chapecó. Atuava na emissora desde 2001.
Jacir Biavatti
Conhecido como Jotha Biavatti, era locutor esportivo na Vang FM Xaxim e repórter da RICTV. Nasceu em Dois Vizinhos (PR) e tinha 46 anos.
Renan Carlos Agnolin
Repórter da Rádio Oeste, 27 anos. Também era apresentador na RicTV, filial local da Rede Record, e já havia sido repórter na Rádio Super Condá AM. Renan era natural de Erechim.
Fernando Schardong
Conhecido como Fernando Doesse, era narrador esportivo da Rádio Chapecó. Somava mais de 25 anos de atuação como radialista, jornalista e cronista esportivo. Mantinha o Blog do Fernando Doesse, em que dava destaque à Chapecoense. Casado, era natural de Ibirubá (RS).
Douglas Dorneles
Repórter esportivo da Rádio Chapecó, era setorista da Chapecoense. Tinha 36 anos.
Paulo Júlio Moraes Clement
Comentarista do Fox Sports, 51 anos. Jornalista, tinha passagens por SporTV, pelo Jornal do Brasil, pelo jornal O Globo e como editor da versão brasileira do jornal Marca. Foi assessor de imprensa do ex-centroavante Ronaldo Nazário.
Lilacio Pereira Júnior
Conhecido como Jumelo Pereira, era coordenador de externas da equipe do Fox Sports. Ele tinha 48 anos.
Rodrigo Santana Gonçalves
Cinegrafista da equipe do Fox Sports, 35 anos. Recém havia retornado da Alemanha, onde havia participado de uma entrevista especial com o técnico do Bayern de Munique, Carlo Ancelotti.
Guilherme Marques
O repórter Guilherme Marques tinha completado 28 anos na sexta-feira. Ele estava na Globo desde 2013. Antes, tinha trabalhado como produtor e repórter na TV Brasil. Guilherme nasceu no Rio e era apaixonado por futebol e samba. Ele cobriu a elite do Carnaval carioca no ano passado.
Guilherme Laars
O produtor Guilherme Van Der Laars tinha 43 anos e trabalhou nos jornais Lance! e Extra. Trabalhava na TV Globo desde 2011. No Esporte Espetacular, Guilherme foi um dos responsáveis pela série “A base”, que fez uma análise sobre os problemas do futebol brasileiro. Ele era casado, tinha dois filhos e a mulher está grávida do terceiro.
Ari de Araújo Júnior
Cinegrafista da Rede Globo, 48 anos. Recebeu uma homenagem de colegas da emissora. Para Tiago Leifert, apresentador da emissora, “foi uma lenda, um gênio, o melhor cinegrafista da equipe”.

NOTA DE PESAR GRUPO RBS

O Grupo RBS sente profundamente a tragédia ocorrida com o avião que transportava a delegação da Chapecoense na Colômbia e se solidariza com familiares e amigos das pessoas que estavam a bordo: jogadores, integrantes da comissão técnica, dirigentes, profissionais da imprensa e tripulantes. Aos resgatados com vida, desejamos força, coragem e pronta recuperação.
Lamentamos a perda de uma equipe formada por jovens talentos do futebol e de uma comissão técnica competente e comprometida em elevar o nome da Chapecoense.
Dedicamos o nosso carinho especial às famílias dos profissionais de imprensa que acompanhavam o clube e estavam engajados em registrar da melhor forma uma final inédita para o time catarinense: André Podiacki, Giovane Klein, Bruno Silva, Djalma Araújo Netto e Laion Espíndula, colaboradores da RBS em Santa Catarina, e os colegas da Rede Globo, Fox Sports, Rádio Super Condá, Rádio Chapecó e Rádio Oeste Capital.
Nosso pesar e amparo se estende ao Estado de Santa Catarina e à comunidade de Chapecó, que ajudaram a construir uma história de sucesso e superação no esporte brasileiro e vivem um momento de desolação por essa perda dolorosa e irreparável.

30 de novembro de 2016 | N° 18702
ARTIGO

UMA LÁGRIMA DOLORIDA POR CHAPECÓ

Se o Brasil todo, inclusive o Rio Grande do Sul, fosse metade da pujança de Chapecó, seríamos hoje Primeiro Mundo. Chapecó reuniu, há poucas décadas, gente, principalmente do RS, Paraná e São Paulo, que queria progredir.

Permitam-me explicar aos leitores jovens. Com as imigrações alemã e italiana, os colonos se fixaram em terras, inclusive do nosso Estado, que, com o aumento populacional, logo se mostraram insuficientes. Ocorreu, então, há menos de um século, uma diáspora de colonos, pequenos comerciantes, artesãos, para o oeste catarinense. Eu era um menino e me lembro que vários tios, por parte da mãe, eram agricultores e partiam com caminhões velhos, em direção às “terras novas” de Santa Catarina.

Itapiranga, São Miguel do Oeste, Chapecó, eram as palavras mágicas. A colonada, rude e determinada, largou Santa Cruz, Venâncio Aires, Lajeado, Estrela (as colônias velhas), em direção a uma vida melhor.

