sábado, 31 de dezembro de 2016



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
LYA LUFT

Para não dizer adeus

Publiquei há alguns anos um livro de poemas com esse título, e, porque gosto dele, roubo-o de mim mesma para este artigo. Vivemos, entre perdas e ganhos (pra falar de outro livro, pois livros são o que eu faço), dizendo alô e adeus.

Uma gangorra esta vida, altos e baixos, médio e horrível ou glorioso.

Este fim de ano é para muitos o único momento em que filosofamos um pouco, construindo objetivos, fazendo juras falsas de melhorar aqui e ali, falar mais com os filhos, procurar mais os pais, retomar aquela amizade, pagar aquela velhíssima conta, que pode ser monetária ou emocional, fazer terapia porque andamos muito loucos, ou admitir e curtir essa nossa pequena insanidade porque afinal “eu sou assim e ninguém tem nada com isso”. Prometemos a nós mesmos saber mais das notícias do mundo e do país, pra não sermos tão alienados, ou nos propomos paz de espírito e espaços de alegria, tentando não ver todas as notícias do dia, da noite e da incansável madrugada.

Mas eu aqui falo de outros adeuses e outras perdas: a do tempo, desperdiçado sentindo raiva, inveja, sendo intolerantes, difamando, mentindo, criticando com azedume, passando por cima do outro, esquecendo quem nos ama de verdade, humilhando para nos sentirmos superiores, sendo bobalhões ou cruéis, quando podíamos estar curtindo bons e belos momentos, preciosos na bizarrice dos tempos atuais.

Falo da perda da juventude, que a grande parte das pessoas ameaça, atormenta, sufoca e faz adoecer. Uma amiga minha corria pela sala desesperada, mãos na cabeça, quando fez cinquenta anos: “Como pôde acontecer isso, como pôde?”, e em lugar de curtir a maturidade, em muitas coisas mais gloriosa do que a confusa juventude, sofria uma dor sem consolo, embora fosse uma bela mulher, cheia de energia e esperança.

Outra conhecida tanto começou a se repuxar para enganar o tempo, os outros e a si mesma, que aos sessenta havia perdido não a juventude que se transforma em maturidade e velhice, mas a si mesma: olhava o espelho e nada mais nela era dela. Em alguns anos, por crueldade talvez dos cirurgiões aos quais recorreu em série, parecia uma máscara feia, distorcida, e a gente tinha vontade de sentar ali no meio-fio e chorar. Só restavam nela a voz e os olhos de um cinza singular.

Também damos adeus a pessoas, o que é o pior: as que vão viver longe, as que se desprendem de nós, como acontece porque o afeto ficou ralo demais ou o “longe” chama com muito fervor, passam para um limbo de onde às vezes emergem, como de um nevoeiro, e dói um pouquinho, e pensamos “mas o que será que aconteceu?”. E damos adeus de verdade aos amados que enveredam pelo jardim de neblina e silêncio que chamamos morte, de onde não vão retornar. Uma vez ou outra, parecem nos mandar recados: o som dos passos no corredor, aquela voz, o jeito de falar, de virar o rosto, de estender a mão, de nos olhar.

Com o tempo, tantos adeuses fazem da alma uma espécie de renda – não necessariamente feia, mas intrigante: porque podemos celebrar com espumante ou lágrimas, ou risos bons, o movimento dessa engrenagem de que somos parte, e que, apesar dos adeuses, se chama, mais do que morte, vida.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
PIANGERS

O pouco que sobrou

Quando peço uma mordida de um chocolate ou de um picolé, sei que vai vir choro em seguida. Minha boca é grande demais, e o pedaço que arranco com os dentes deixa qualquer criança revoltada e é uma revolta difícil de conter.

Depois de contida a revolução revoltosa, tento sempre vir com uma moral da história, alguma justificativa para que não haja choro da próxima vez, sempre sem sucesso. Mas o fato é que um pai que não tenta ensinar sempre os filhos não é pai, é vô. Meu papel é, de alguma forma, achar sentido em joelhos ralados, peixinhos que morrem e mordidas grandes demais em picolés.

“Não chore pelo que perdeu, agradeça pelo que sobrou”, digo sempre para minhas crianças chorosas que, coitadas, além de doce a menos ainda têm que ouvir meus sermões. “Olha o quanto ainda tem de doce! Normalmente você não consegue comer o doce inteiro! Não fica irritada com a mordida, agradece que ainda tem doce na sua mão!”, eu digo. Minha filha está tão revoltada que sente vontade de jogar o resto do doce no chão, impulso não atendido porque suas papilas gustativas estão salivando.

O ano não foi fácil, como já disseram, mas eu não posso fazer coro com quem diz que já vai tarde. Tenho que ter alguma coerência e, quando me tiram parte do doce, agradeço pelo que sobrou. Perdi amigos este ano, perdi até um pouco da esperança em um mundo melhor, mas, se eu olhar com carinho pro que sobrou, posso agradecer. Dá uma vontade louca de jogar tudo no chão quando a gente perde algo, mas não é uma decisão muito inteligente.

Teve um ano em que eu quase morri com pneumonia. Conheci uma praia do Nordeste neste mesmo ano. Teve um ano em que minha mãe se acidentou e ficou 15 dias na UTI. Antes disso, eu tinha feito uma viagem de carro incrível. Teve um ano em que quebrei a perna. O mesmo ano em que minha filha nasceu. Acho que, se a gente olha pro que ganhou, aprende que não existe ano ruim. Tem ano difícil, mas tanta coisa boa aconteceu. Por mais complicado que seja, quero valorizar o que sobrou. Mesmo que, às vezes, a mordida tenha sido grande demais.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
MARTHA MEDEIROS

Plateia atuante


A vida fica mais estimulante quando aceitamos o convite para interagir, ao invés de nos isolarmos num mau humor crítico

Um amigo, outro dia, conversava com Zé Celso Martinez Corrêa em São Paulo, no Teatro Oficina, quando o dramaturgo perguntou a ele: você é ator? Meu amigo, que é fotógrafo, respondeu: talvez não para seu critério, mas sim para o meu, já que me considero plateia atuante. Zé Celso semicerrou os olhos, demonstrando aprovação à resposta.