Chapecó foi isto: o destino dos sonhos de quem queria mais terra para trabalhar.

Chapecó não tinha praias, nem palmeiras, nem cachoeiras. Muito menos facilidades e mordomias.

Foi sua gente que fez a diferença. Em todo o mundo é assim: a gente faz o lugar ser bom ou ruim.

“Labor omnia vincit”, como me ensinaram os jesuítas.

Em Chapecó, portanto, ocorreu um progresso, em todos os sentidos, que não perde para lugar nenhum do mundo.

E não é que um grupo de abnegados decidiu montar um clube de futebol como organizam seus próprios negócios? Com probidade. E a semente germinou, como todos constatamos.

Uma tragédia, infelizmente, se abateu sobre Chapecó.

Que nos sirva de lição o gesto do clube colombiano que pediu que a Chapecoense fosse coroada a campeã da Sul-Americana. Gesto nobre em homenagem a uma gente nobre.

Chapecó, ao menos para mim, será para sempre a cara que o Brasil, às vezes podre, deveria ter.

Cara limpa, alegre, séria, honesta, empreendedora.

O mundo se dá conta, agora, de um Brasil diferente.

Pena, lástima, que foi desse jeito.

Advogado ruy@gessinger.com.br




29 de novembro de 2016 | N° 18701
CARPINEJAR

    Pasta de couro

    É cada vez mais comum executivos com mochila. Homens engravatados carregando uma mochila, como se estivessem indo ou voltando da escola. Adultos feitos, mas com um toque infantil atrás das costas, tal asas de querubins.

    Não levam nada nos bolsos da calça e do casaco, tudo segue nos ombros: documentos, celular, garrafinha d’água e algum agasalho na hipótese de uma esticada do emprego para a noite.

    A mochila é o equivalente à bolsa feminina. Os varões se renderam à prevenção de um dia fora de casa. E também é a herança de uma adolescência que não termina mais.

    São outros homens de outros tempos. Não mais como os antigos funcionários de bancos, empresários e corretores que andavam com uma pasta de couro e precisavam de uma mesa inteira para abrir as suas verdades.

    A pasta de couro está extinta, esta que já foi um grande símbolo da virilidade financeira. Quem tinha emprego importante exibia a sua pasta preta ou marrom. Ela era um cofre com senha e chave, havia espaço para papéis e canetas especiais. Muitas continham um fundo falso para ocultar documentos preciosos.

    Os filhos esperavam o momento para espiar o seu conteúdo. Ficavam às voltas da chegada paterna para ver se ele abriria distraidamente a pasta. Sempre foi emocionante ouvir o claque da abertura dos dois lados. O suspense alterava o meu batimento cardíaco.

    Lembro da seriedade do meu paizinho. Ele largava o pacote dos pãezinhos em cima do sofá para nos abraçar e eu me esforçava para me livrar dos beijos dele e acompanhar os movimentos da pequena maleta.

    Além da pasta, ele pertencia ao time das carteiras de mão. Quando não estava a trabalho, caminhava segurando uma carteira imensa, algo como uma pochete longe do cinto. Naquela época, o cheque mandava no pagamento das contas.

    Ninguém circulava com cartões de crédito, o que vigorava era o talão com espaço nobre na carteira, que permanecia esticado com duas tiras prendendo as suas pontas.

    Não acho que o passado fosse melhor, eu apenas não consigo olhar qualquer coisa sem comparar. Ver é automaticamente retornar ao passado. Talvez esteja sempre comparando o que sou e não sou.

    Ou comprei todas as lembranças de minha infância no fiado e só agora, depois dos 40 anos, vou pagando.

29 de novembro de 2016 | N° 18701
ARTIGO | DENIS LERRER ROSENFIELD*

    "NORMALIDADE"

    Há uma exigência incontornável da sociedade brasileira hoje: a da moralidade pública.

    Tudo o que foge desse parâmetro na vida política é, imediatamente, objeto de crítica, senão de execração. As reações são imediatas. Os partidos e os políticos que não souberem reconhecer esse dado de base estarão fadados ao fracasso.

    Veja-se a indignação da sociedade em relação à autoanistia que um grupo de deputados e vários partidos, ocultamente ou abertamente, está tentando construir como se crimes eleitorais e outros pudessem ser simplesmente apagados.

    A reação foi imediata, levando, inclusive, o próprio presidente da República a declarar publicamente ser contra tal medida.

    Crimes políticos dos mais diferentes tipos não são mais perdoados. Casos que outrora poderiam ser considerados como menores, atualmente, possuem uma outra significação.

    Característico desse contexto é o episódio envolvendo o agora ex-ministro Geddel. Em uma situação absolutamente bizarra, a República ficou completamente paralisada por causa de um apartamento na Bahia, como se o país não mais tivesse com que se preocupar.

    O presidente da República, três ministros, a advogada-geral da União e um subsecretário da Casa Civil terminaram se envolvendo com os interesses particulares de um ministro incomodado com uma decisão administrativa que o contrariava.

    É como se o governo tivesse entrado em crise. O gabarito de um edifício baiano terminou produzindo uma tormenta de proporções. Dois ministros renunciaram e o próprio presidente foi obrigado a se explicar.

    Por que isto? Porque dois mundos não se comunicam, o da classe política, com seus costumes pouco afeitos à ideia do bem coletivo, e o da sociedade que clama pela ética na política.

    Há duas noções de normalidade em questão.

    Uma é a da classe política, que não viu nada de anormal no comportamento do ex-ministro Geddel, como se fosse algo corriqueiro. Foi preservado em um primeiro momento, pois o seu padrão de conduta caía em uma estranha noção de “normalidade”.

    Outra é a da sociedade, para a qual a moralidade é um eixo central da vida pública. Exige que a política se paute pelo bem coletivo.

    Ocorre que a classe política age segundo uma “normalidade” que não é reconhecida pela sociedade, que considera tal tipo de comportamento completamente anormal. É como se tivéssemos duas formas de vida que não se comunicam e, mesmo, se rechaçam. O preço a pagar por isto é alto.

    *Professor de Filosofia - denisrosenfield@globo.com

29 de novembro de 2016 | N° 18701Alerta
EDITORIAIS

O DRONE E O AVIÃOZINHO


Versão moderna do aviãozinho com a faixa Eles estão fora, que virou hábito no Estado sempre que um dos integrantes da dupla Gre-Nal fica para trás na etapa classificatória de alguma competição, o drone que sobrevoou o Beira-Rio no último domingo acrescentou um elemento preocupante na tradicional rivalidade: a reação insana do grupo que depredou uma residência nas proximidades do estádio, na suposição de que o objeto voador tivesse partido de lá. O aparato portava um pequeno cartaz com a letra B, evidente alusão a uma eventual queda do Inter para a Série B do Campeonato Brasileiro.

A “flauta” é tão antiga quanto a própria rivalidade, mas também não é raro que resulte em violência quando torcedores mais exaltados entram em confronto. Tanto é assim, que as autoridades responsáveis pela segurança tomam providências preventivas sempre que há clássico ou risco de conflito, às vezes até mesmo entre torcedores do mesmo clube. 

Mas ninguém poderia prever que pessoas desequilibradas atacassem uma residência para depredar e agredir moradores, que nem sequer sabiam o que estava acontecendo no estádio. Mesmo que não tivesse sido um equívoco, como ficou constatado quando o dono da casa se revelou torcedor colorado, continuaria sendo um absurdo – e um caso de polícia, como efetivamente está sendo tratado.

Espera-se que os responsáveis pela selvageria sejam identificados e punidos. É essencial, também, que o triste episódio sirva de alerta não apenas para as autoridades, mas também para os próprios torcedores, independentemente de suas cores clubísticas, pois só eles têm poder para conjugar rivalidade com civilidade, e para manter a competição esportiva na sua devida dimensão.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Lidando com o 'mimimi', enfrentar as adversidades da vida fortalece

Associated Press
O seriado Chaves de onde veio a expressão "mimimi"
No ar no Brasil há 30 anos, o seriado Chaves foi ao ar no México pela primeira vez em 1971, e gravações foram até 1995
Quase todo mundo conhece a expressão "mimimi" da linguagem informal. Levei um tempo sem me interessar por seu uso, mas ela passou a ser tão presente em nosso cotidiano que decidi investigar.

Minha curiosidade: de onde ela surgiu. Eu me espantei ao saber que ela surgiu do personagem Chaves, de um seriado antigo que terminou em 1980 e exaustivamente reprisado, cultuado até hoje. Chaves, um moleque órfão, sempre que contrariado, emitia esse som "mimimi" para indicar seu choro.

Essa expressão passou a ser usada, sempre de modo pejorativo, para indicar reclamações sem justa causa, frescura, manha etc. Até em uma peça publicitária ela já apareceu e provocou muitas reclamações das mulheres porque chamou de "mimimi" as reclamações das dores e do mal-estar provocados pelo período menstrual.

Agora, professores e pais têm usado a expressão com bastante frequência para nomear diversos comportamentos dos mais novos. Tudo agora virou mimimi. Então, vamos conversar a respeito dessa questão.

Sim: nós, educadores formais e informais, temos dado atenção a muitas reclamações de filhos e alunos, o que emperra e/ou paralisa o processo de crescimento e de aprendizagem deles, e não apenas no aspecto cognitivo.

Filhos reclamam das tarefas domésticas que devem realizar, do tamanho ou da dificuldade das lições que precisam fazer ou estudar, dos colegas que se comportam desta ou daquela maneira, das festas para as quais não foram convidados etc. E, quase sempre, os pais atendem, ou seja, dão importância a tais reclamações, e interferem.

O problema é que dar conta sozinhas de suas obrigações –todas possíveis– e enfrentar as adversidades da vida fortalece as crianças porque permite que elas criem mecanismos pessoais de defesa e, principalmente, de resiliência.