Zé Celso é reconhecido por dirigir não apenas peças, mas verdadeiros happenings provocativos, incitando todos a interagir, dançar, gritar, pertencer ao espetáculo. O que me faz refletir sobre que tipo de plateia atuante temos sido, nós que também somos incitados a pertencer a este espetáculo diário da existência.

Em todo momento, entramos em cena para atuar em um enredo que não foi escrito apenas por nós, mas por várias mãos: criação coletiva. Alguém dá uma festa, o chamado é para celebrar e a plateia é você, que pode contribuir para o sucesso do evento circulando, indo para a pista, ou pode permanecer num canto mal iluminado a fim de dedicar-se a comentários ferinos sobre como as pessoas ficam robotizadas pela felicidade obrigatória imposta pelo calendário, sobre como é indecente sorrir quando tantos sofrem, sobre como a virada do ano é um embuste que só visa o consumismo e a ilusão. É o rosno da plateia que se recusa a suspender a descrença.

De fato, ao fim de cada ano somos incentivados a gastar mais do que podemos, a abraçar quem mal conhecemos e a tomar resoluções meio fictícias, já que quem pretende mudar de vida precisa fazer reflexões mais profundas do que simplesmente repetir o mantra “hoje é um novo tempo, de um novo dia”. Mas isso não é motivo suficiente para se afastar do palco.

Em tudo há um quê de farsa. Estamos todos em um grande teatro. Então, resta assumir nosso papel e desempenhá-lo com integridade. A vida fica mais estimulante quando aceitamos o convite para interagir, ao invés de nos isolarmos num mau humor crítico.

Já que está dentro, esteja.

Reze quando diante de um altar, mesmo sendo ateu. Declare-se apaixonado, mesmo sem nenhuma garantia de que haverá amanhã. Diante de um defunto desconhecido, chore do mesmo jeito, pois sempre temos uma morte íntima a lamentar. Ao pegar uma estrada, abra-se para os imprevistos. Disse sim? Então dê o seu melhor para este sim contribuir para o que está à sua volta.

A vida não tem um roteiro determinado. É um happening no gerúndio: vai acontecendo. Ou você se joga e atua junto – e assim aprende, surpreende, colabora – ou assiste a tudo daquela distância segura de quem dá bastante palpite, mas não se envolve com nada.

Boa entrada em 2017.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O TAMANHO QUE TEREMOS

Todas as pessoas, em escalas variadas de ambição e força, procuram conquistar uma posição de significância aos olhos dos seus pares. Excluindo os invejosos, que nunca irão a lugar nenhum, e absolvidos os frouxos e desanimados congênitos, estaremos falando da maioria dos homens e das mulheres deste mundo de inquietudes heterogêneas. É com esses personagens que construiremos a história contemporânea, onde estamos inseridos.

No fim da I Guerra Mundial, havia no País de Gales um pequeno povoado que ficava ao lado de uma elevação, de onde se podia ver todas as cercanias, casas, riachos e caminhos. Os habitantes do lugar se orgulhavam daquilo que chamavam de a montanha da vila.

Um dia, dois cartógrafos passaram pelo lugarejo e, após cuidadosas medições, constataram que a elevação não passava de uma colina, pois o cume não chegava aos mil pés de altura necessários para ser classificado como montanha. A autoestima dos habitantes foi cruelmente abalada.

De orgulho machucado, organizaram-se e, durante muitos dias e noites, homens, mulheres, velhos e crianças, carregaram toda a terra e pedras que podiam transportar e despejaram no topo da colina. A seguir, conseguiram trazer os cartógrafos de volta e, após novas medições, a colina voltou a ser montanha.

Há alguns anos, aqui mais perto do pago, um velho estancieiro soube, no início de uma manhã, que um dos pais de cabanha mais valiosos tinha sido encontrado caído num poço profundo, de onde a retirada era virtualmente impossível.

Sentado na beira do poço, condoído com o sofrimento do fiel parceiro de tantas andanças, ordenou que o sacrificassem, e partiu lacrimejando. Os empregados decidiram que era mais fácil soterrá-lo, mas se surpreenderam ao ver que, às primeiras pás de terra, o cavalo, num esforço enorme, se ergueu, e inconformado, relinchou.

E assim, a cada nova remessa de pedregulhos, ele prontamente sapateava elevando-se do fundo do poço. Os peões, entusiasmados com a reação do velho gateado, aceleraram o processo e, depois de algumas horas, com o espaço aterrado, o garanhão saiu caminhando do calabouço.

É certo que o grau de inconformismo com o tamanho que temos determinará o tamanho que teremos. De certa forma, tal como os habitantes daquele povoado, na nossa vida estamos sempre carregando terras e pedras para fazer da nossa colina a montanha que sonhamos.

E quando tudo parece determinado para que afundemos, encontramos forças, que nem sabíamos ter, para sacudir a poeira e emergir. Uns nasceram para ser grandes, outros se contentam em ser pequenos, mas, no dia em que se encontrarem, eles terão exatamente o mesmo tamanho, por isso não vale a pena se preocupar com as diferenças.

Aqueles que, correnteza acima, ainda conseguem vislumbrar nesta luta cotidiana a oportunidade de melhorar a vida dos mais fracos se justificam. Os outros apenas sobrevivem.

O ano novo vai começar. Decida em que time você pretende jogar. E não se estresse com ameaças de rebaixamento porque, como você deve ter aprendido, os grandes não só caem, como quando se esparramam no chão fazem um barulho danado. Mas conforta saber que é sempre possível recomeçar.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
CARPINEJAR

O selfista

Sempre que me aproximo de quem está tirando uma selfie, eu tenho medo de atrapalhar. É como encontrar alguém nu ou se masturbando. É ser vítima de um atentado violento ao pudor. Fico com vontade de pedir desculpa, viro o rosto, evito encarar.

O selfista demonstra uma carência extrema, é um solitário pretendendo demonstrar que é conhecido. Desperta compaixão, insinua uma orfandade de amigos. Quem faz selfie pensa que ninguém está olhando, está possuído da vaidade e não compreende o quanto é patético.