Em todas essas situações a interferência dos pais prejudica o desenvolvimento dos filhos em vez de ajudar! O que eles podem fazer de melhor nesses momentos é acolher as reclamações como legítimas, mas incentivar e encorajar o filho a realizar o que precisa, mesmo que isso exija muito esforço e dedicação.

Essa é uma grande lição que os pais podem dar, que colabora para a criança melhorar sua autoimagem. Ela percebe, ao realizar sozinha suas responsabilidades, seu potencial sendo colocado em ação, o que lhe dá mais confiança em si mesma. E tudo isso cabe também aos filhos adolescentes.

Dos jovens, falarei das reclamações que fazem aos professores, inclusive nas faculdades. É a data da prova, da entrega do trabalho, a quantidade de conteúdo a ser estudada etc., que eles querem adiamento e/ou redução ora porque é véspera de feriado ou de um jogo importante (!), ora porque o prazo é curto, ora pela quantidade do conteúdo indicado etc.

Quando os professores cedem, perdem sua autoridade e, principalmente, passam a ideia de falta de seriedade e de compromisso com a formação de seus alunos.


Pressionar e exigir são conceitos diferentes do conceito de cobrar. Os mais novos precisam ser cobrados a crescer porque esse é o destino deles. Muito melhor colaborar para que cresçam aprendendo, amadurecendo e se aprimorando pessoalmente do que permitir que cresçam apenas em idade e tamanho, não é? 



Mudar a si mesmo é difícil, mas, às vezes, necessário

Chris Leishman/Flickr
Algumas características pessoais podem provocar conflitos que parecem sem solução
Algumas características pessoais podem provocar conflitos que parecem sem solução

Comportamentos, hábitos e manias que cultivamos durante toda a vida se tornam profundamente enraizados e passam a ser considerados como parte da nossa própria natureza. No entanto, também é natural querer mudar tudo aquilo que é um obstáculo para a nossa felicidade.

Confesso que gostaria de conseguir mudar a minha natureza. Tenho um "defeito" considerado grave pelas pessoas que me cercam. Todas as minhas amigas e (ex) namorados/maridos sempre me criticaram: "você só gosta de trabalhar", "você não tem vida social", "você acha um verdadeiro sacrifício ter que sair da sua toca".
Reconheço que eles têm razão. Gosto de ficar em casa, quieta, tendo ideias para os meus projetos, preparando aulas e palestras, lendo, escrevendo, vendo um bom filme. Preciso de muita concentração e silêncio para trabalhar.

Consegui controlar a minha ansiedade e superar a minha introversão, insegurança e timidez na vida profissional. Mas na vida pessoal sou um verdadeiro desastre. Já fiz um enorme esforço para mudar a minha natureza: tentei sair mais, encontrar mais frequentemente os amigos, ir a festas. Mas, por mais que eu me esforce, nunca é o suficiente. Sempre acabo recebendo a mesma acusação: "você não é uma pessoa sociável". Tudo fica pior ainda quando sou comparada (ou me comparo) com mulheres que são naturalmente mais sociáveis e sabem como receber os amigos e a família.

Quanto mais eu tento corresponder ao modelo de mulher sociável, mais me sinto inadequada, imperfeita e culpada por ser do jeito que eu sou. No início de uma relação amorosa, naturezas diferentes são toleradas em função de um desejo maior: construir uma vida em conjunto. Com o passar do tempo, os desejos individuais se tornam mais fortes, as insatisfações aumentam e as cobranças para mudar se tornam constantes e até mesmo cruéis.

Algumas características pessoais podem provocar conflitos que parecem sem solução. Mudar, só para se ajustar aos desejos dos outros, pode se tornar uma violência contra a própria natureza. Em algum momento da vida, pode ser na juventude ou até mesmo na velhice, descobrimos uma triste realidade: precisamos mudar!

Eu quero (e preciso) mudar. Mas será possível mudar a própria natureza?

segunda-feira, 28 de novembro de 2016



28 de novembro de 2016 | N° 18700
SEM BARREIRA | David Coimbra

OS SES DO INTER


Valdívia havia corrido já uns 30 ou 40 metros com a bola nos pés. Estava na intermediária de ataque. Levantou a cabeça e, para seu desespero, viu seus companheiros de time mal posicionados. Não tinha opção de passe, não sabia o que fazer. Abriu os braços, demonstrando irritação. Então, decidiu arriscar. Enquadrou o corpo para bater com o pé direito.

Bateu. E não é que a bola entrou?

Foi uma dessas espetaculares ironias do futebol. Se o Inter estivesse bem treinado e organizado, Valdívia teria para quem dar o passe e talvez o Cruzeiro se fechasse a tempo e impedisse o gol. Como o contra-ataque foi obra de um homem só, uma iniciativa pessoal meio atrevida, acabou dando certo.

O gol de Valdívia demonstrou o que tem sido o Inter no Campeonato Brasileiro de 2016: um time que conta mais com as individualidades e com a eventualidade do que com a coordenação.