O rosto sério passa a ser falsamente sorridente com a mão levantada. Um minuto atrás era uma careta, um minuto após é um sorriso de canto a canto da boca, sem nenhuma motivação secreta. Como pode rir se nada aconteceu de diferente?

As pessoas comuns inventaram o riso súbito, para concorrer com o choro profissional e o beijo cênico dos atores. O selfista transforma a tela em uma metralhadora de toques, até achar um momento que preste.

A busca pelo ângulo perfeito beira a obsessão. Tem gente que posa 10 horas para si mesmo, à procura de um instante de satisfação. Lota a caixa de imagens somente para atualizar as redes sociais. Um flagrante salvo significa 99 deletados. Já é compulsão, já é doença, já é vício.

Não tem como não se incomodar com o autorretrato virtual. Ele se baseia numa mentira. Boa selfie é aquela que parece que foi clicada por uma outra pessoa. Precisa de extensão do braço e de uma mirada ao lado, como se pego de surpresa. Ou seja, selfie é a negação da selfie. Se fosse algo agradável, ninguém teria vergonha de esconder como foi feita.

Quando testemunho alguém manipulando o celular freneticamente para todos os lados, a minha ânsia é chamar a Samu. É um ataque epilético do narcisismo.

O homem ou a mulher vai se debatendo com o aparelho, esfaqueando-se com o celular, quase se esganando de contorcionismo. Coloca o cabelo para frente e para trás, morde os lábios, encolhe a barriga, suspende a respiração, gira o quadril para enquadrar a melhor paisagem, não poupa esforços para fingir leveza.

Qualquer um que enxerga a cena acaba nervoso.

Trata-se de uma tragédia silenciosa. O selfista não se contenta jamais, percebe um defeito invisível no nariz, nos olhos, no penteado, mesmo quando há nada de errado. Alucina, não está mais entre nós. A ausência de confiança produz uma tortura infinita. Cada foto é o reconhecimento do que falta na aparência, cada foto piora a vontade de viver, cada foto é um aborto.

O selfie virou um espelho que anda e substitui a realidade.

Nem estou falando dos filtros e retoques, onde você tenta apagar as imperfeições e simplesmente desaparece dos registros, só ficando o lugar em que estava.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
DAVID COIMBRA

Pessoas que importam

Quatro Réveillons atrás, minha situação era precária. Ou mais do que isso.

Naquele fim de ano, eram consideráveis as chances de que não contemplaria o Réveillon seguinte. O câncer que descobrira meses antes havia se espalhado e sentia dores em várias partes do corpo.

Era ruim, e pior ficava devido à incerteza. Consultei mais de um médico, a fim de tomar uma decisão, e eles davam prognósticos diferentes. O que devia fazer?

Estava na casa dos meus amigos Admar e Neca Barreto, em Santa Catarina. No fim do dia em que tudo parecia mais sombrio, eu, eles e mais a minha mulher, a Marcinha, saímos para jantar.

Não gosto muito de expor essas questões pessoais. Não por vergonha ou pudor, mas para não ficar incomodando os outros com meus problemas. Lembro de quando meu avô morreu. Ele estava com enfisema pulmonar. Em seus últimos dias, sofria com dores atrozes e não tinha disposição para se levantar ou falar. Logo ele, que havia trabalhado toda a vida, e com gosto.

Na véspera da sua morte, sentei-me à beira da cama e, para distraí-lo, tentei conversar sobre um assunto qualquer, acho que era futebol. Ele disse:

– Como vou pensar nisso agora?

Fiquei refletindo sobre aquilo. Pensei que meu avô sabia que morreria em breve, e não há evento mais importante na vida de uma pessoa do que a hora da sua morte. Mas ele sabia também que, ainda assim, em pouco tempo, mesmo as pessoas que mais o amavam, como eu, logo estariam falando de futebol, de política, do clima, das coisas comezinhas dos dias, que acabam sempre se sobrepondo às mais importantes, inclusive à mais importante delas.

A morte de todos nós, portanto, é inevitavelmente solitária. É chato transformá-la em um estorvo para os outros, que não têm nada a ver com isso.

Nossas dores e nossos problemas são só nossos, de mais ninguém. Não é por acaso que os psicanalistas são ricos – eles ganham dinheiro para ouvir os problemas alheios, algo muito valorizado. Se existissem ouvintes gratuitos à disposição, os psicanalistas morreriam à míngua.

Mas, naquele dia, falei sobre meu problema, mesmo com o risco de provocar aborrecimento ao próximo. A Marcinha, é claro, já sabia o que estava acontecendo. O Admar e a Neca, ao ouvirem, ficaram me olhando com apreensão. Disseram algumas frases de consolo, não recordo exatamente quais foram, o que recordo é a forma como me olhavam. Percebi, e creio que não me enganei, que estavam realmente preocupados, estavam realmente se sentindo tristes, estavam realmente querendo me ajudar.

Eles se importavam.

Naquela noite, depois de sair do restaurante, lembrei outra vez do meu avô. E pensei que, se era verdade que depois da morte dele meus interesses mundanos retornaram, era verdade também que eu me importei, e muito, com o que se passava com ele. Senti sua morte, e ainda sinto. Então, pensei no Admar e na Neca e nos meus tantos outros amigos e na minha família, na minha mulher, no meu filho, e concluí, pretensiosamente, que algumas pessoas no mundo se importavam comigo. Talvez até algumas pessoas que eu não conhecesse se importassem também.

Aquela ideia me animou. No dia seguinte, estava de queixo erguido. Vou fazer o melhor que puder, pensei, porque não estou sozinho. E fiz. E, por enquanto, está dando tudo certo. Sinto-me bem e feliz, neste Réveillon, embora esteja longe da maioria das pessoas que amo, entre elas o velho Admar e a jovem Neca. Tudo certo. Sei que todos eles, de alguma forma, estarão sempre comigo.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


Jaime Cimenti
Partiu 2016, viva a Secretaria da Cultura!