No jogo de ontem, essas individualidades até apareceram. Anderson, sem nenhuma dúvida, é o jogador com mais condições técnicas do grupo. Foi ele quem temperou o meio-campo e conseguiu, até certo ponto, fazer o que fazia D’Alessandro: dar ritmo ao time.

O Cruzeiro, que não tinha mais nada a fazer no Campeonato, jogou uma partida protocolar, esperando o erro do Inter para dar uma espetada e vencer. Poderia ter vencido, se o Inter não tivesse um goleiro diferenciado. Danilo, mais uma vez, salvou o time. Se o Inter se salvar, será por causa dele.

Poderá se salvar? 

Continua difícil. Os “ses” ainda pesam sobre o Beira-Rio. Se o Vitória, se o Sport... Quer dizer: o gol de Valdívia não significa nada. Mas pode significar tudo.

VONTADE DE FAZER GOL A vantagem do Grêmio sobre o Atlético Mineiro, na decisão da Copa do Brasil, significa tudo.

Mas pode não significar nada. Basta o Grêmio levar um gol, e os 15 anos sem conquistas relevantes desabarão sobre os ombros dos jogadores na Arena, a torcida ficará apreensiva, o ar ficará mais denso.

O Grêmio terá de jogar, basicamente, como jogou no primeiro tempo da partida de Belo Horizonte: com calma e sabedoria, mas também com agressividade. Se é verdade que não há necessidade de se arriscar parta marcar um gol, também é verdade que um time que espera demais o adversário acaba encontrando-o.

O Grêmio tem que atacar. Sem loucuras, sem dar espaço para o contragolpe. Mas com vontade de fazer o gol, com vontade de vencer. Time que não tem vontade de vencer não vence.



28 de novembro de 2016 |N° 18700 
DAVID COIMBRA

Quem foi o melhor? Médici ou Fidel?

Para o punhado de desmiolados que invadiu o Congresso gritando “queremos general”, dias atrás, a ditadura militar se justificava porque dava segurança e desenvolvimento.

Para os intelectuais que prantearam a morte de Fidel Castro, neste fim de semana, a ditadura cubana se justifica porque dá saúde e educação.

O que justifica uma ditadura?

Na verdade, não é segurança, desenvolvimento, saúde ou educação. Tanto para os esquerdistas quanto para os direitistas brasileiros, a ditadura se justifica quando é a “minha” ditadura. O ditador dos outros é mau, o meu é bom.

A esquerda brasileira é filha intelectual de Fidel Castro. Ele e Che Guevara são os grandes heróis românticos de pelo menos duas gerações de esquerdistas, em substituição a Stálin, desmitificado por Kruschev em 1956.

Esse sonho juvenil é sempre defendido por argumentos juvenis, a ditadura é relativizada e tem seus méritos comparados com os defeitos da democracia.

De fato, as democracias se diferenciam por seus defeitos e as ditaduras se diferenciam por suas qualidades. O que iguala as ditaduras é um único defeito: todas elas, absolutamente todas, deformam o caráter do povo que submetem. E o que iguala as democracias é também um só predicado: elas são o antídoto contra o veneno do autoritarismo deformador das ditaduras.

Não é possível comparar uma ditadura com uma democracia.

É possível comparar duas ditaduras.

Qual delas restringiu mais as liberdades: a ditadura militar brasileira ou a ditadura cubana?

A ditadura cubana matou muito mais opositores. Pelo menos 20 vezes mais.

Um cubano só sai do país com permissão do governo. No Brasil dos generais, qualquer um podia sair quando quisesse.

No Brasil, o mesmo ditador nunca ficou no poder por mais de quatro anos. Fidel permaneceu no mando durante metade de sua longa vida.

Seria a ditadura militar brasileira “melhor” do que a cubana?

Não.

Todas as ditaduras são ruins.

Já a democracia é difícil. A democracia negaceia, é lenta, tem imprensa fiscalizando, tem gente na internet escrevendo o que bem entende, tem advogado defendendo e acusando, tem juiz que condena e absolve, tem habeas corpus, tem debate, tem discordância, tem eleição de candidato de que a gente não gosta.

A democracia é uma chatice.

Crescer é uma chatice. A gente precisa assumir responsabilidades, tomar decisões, fazer por si mesmo.

A Europa precisou ser destruída por duas guerras para aceitar a democracia como um bem em si e rejeitar a priori qualquer ditadura.

O Brasil, exatamente por não ter passado por tamanho trauma, ainda sofre os efeitos da atuação do seu primeiro ditador, Getúlio Vargas.

Não é por acaso que os abilolados que invadiram o Congresso gritaram “queremos general”. Não é por acaso que os românticos da esquerda sonham com o benfazejo “comandante” ou com algum pai dos pobres.

Quem é o seu ditador favorito?

Você suspira pelo comandante Fidel, aquele ali anseia pelo general Médici. Não briguem, podem se abraçar. Vocês são iguais.