Ultimamente tem voado muitos anos loucos. Os roaring twenties, os anos loucos da década de 1920, com efervescência nas artes, na cultura, na política, no comportamento e na economia (como o crash Bolsa de Nova Iorque em 1929, causando a Grande Depressão), parecem até leves perto deste 2016. Donald Trump na cabeça, Bob Dylan no Nobel, Grêmio campeão, Inter na segundona, George Michael nos deixando em plena noite de Natal (ele que tem uma canção natalina pop belíssima), Grã-Bretanha saltando da Europa, onde nunca foi muita grudada e onde nem tinha bem entrado ainda, Roberto Carlos mandando tudo pro inferno no especial... meu Deus! E olha que 2016 ainda não terminou. Aguarde.

Escrevo no dia 26 de dezembro, segundona. Este ano teima em não acabar. Dizem que 2016 se resume em três palavras: as iniciais PQP! Decerto no Réveillon o Putin e o Trump estarão na China vestidos de gueixa, abanando leques, comemorando a união deles com os vermelhos... Tudo é possível neste mundo de Deus ou sem Deus, se você prefere ou se é ateu, graças a Deus, como o Mateus.

Para não dizer que não falei no poder da cultura, da flor, da paz, do amor e do humor, quero cumprimentar Roque Jacoby, Marcio Pinheiro, Márcia de Borba Alves, Maristela Bairros, Lucia Jahn, Lou Borghetti, Marcus Mello, Álvaro Santi, Jorge Brittes, Airton Tomazzoni, Maureen Mandelli Corrêa e demais integrantes da Secretaria Municipal da Cultura (2013-2016) pelo trabalho realizado. Festa Nacional da Música, Bibliotáxi (mais de 30 mil livros na rua), Acampamento Farroupilha, Festival de Teatro de Rua, Carnaval, Feira do Livro, POA Jazz Festival e Cia Municipal de Dança, shows no Anfiteatro e no Araújo, e oficinas culturais descentralizadas, entre outras atividades, marcaram a gestão que envolveu milhões de participantes. Porto Alegre agradece.

O prefeito Nelson Marchezan Jr., após planejar a reforma do secretariado, teve a inteligência, a sensibilidade e o bom senso de manter bem viva a Secretaria Municipal da Cultura e merece parabéns pela atitude. Escolheu o diretor de teatro e administrador cultural Luciano Alabarse para secretário, e o professor universitário Eduardo Wolf como secretário adjunto. São dois nomes de reconhecida trajetória e competência, e desejamos a eles muita força, coragem e brilho na condução dos trabalhos desta cidade com forte vocação cultural.

Em almoço oferecido pela revista Voto, Marchezan Jr. falou sobre cultura, sobre as indicações e explicou que a visão de cultura da nova administração pretende contemplar todas as pessoas, de modo plural e democrático, e, de modo especial, aquelas que ainda hoje não tiveram oportunidade de ter acesso aos muitos bens culturais que Porto Alegre oferece e vai oferecer.

Porto Alegre é cinemeira, carnavalesca, jazzeira, sambista, multimusical, multicultural, tem dezenas de teatros, livrarias, galerias de arte, cinemas, museus, feiras culturais e um público exigente e carinhoso que artistas de todo o Brasil adoram.
a propósito...

Não apenas por estar no centro geográfico do Mercosul, Porto Alegre tem todos os atributos para ser a capital do Mercosul. Os potenciais culturais, artísticos, turísticos, educacionais e econômicos de nossa cidade são conhecidos. Muitos já estão em desenvolvimento. Há muito por fazer, a gente sabe.
Luciano Alabarse e sua equipe, atuando sempre que possível em conjunto com as demais secretarias, certamente manterá a bela tradição da Secretaria da Cultura e nossa vocação para o pensamento, a reflexão e o fazer no campo livre e infinito da cultura. Boa sorte, Luciano, Deus te abençoe!

Jaime Cimenti
A canção e as dinâmicas culturais e sociais

O alcance da canção (Arquipélago, 392 páginas, R$ 55,00), organizado pelos professores Luís Augusto Fischer e Carlos Augusto Bonifácio Leite, nasce como obra de referência ao mesmo tempo coesa e eclética, apresentando ao leitor 22 ensaios com reflexões muito instigantes sobre o vasto mundo da canção popular, a partir de trabalhos realizados na Ufrgs nos últimos 25 anos. Na universidade, Fischer, professor e doutor em Letras, autor, entre muitas outras obras, da novela Quatro negros e do Dicionário de porto-alegrês, criou a cadeira de Canção Popular e, com colegas, o Núcleo de Estudos da Canção, para pesquisa sobre canções populares.

Carlos Augusto Bonifácio Leite, também professor da Ufrgs, poeta e compositor, autor do livro de poemas Entrechos ou valos do silêncio (Prêmio Açorianos), pesquisa sobre Noel Rosa, tropicalismo e cinema brasileiro.

Os ensaios dos organizadores e de Demétrio Xavier, Homero Vizeu Araújo, Paulo Coimbra Guedes, Arthur de Faria, Katia Suman, Leticia Batista, Lolita Campani Beretta, Marcos Miraballes Sosa, Carlo Pianta, Caroline Soares de Abreu, Leandro Ernesto Maia, Demirse Marilva Ruffato, Sérgio Karam, Álvaro Santi, Fernanda Valim Côrtes Miguel, Ian Alexander, Rita de Cássia Cavalcante, Jackson Raymundo, Eron Rafael dos Santos e Luciana Prass falam de Donga, Noel, Atahualpa Yupanqui, bossa nova, Gal Costa, Caetano, Bob Dylan, Cortázar e o jazz, Califórnia da Canção, o vai e vem da canção porto-alegrense, Manguebeat e muitos outros temas.

A obra é feita, como se vê, para quem quer mais que apenas ouvir canções. Na apresentação, está escrito: "A educação de nossa sensibilidade, no Brasil, se dá com a canção. Nós celebramos, sofremos, vivemos com ela. Nada mais justo e adequado que a já centenária história da canção brasileira seja cada vez mais tornada acessível a todos. Conhecendo a história do cancioneiro, compreendemos melhor esse vetor essencial da cultura brasileira. Ninguém aprendia samba no colégio, disse o sábio Noel Rosa: mas todos agora podem aproximar-se dele e dos demais gêneros cancionais mediante um acesso crítico, que este livro proporciona".

Os autores dos ensaios têm formações diversas, interesses múltiplos e diferentes olhares sobre o mundo das letras, das melodias, dos arranjos e dos mil aspectos do cancioneiro. Ganha o leitor. O que une os autores é certamente a preocupação de firmar um diálogo entre a canção e as dinâmicas culturais e sociais.

As palavras de Luís Augusto Fischer - "todo mundo tem direito ao Noel Rosa, e esse direito será mais bem atendido se os letrados se encarregarem dele" - sintetizam o alto e afinado espírito do livro.

lançamentos

Cicatriz (Ateliê Editorial, 102 páginas), do poeta, ficcionista e professor mineiro Eduardo Guimarães, autor de A trama no tapete, Cidade e corpo (poemas) e O homem que tinha dentes demais (novela) traz versos contidos, precisos e delicados, como: A mulher lhe veio aos braços / e lhe veio toda / em tantas mulheres / inesperada fortuna / de desigualdades.

As provinciais (É Realizações, 296 páginas) do grande matemático, físico, literato e religioso Blaise Pascal, reúne as 18 cartas com lógica implacável e ironia sutil, anônimas, vendidas clandestinamente em Paris, em defesa de Antoine Arnauld, amigo julgado pelos teólogos de Paris por se opor aos jesuítas.

Habitat (Libretos, 120 páginas), do curador, artista plástico e ministrante de oficinas Amaro Abreu, mostra grandes trabalhos de arte urbana, com cores, traços, detalhes e formas únicas. "A imaginação do artista infinda, assim como multiplica nossa capacidade de percepção do mundo terrestre, mundano, o que vivemos dia a dia", diz Marina Martinuzzi sobre a obra.


30 de dezembro de 2016 | N° 18728 
NÍLSON SOUZA

DESEJOS

Recolho nesta véspera de novo ano desejos que voam das bocas e corações como borboletas invisíveis em busca da flor da atenção.

Este deseja àquele um ano feliz, na ordem inversa das palavras, o adjetivo primeiro para dar a entonação tradicional. Outro, mais realista, deseja ao vizinho do lado um ano simplesmente bom, que já lhe parece suficiente para cumprir o ritual dos votos obrigatórios. O cidadão de meia-idade, possivelmente vacinado por outras viradas, prefere desejar aos conhecidos um ano melhor, deixando implícito que o atual já vai tarde para as calendas do esquecimento. A moça beija a amiga no rosto e deixa carimbado, em traços de batom rosa, o desejo de um ano repleto de amores e de alegrias de todas as cores.

Os desejos têm nome, identidade e, em alguns casos, até CPF: saúde, dinheiro, felicidade, paz, sorte, sucesso, prosperidade, venturas e aventuras, talvez uma cara-metade ou um príncipe encantado. (Numa emergência, serve uma metade que não seja muito cara e até mesmo um plebeu desencantado.) O importante, sugerem os desejadores, é que se tenha companhia no próximo ano. Um desejo compartilhado, permito-me parafrasear Raul Seixas, é algo muito mais próximo de se tornar realidade.

Nos tempos de antigamente, lembro-me bem, havia um bonde chamado desejo que passava nas matinês de domingo. Depois, virou trem, porque um desejo puxa o outro assim como as palavras e as ideias de Machado de Assis. Alguns dizem, escreveu o escritor, que assim é que a natureza compôs as suas espécies.

Desejo é um sentimento espontâneo, brota do nada, mas cresce como o pé de feijão da história infantil. Quando se vê, tornou-se incontrolável. Quando se vê, tomou conta de nossa vontade e de nossa vida. Quando se vê, o ano novo já chegou. Mas esse é o nosso desejo pessoal e intransferível. O desejo que desejamos aos outros é menos explosivo e mais racional: muitas felicidades, muitos anos de vida, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender. Desejos prontos, empacotados, feitos para a ocasião.

Entre tantos desejos esvoaçantes, borboletas invisíveis, capturo um para dividir com as leitoras e leitores que me acompanham nestas reflexões. No ano que bate à porta, desejo-vos tudo o que vós desejardes aos outros.


30 de dezembro de 2016 | N° 18728 
DAVID COIMBRA

O Caso do Sorvete do Presidente

É nessa época de fim de ano que a gente compreende que Deus, Nosso Senhor, o Todo-Poderoso, Ele se preocupa, realmente, é com o WhatsApp.

A guerra na Síria, a fome na África, o desemprego no Brasil, nada disso importa para o Eterno. O que importa é você não quebrar aquela corrente de mensagens do Bem que lhe mandaram pelo Whats. Porque, se você quebrar, Deus vai ficar brabo e vai lhe acontecer alguma coisa ruim em 2017.

Em compensação, se você mandar a mensagem para 10 amigos, você ficará rico ou terá outra vez uma saúde de adolescente ou a Alinne Moraes ficará louca para pular sete ondinhas com você no Réveillon.

Eu repasso rapidamente todas as mensagens com corrente que me mandam. Vá que dê certo. O problema será ter Alinne Moraes para todo mundo.

Sou um otimista, apesar de tudo. E o “tudo” a que me refiro nem é a guerra na Síria, a fome na África e o desemprego no Brasil. São as ocorrências mais prosaicas, como a natureza das discussões brasileiras. Por exemplo, a marca de sorvete que o presidente da República come na sobremesa.

Segundo as “redes” e alguns colegas, Häagen-Dazs é muito caro para o presidente do Brasil. Precisamos economizar no sorvete. Se Temer preferisse Kibon, nossos problemas estariam resolvidos.

Houve quem argumentasse, para defender Temer, que Dilma gastava o dobro com comida. Assim, o debate se aprofundou. Já estamos teorizando sobre o prato principal.

Dilma, aliás, foi criticada porque tentou antecipar sua aposentadoria. Tornou-se notória a preocupação dela com a forma como sobreviveria depois de deixar a Presidência, tanto que sua principal aliada, Kátia Abreu, fez um apelo dramático aos senadores para que tirassem o mandato de Dilma, mas não seus direitos políticos. Assim, argumentou Kátia, sua amiga poderia ser eleita para um cargo, qualquer cargo, a fim de aumentar seus rendimentos mensais.