28 de novembro de 2016 | N° 18700 
EDITORIAIS

OS PODERES E A VOZ DAS RUAS

A pressão popular funcionou, e o ajustamento institucional anunciado ontem pelo presidente Michel Temer com o Congresso, para barrar articulações pela aprovação de uma anistia a políticos envolvidos em caixa 2, contribui para recolocar o país diante de sua real prioridade: o enfrentamento de uma perversa combinação de crise política com econômica. A crise política, inesperada por ressuscitar velhas práticas, como a mistura de interesses públicos com privados, não pode crescer a ponto de prejudicar a retomada do crescimento. Por isso, o compromisso público de presidentes de dois poderes com a moralidade não pode ficar apenas no discurso.

Na manifestação de ontem, o próprio presidente da República se disse convencido de que é preciso ouvir “a voz das ruas”. A sociedade, majoritariamente, tem consciência da gravidade da crise. Sabe também que não há saídas fáceis. No momento, as iniciativas que estão colocadas como prioridade são a aprovação da PEC fixando um teto de gastos para o poder público e a reforma da Previdência. Quem se desviar desse curso, como ocorreu no caso que levou à troca de comando na Secretaria de Governo e nas tentativas do Congresso de aprovar a anistia ao caixa 2, estará causando males irreparáveis ao país.

As medidas de austeridade propostas pelo Planalto apontam no sentido da recuperação econômica, mas este esforço pode ser prejudicado se o governo se descuidar de seus compromissos éticos. O governo não pode transigir com condutas pouco republicanas, nem contemporizar com os que veem o Estado como propriedade de quem está temporariamente no comando. Foi essa promiscuidade que tirou o PT do poder e, agora, pode inclusive obstaculizar reformas que são inadiáveis.

O FIM DE UM MITO

Com a morte de Fidel Castro, extingue-se também um modelo político que já vinha sendo substituído gradativamente em Cuba pelo pragmatismo da abertura comandada por seu irmão Raúl. Ainda assim, muitas das mudanças implantadas há mais de cinco décadas persistiam romanticamente associadas à figura mitológica do comandante da revolução socialista que derrubou o ditador Fulgêncio Batista, em 1959.

Desde então, o líder cubano impôs um regime de opressão ao povo da ilha caribenha e desafiou o capitalismo, representado principalmente pela superpotência vizinha, os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, tornou real uma experiência de sociedade baseada no igualitarismo, com conquistas inegáveis nas áreas da educação e da saúde. Hoje, esses avanços se mostram cada vez mais prejudicados pela deterioração acelerada de uma economia que não tem como se manter isolada indefinidamente.

Em boa parte de seus 90 anos de vida, o personagem visto por uns como ditador e por outros como líder revolucionário atuou como protagonista não apenas da história cubana, mas da América Latina e até mesmo de países africanos. Nessa trajetória polêmica, marcada por desrespeito aos direitos humanos e à atuação da imprensa independente, acabou comprovando uma verdade insofismável: a de que não pode haver igualdade sem liberdade.



28 de novembro de 2016 | N° 18700 
NÍLSON SOUZA

Zaz

Ninguém mais tem tempo para nada.

Dia desses, lendo o blog do meu amigo Mário Marcos, deparei com uma cantora francesa de voz rascante, que canta na rua e enche calçadas e auditórios com o poder de um flautista de Hamelin. Fiquei tão impressionado com o ritmo da moça, com seu visível prazer em cantar e com sua alegria contagiante, que acabei assistindo a vários vídeos de suas apresentações, tanto nas avenidas de Paris quanto em excursões pelo mundo. Ela já esteve até no nosso Araújo Vianna, no ano passado, mas, na época, eu ainda não a conhecia e sua passagem por aqui não me chamou atenção. Se a conhecesse, teria ido, sem dúvida. Seus fãs vão me chamar de analfabeto musical, mas assumo a minha ignorância.

Refiro-me a Zaz, o nome artístico de Isabelle Geffroy, que se tornou famosa com a canção Je veux, um hino ao desapego e à simplicidade. Não fui o melhor aluno de francês no pretérito imperfeito da minha vida estudantil, quando essa disciplina era obrigatória no segundo grau de então. Só lembro que “Quand trois poules s’en vont aux champs, la première s’en va devant, la seconde suit la première et la troisième va derrière”. Mas a tradução simultânea proporcionada pela tecnologia digital me permite compreender as belas letras dos versos de Zaz. Resumindo: fiquei fã da moça e passei a recomendá-la para os meus amigos.

Aí entra o tema desta crônica: selecionei cinco dos meus melhores amigos e amigas e passei-lhes alguns links de vídeos da francesinha, com recomendações efusivas para que assistissem e me comentassem. Esperei três semanas, e nada. Nenhum retornou. Quando os encontrei pessoalmente e cobrei, responderam com as mesmas palavras, do primeiro ao quinto:

– Ainda não tive tempo de olhar!

Socorro, as pessoas estão enfeitiçadas. Ninguém para sequer para ouvir uma canção. E dizer que as máquinas foram criadas sob o pretexto de nos proporcionar mais tempo livre? Onde foi parar esse tempo? Passamos 25 horas por dia conectados nos nossos brinquedinhos eletrônicos, digitando, trocando mensagens, olhando imagens rápidas que desaparecem em seguida – e raramente paramos tempo suficiente para apreciarmos coisas agradáveis como uma canção romântica.