Dilma estava preocupada com seu salário, depois de ter sido eleita presidente do Brasil duas vezes.

Antes dela, Lula teve de pedir favores a amigos e a empreiteiros para usufruir de um sítio e guardar os presentes que ganhou no exercício do cargo. E, durante o mandato, foi criticado porque comprou um avião novo para a Presidência da República.

Do avião ao sorvete, passando pela aposentadoria, a lógica é a mesma. É a lógica da mesquinharia e da muquiranagem.

O presidente do Brasil tem, sim, de dispor de um avião só para ele, e o melhor dos aviões, e o sorvete há de ser o melhor sorvete, e ele não pode gastar um minuto do seu tempo preocupado com a maneira como viverá depois de se aposentar. Não porque o presidente seja o Lula, o Temer, a Dilma ou o Tiririca, mas porque o presidente do Brasil está trabalhando para todos os brasileiros, porque representa todos os brasileiros, porque seu cargo é uma instituição que tem de ser respeitada e cada segundo do seu trabalho é relevante para a nação.

Quando o jornalista revela a marca do sorvete do presidente não como curiosidade, mas como escândalo, está fazendo demagogia.

Quando o cidadão se escandaliza com a marca do sorvete, fomenta uma discussão que desviará as energias de quem teria de trabalhar para ele em assuntos muito mais importantes.

Quando o presidente criticado decide cancelar a licitação para a compra do sorvete, como Temer cancelou, mostra que foi atingido pela discussão, que perdeu o foco dos temas fundamentais e que está tão fragilizado a ponto de se deixar abalar por qualquer tacanhice.

O Caso do Sorvete do Presidente deu-me certo desânimo, nos estertores de dezembro. Mas, como disse, sou otimista. Acredito que estejamos em processo de evolução. Agora mesmo recebi uma corrente de WhatsApp prometendo dias melhores para os brasileiros em 2017. Vou repassar a mensagem para 10, não... para 20 amigos, como garantia. Ainda não discutimos se a escova de dentes presidencial deve ter cerdas macias ou duras, se o papel higiênico dever ter folha dupla ou simples, se os chinelos têm de ser Rider ou Havaianas. Ainda nos resta um pouco de dignidade.



30 de dezembro de 2016 | N° 18728 
CLÁUDIA LAITANO

Juízo final express

Há livros bons e livros necessários. O romance O tribunal da quinta-feira, de Michel Laub, se encaixa nas duas categorias. Quem incluí-lo na bagagem como leitura de verão não vai se decepcionar com a qualidade e o ritmo da narrativa. Já quem gosta de histórias capazes de refletir, a quente, sobre temas sensíveis da nossa época vai fechar o livro com a sensação de que Laub escreveu a história que precisava ser escrita (e lida) em 2016.

A trama é narrada por um publicitário bem-sucedido, José Victor, recém separado e namorando uma colega 20 anos mais nova. Uma história clichê e que talvez não tivesse maiores consequências (a não ser para os diretamente envolvidos) acaba ganhando dimensão pública quando e-mails de José Victor, redigidos na linguagem bruta e inconsequente da intimidade entre amigos, são vazados para a internet por sua ex-mulher. 

A ruína profissional e social do narrador é o desdobramento previsível do contexto retratado em outro livro, Humilhado: como a era da internet mudou o julgamento público, do jornalista britânico Jon Ronson. Lançado no Brasil no ano passado, o livro-reportagem compila alguns casos reais de linchamento moral, como o da mulher que tuitou uma bobagem ao entrar em um avião e ao desembarcar, sete horas depois, descobriu que havia se tornado a inimiga número 1 do planeta.

José Victor não é santo (ninguém é), mas também não é um monstro (poucos somos). Na maior parte das vezes, não age com o objetivo consciente de ferir ou ofender, mas isso eventualmente acontece. A ex-mulher também não é santa (ninguém é), nem bruxa (poucas somos). Ambos erram, acertam, se arrependem. Ou não. Como leitores, também somos juízes nesse tribunal em que esses personagens pisam na bola, se atrapalham, mudam de ideia. Alguns desses erros são graves, outros nem tanto, mas a pena, no tribunal da internet, parece indiferente à gravidade da falta cometida.

Que punição merecemos pelas falhas cometidas na nossa vida privada? Quando as boas intenções da patrulha moral se transformam em “fascismo do bem”? A expressão é do narrador da história: “Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres. Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política, e quem está do outro lado deixa de ser um indivíduo que erra como qualquer indivíduo, em meia dúzia de atos entre os milhares praticados ao longo de 43 anos, para se tornar o sintoma vivo de uma injustiça histórica e coletiva baseada em horrores permanentes e imperdoáveis”.

O fato de que todos somos vítimas em potencial de linchamento moral é uma contingência da nossa época, assustadora, mas provavelmente inevitável. Já a decisão de assumir o papel de juiz, policial ou carrasco é nossa – e deveria ser reexaminada todos os dias, várias vezes por dia.

Um 2017 de paz (e da paz) para todos nós.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016



29 de dezembro de 2016 | N° 18727 
DAVID COIMBRA

Por que ela tirava a roupa depois do Jornal Nacional?

Depois que minha vizinha tirou toda a roupa e ficou completamente nua, nua de uma nudez fresca e matinal, nua com evidente orgulho de seu corpo em que nada sobrava e nada faltava, em que tudo parecia compacto e, ao mesmo tempo, farto, depois que ela se pôs naquela nudez trombeteante, suas longas pernas a levaram até a janela e seus delgados braços a fecharam num golpe e eu, no edifício em frente, espiando pela persiana, fiquei por um momento paralisado, feliz, sem saber bem em que pensar, sem ligar para o vinho derramado na minha mesa de trabalho, sem ter condições de voltar ao livro que escrevia.

Na verdade, não escrevia. O livro já estava escrito. Ou não. Mais ou menos. Vou explicar.

E agora entro na história paralela às façanhas da minha vizinha, mas que é de importância para você, amigo leitor. Estou falando do livro Diário do Diabo, escrito pelo presidiário Luiz Augusto Félix dos Santos. Ele havia sido preso por todo tipo de crimes, de estupro a assassinato, passando por roubo, assalto e sequestro. Li o prontuário dele, no presídio. Consideravam-no irrecuperável. Mas havia uma assistente social na penitenciária, uma só, para 1,5 mil detentos. E ela o ensinou a ler e a escrever.

Luiz Augusto começou a ler os livros de Sidney Sheldon, entusiasmou-se e decidiu escrever sua própria história. Escreveu-a à mão, com caneta esferográfica, em dois grandes cadernos de espiral. Esses cadernos me foram passados pelo meu amigo Sérgio Lüdtke, que, na época, tinha uma editora de livros. Sérgio propôs que eu transformasse a narrativa obviamente confusa de Luiz Augusto em livro. Foi o que fiz. Tentei preservar a forma como ele contava a história, e acho que consegui. Mas deu um trabalho maior do que se estivesse escrevendo originalmente.

Visitei Luiz Augusto na cadeia. Encontrei uma pessoa... boa. Por Deus. A leitura tinha transformado o diabo que ele mesmo dizia que era em um ser humano confiável.

Luiz Augusto foi, de certa forma, a repetição cabocla de Malcolm X. Preso por arrombamento de casas aqui, em Boston, Malcolm cumpriu 10 anos de reclusão em uma penitenciária de Massachusetts. Nesse tempo, o que mais fez foi ler. Havia uma boa biblioteca na penitenciária e ele bebeu-a quase toda. Saiu de lá transformado. Estava pronto para se tornar quem foi.

Outro que também mudou para melhor na cadeia: Tim Maia. Ele foi preso por roubo nos Estados Unidos. Atrás das grades, convivendo com os negões americanos cheios de malandragem, ele tornou fluente o seu inglês e absorveu o suingue e a manha do soul.

Um terceiro, ainda mais ilustre: Mandela. Antes de ser preso, Mandela achava que poderia salvar seu povo pela violência. Na prisão, compreendeu que o salvaria pela paz. E o salvou.

A prisão pode ser um lugar de regeneração, portanto. Basta que se trate o preso com dignidade. A punição do infrator é o isolamento da sociedade, e ela já é bastante dura. Mais do que isso é crueldade, e a crueldade sempre se volta contra seu autor. Bons presídios não são luxo. São questão de segurança. Da SUA segurança. E é por isso que essa história vicinal à minha vizinha é central para você.

Bons presídios são bons para a sociedade.

A vizinha? Ah, ela dançou durante todas as noites em que escrevi a história de Luiz Augusto. Com uma curiosidade intrigante: tirava a roupa sempre depois do Jornal Nacional. Será que se empolgava com as notícias? Não sei, mas sei que era só o Cid Moreira dizer “boa noite” com sua voz de Velho Testamento e ela ia para a frente do espelho do quarto, fazer strip-tease. Virou regra. Depois de algum tempo, me acostumei. Meus amigos chegavam e eu avisava:

– Olha pela janela agora. A minha vizinha vai tirar a roupa. Eles enlouqueciam. E eu ia para a cozinha, preparar um sanduíche de atum. A rotina tira a cor das melhores fantasias.



29 de dezembro de 2016 | N° 18727
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Desprincesamento


GOSTAR, EMPREGAR OU CRITICAR palavras depende da simples decisão de cada usuário

Numa coisa todo o mundo concorda: a riqueza de uma língua é medida, em grande parte, pelo número de vocábulos que ela oferece a seus falantes – assim como, em escala menor, a riqueza de cada um de nós se mede pelo número de vocábulos que conhecemos. No entanto, toda hora aparece, na minha caixa de correio, alguém que vem lamentar o nascimento de uma palavra nova. 

Nesta semana de Natal, um leitor que assina com o pseudônimo de Indignado vem manifestar – por que a surpresa? – a sua indignação com a palavra desprincesamento. “De onde saiu essa doidice? Os jornais publicam assim sem o menor pudor! Até dá para entender o que a palavra quer dizer, mas pode ser assim? É só inventar e pronto? Não se poderia criar um instrumento legal que regulamentasse essas novidades?”.

Meu caro Indignado, está na hora de revisarmos alguns princípios básicos que regem nosso léxico. Em primeiro lugar, não há, neste planeta, lei com poder suficiente para regulamentar o funcionamento de uma língua. O máximo que se consegue fazer é regulamentar a sua ortografia, que é uma pura convenção entre os usuários. Tentar legislar sobre o resto – a sintaxe, a criação de palavras, o sentido que elas têm, etc. – seria tão inútil como pregar aos peixes. No caso do léxico, então, a tarefa é impossível, pois é nele que melhor se enxerga o caráter infinito do idioma.

Ao contrário das sementes, as palavras jamais perdem o seu poder germinativo. No dicionário, em ordem alfabética, as centenas de milhares de vocábulos que ali repousam mantêm, intacta, a capacidade de gerar descendentes. Pardal, por exemplo, ali figurou, durante cinco séculos, como um simples passarinho; no momento em que resolveram assim designar os controladores de velocidade, a semente saiu de sua dormência e produziu pardalizar (as estradas), despardalizar, pardalização, despardalização... 

Ao contar aquela história em que Pedro Malasartes enche de moedas o fiofó de seu cavalo para enganar o fazendeiro rico e prepotente, um famoso poeta de cordel estampou na capa do folheto “O cavalo que descomia dinheiro”, evitando assim o c*gava do título popular. Aliás, por falar no tema, no tempo do presidente Figueiredo, uma lei sancionada teve de ser dessancionada para correção, sendo algumas horas depois ressancionada – dois novos galhos na árvore da palavra sanção foram criados no espaço de horas!

Aqui se inclui também o desprincesamento, palavra feinha que surgiu em contraposição a princesamento, outra novidade. Uma mãe em Uberlândia achou importante e necessário abrir uma escola para ensinar às meninas aquelas artes e atitudes que, segundo ela, caracterizam uma verdadeira princesa; a iniciativa teve tanto sucesso que já se abriram várias filiais. Outras mães, ao contrário, vendo nisso uma submissão precoce das meninas a estereótipos de gênero, trouxeram do Chile a ideia de uma escola de desprincesamento, para incutir desde cedo nas garotas a consciência do novo papel da mulher na sociedade.