Diante da ingratidão dos meus amigos, repito a estratégia com os meus leitores. Nos links ao lado, a canção mais famosa da moça, com legendas em português, e uma entrevista em espanhol na sua passagem pela Plaza de Mayo, em Buenos Aires.

Se receber cinco comentários, ficarei feliz.

O colunista Luis Fernando Verissimo está em férias.

sábado, 26 de novembro de 2016



26 de novembro de 2016 | N° 18699 
LYA LUFT

“Ser feliz”

Certa vez, em lugar de “perdas” escrevi “peras”, num texto qualquer. Ao revisar, eu ia corrigir, mas achei que seria bem mais interessante deixar como estava. Pois, lendo aquilo, as pessoas um dia talvez pensassem: “O que será que ela quis dizer?”. Afinal, o interessante nos fascina e o desinteressante nos entedia. Salvem-nos as surpresas, de preferência as boas...

Essa “ilogicidade” da arte me encanta, embora nem todos os artistas concordem, como minha querida amiga e mestra Lou Borghetti, em cujo atelier uma vez por semana me recupero, tentando pintar – entre diálogos deliciosos e estimulantes –, da hoje assustadora situação deste país. No mágico clima da arte, ainda que aprendiz tardia no campo da pintura, aprendo um pouco mais essa ilogicidade a que me refiro com minhas peras: digamos que se trata antes de liberdade. 

E cada vez mais mergulho, agora com mais tempo, em uma das minhas formas de ser feliz: ler, ler, ler. De momento, uma rara biografia de Confúcio, cuja vida foi, segundo o autor, um relativo desastre, mas cujas ideias embasam a incrível cultura chinesa e fascinam os ocidentais.

O que buscamos afinal, em nossas breves e ilusórias existências? Fama, sucesso, ser magro, ser atlético, ser famoso e rico, enfim “ser feliz”, seja lá o que isso signifique para cada um – objetivo que muda em cada fase da vida. Quando criança, eu queria ser adulta, pois para eles me pareciam existir as coisas interessantes. Adolescente, eu queria entender o mundo, para isso lia feito desesperada para susto de minha mãe, que muitas vezes me mandou sair com as amigas: ler demais me deixaria “pateta” e, além disso, afastaria candidatos, “porque homens não gostam de mulheres muito inteligentes”. 

Adulta, quis ter uma família, filhos, que sempre foram meu maior e mais ardente desejo: o que seria de mim sem essas criaturas tão amadas, mesmo que eu fosse bela, magra, rica e famosa? Sempre quis muito ter uma relação pessoal positiva e boa e, embora duas vezes viúva, tive isso como dádiva do destino, agora mais uma vez – curtindo há bom tempo o aconchego de uma relação já mais para outono do que para primavera.

Nesta fase atual da vida, quase invernosa, o que desejo para esse “ser feliz” tão falado? Além dos afetos já citados, quero sossego: há algum tempo parei de correr pelo país e fora, em palestras, encontros, seminários. Foi quando um jornalista perguntou qual meu maior “sonho de consumo”, e respondi sem refletir: “Ficar quieta”. No avião, voltando para casa, indaguei de mim mesma: “Então por que você não fica quieta?”.

Reformulei muita coisa e tenho conseguido – o máximo possível sem virar uma estranha eremita – ficar sossegada com meus livros, este computador, meus afetos, sabendo que a família melhora este mundo pela sua decência e talentos, os amigos estão perto, ainda escrevo com alegria, curto a paisagem da minha cobertura mais rústica do que chique, e com meu parceiro escapo nos fins de semana para outro refúgio simples, na Serra. Mas confesso que, nestes estranhíssimos e inquietantes tempos, a alma se aflige mesmo quando a vida está boa: o que estão fazendo com este Brasil? E isso, meus amados leitores, não deixa ninguém “ser feliz”.


26 de novembro de 2016 | N° 18699 
MARTHA MEDEIROS

EU INTERMINÁVEL

A cada dia, eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui

Quando parece que já sabemos direitinho quem somos, um novo dia amanhece e traz hesitação: fica claro que não, que não existe essa história de estar completo, finalizado. Eu sei quem sou até este exato instante em que escrevo, mas antes de terminar este texto há uma chance de tudo mudar. Pode o telefone tocar e eu ser convidada para algo que nunca fiz, ser procurada por alguém que vai mudar minha vida ou golpeada por uma notícia que me amadurecerá. 

E serei um pouco mais (ou um pouco menos) do que sempre fui, este sempre fui tão cheio de ondulações e curvas minha vida é uma estrada quase sem retas e sem uma pista para acostar.

A cada dia, um fato vira memória, uma pessoa volta do passado, uma ilusão se desfaz, outra desperta, o céu troca de cor, um plano ganha avalista, as vontades confabulam, e eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui. Queria tanto saber quem sou, mas como arriscar uma definição se ainda me restam três ou quatro parágrafos e um punhado de anos pela frente?

Tenho duas dúvidas a tirar com um colega com quem iniciei um novo projeto, uma declaração ensaiada para quando estiver frente a frente com alguém que nunca ouviu de mim certos verbos, uma alegria ao antever o encontro com uma amiga que está longe dos meus abraços, fome de algumas coisas que ainda não provei e umas incertezas que doem e para as quais não há cura enquanto eu não acabar de me entender, e eu não acabo nem quando me deito e durmo.

Eu apago e acordo no sonho, no delírio etéreo de uma noite povoada por desejos inconscientes e mensagens que decifro com dificuldade, há alguma coisa em mim ainda sendo construída, e quando desperto de fato, este dia a mais de vida me encontra ainda mais indefinida.

Então abro a janela e o céu está com uma luz diferente, tenho um receio que não tinha antes e um problema a menos a resolver, um compromisso apressa meu banho e o reflexo do espelho revela que emagreci, descubro uma saudade ampliada de alguém e um desdém que não estava ali, o dia não é o mesmo de ontem e eu já não sou também.

E ao ligar o computador para responder à pergunta de um estudante de Jornalismo que pede para que eu me revele, que eu explique, afinal, quem sou, de preferência com poucas palavras e precisão, invento qualquer bobagem que justifique a que vim, que esclareça como fui parar aqui e ser assim, enquanto trato de espiar as previsões astrais para o meu signo, de lidar com os espantos e o mistério que ainda não elucidei – e diante de tanto “não sei” me deformo, me reformo, me amoldo, me dilato e admito, ao menos para mim, que sou isso, um eu sem fim.



26 de novembro de 2016 | N° 18699 
CARPINEJAR

O QUÊ?

A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.

A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.

E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.

Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.

Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças. O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.

As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.

O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a recorrência faz com que perca a credibilidade.

Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.

A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.

Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.


26 de novembro de 2016 | N° 18699
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A ALEPPO DE TODOS NÓS

A banalização da morte, que tanto choca as pessoas de bem quando envolve alguém que conhecemos, passa por um processo de amortecimento quando se trata de um desconhecido, mas que, para sorte nossa, vivia de preferência em outra cidade ou, se na mesma, ao menos em outro bairro, desses que nunca frequentamos, de modo que ele, com certeza, nunca cruzou nosso caminho.

Não é que não nos importemos, mas convenhamos: não dá para ficar sofrendo com a mesma intensidade que afetou os envolvidos, porque explodiríamos de dor, ainda mais depois que o mundo se transformou neste lugar tão perigoso de se viver e a mídia passou a nos inundar todos os dias com essa lava vulcânica de notícias ruins.

Então, parecemos indiferentes, como se todas as tragédias tivessem um palco remoto, uma espécie de Aleppo do mundo, que muitos nem sabem que fica na Síria e que foi a mais linda cidade daquele país, e que contou, nos bons tempos, com mais de 3,5 milhões de habitantes, que pareciam felizes e recebiam maravilhosamente os turistas ricos que se hospedavam no Sheraton Aleppo e percorriam de limusine os pontos turísticos da região. 

Como raros conhecem a história política da Síria (e para que conheceríamos?), soa incompreensível que periodicamente descarreguem bombas e mais bombas sempre sobre o mesmo e pobre lugar de nome estranho e, em seguida, emitam um boletim lamentando as mortes não previstas de dezenas de civis, catalogados apenas como danos colaterais. Seja lá o que isso signifique, ficamos sempre com a impressão de que mais do que pretender justificar, eles queriam mesmo era dizer: tanto faz.

Alienados do sofrimento alheio, nos comportamos como críticos apáticos do mal que não podemos modificar e citamos cifras horrorosas com a naturalidade de quem não tem nada a ver com isso. No entanto, quando alguém ousa transportar a desgraça para a nossa porta e debater conosco o sentimento resultante, bom, aí as coisas mudam tanto que usualmente choramos só de imaginar que aquilo podia envolver um dos nossos amados, intocáveis na nossa fantasia alienada.

Um vídeo impactante que circula na rede mostra um homem do povo questionado sobre o índice de criminalidade de uma cidade inglesa onde, no período de um ano, teriam ocorrido 252 mortes violentas. Admitindo que este número era alarmante (eles não têm ideia de que esta cifra corresponde a um feriadão pacífico numa grande metrópole brasileira), o repórter pergunta: “Que número o senhor consideraria razoável para esta situação?” Uma rápida reflexão e ele estipula: “Setenta, acho que 70 seria razoável”.

E, então, começa a migrar pelo amplo corredor de acesso a esta área um bando de gente de todas as idades que ele imediatamente reconhece como sua família. E o repórter lhe pergunta: “E agora, qual número o senhor acharia aceitável?”. E ele, secando as lágrimas: “Zero. Tem de ser zero!”.

Não importa a distância ou a latitude. Não existe ninguém que não faça falta para alguém.