Como se pode ver, o processo é incontrolável; os vocábulos resultantes entram na implacável filtragem pelo uso e, aos poucos, vai-se vendo quais são as criações que já ingressaram na corrente sanguínea e quais vão ficar adormecidas, talvez para sempre. Gostar delas ou não, empregá-las ou não, criticá-las ou não – tudo depende da simples decisão de cada usuário. Para consolo do amigo Indignado, ofereço outra criação do mesmo quilate, o desencapetamento: já vi anúncio na internet oferecendo um “método fácil e eficaz para desencapetar um homemsexual”. Feliz Ano Novo!

Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.



29 de dezembro de 2016 | N° 18727
ARTIGO | CLAUDIR NESPOLO

A FARSA DA MODERNIZAÇÃO TRABALHISTA


A pretexto de tirar o país da crise, eles buscam alterar a legislação para retirar direitos dos trabalhadores. Direitos, aliás, que nunca foram empecilho para que as empresas crescessem e o Brasil se tornasse uma potência mundial.

Além de patrocinar o golpe, a Fiesp e outras federações empresariais querem tirar proveito da composição mais favorável no Congresso para aprovar projetos que, certamente, se apresentados em campanha eleitoral, não renderiam votos. Querem fazer o trabalhador pagar o pato!

O projeto de lei ainda não foi enviado por Temer ao Congresso, mas o que foi anunciado às vésperas do Natal, sem qualquer participação da CUT, já é suficiente para revelar que se trata da maior reforma trabalhista na história do país, pois visa flexibilizar a CLT e a Constituição de 1988. Por exemplo, com o negociado sobre o legislado, em plena recessão, com 12 milhões de desempregados, o governo propõe a precarização do trabalho, o que vai gerar menos renda, menor consumo e produção, comprometendo a retomada do crescimento econômico.

Ao invés de avanço trabalhista, como propagandeiam golpistas de plantão, existem retrocessos inegáveis. Dizer que é uma proposta de modernização na legislação é uma farsa. É uma reforma feita sob medida para empresários gananciosos, que desrespeitam leis e querem se livrar de ações trabalhistas. Segurança jurídica é cumprir a legislação vigente. Legalizar fraudes é roubar direitos dos trabalhadores.

Temos agora mais uma frente de resistência em defesa dos direitos, ao lado do combate à reforma da Previdência que visa tirar da maioria dos trabalhadores o direito de se aposentar. Estamos diante da volta aos tempos da escravidão. O que o Brasil precisa é de redução dos juros, reformas tributária e política, combate à sonegação, revisão das renúncias fiscais, geração de empregos com trabalho decente e qualificação dos serviços públicos com valorização dos servidores. O caminho é a retomada da democracia com eleições diretas, já! Nenhum direito a menos!

*Metalúrgico e presidente da CUT-RS



29 de dezembro de 2016 | N° 18727 
L. F. VERISSIMO

Vivu! Revu! Amu!

O inglês Christopher Hitchens conta que entrevistou um líder do Partido da Liberdade, de extrema direita, da Áustria, e que, quando a conversa derivou para a então recém-lançada moeda comum europeia, o entrevistado pediu a opinião de Hitchens sobre aquele “esperanto monetário”. Hitchens foi obrigado a concordar, a contragosto, com a sacada do fascista. 

O euro realmente evocava outra busca de integração transnacional, a do esperanto, uma língua inventada que – como fatalmente aconteceria com o euro – não pegara, e acabara como apenas uma boa tentativa. O objetivo do esperanto era o de unificar por uma linguagem em comum, a do euro, a de unificar pela moeda. Nos dois casos, o objetivo era acabar com conflitos e criar um sentimento compartilhado de humanidade que garantiria a paz.

Com o Mercado Comum Europeu se desfazendo e o euro sendo questionado a torto e a direito, ou à esquerda e à direita, cabe lembrar a experiência do esperanto – e do seu idealismo frustrado, nem que seja só para comparar fracassos. A “língua franca” que acabaria com a chamada danação de Babel, quando Deus reagiu à pretensão dos humanos de construir uma torre que os aproximaria do ouvido do Senhor, decretando a multiplicação das línguas (e, como efeito colateral, criando a profissão de tradutor) foi uma invenção de Ludwig Lazarus Zamenhof, um judeu polonês que teve uma fase de entusiasta do sionismo, mas depois a renunciou, passando a pregar o fim de qualquer movimento definido por etnia ou nacionalidade. 

Ele chamou sua nova língua de “lingvo internacia”, mas ela se tornou conhecida como esperanto baseada no codinome que Zamenhof adotou, Doktoro Esperanto (Doutor Esperança em esperanto), quando publicou seu Unua Libro (primeiro livro).

O esperanto não trouxe a paz e a humanidade compartilhada que Zamenhof esperava, mas não deixou de fazer barulho, organizando conferências e campanhas promocionais e causando controvérsias. Pelo que eu sei, o movimento continua vivo, e atraindo adeptos. Li que numa convenção compareceram esperantistas gays, do Partido Verde, vegetarianos, pacifistas e amantes de gatos, e todos usavam camisetas com os dizeres “Vivu! Revu! Amu!” (Viva! Sonhe! Ame! em esperanto).

O sonho da unidade europeia e da moeda comum talvez não siga o caminho do esperanto para a irrelevância, ou para apenas outra invocação melancólica na frente de uma camiseta. Mas periga.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016



28 de dezembro de 2016 | N° 18726 
MARTHA MEDEIROS

A máxima tragédia

Era uma senhora casada. Uma senhora casada e muito sábia que tinha uma filha de uns três anos. Pois essa mulher muito sábia não deixava a filha brincar com terra, não deixava a filha entrar no mar, não deixava a filha andar de pés descalços. A senhora era uma sumidade em seu ofício, respeitada por toda a sociedade, então era possível que tivesse razão quando impunha esses impedimentos dizendo que era para o bem da filhinha, para que a menina não pegasse doença, não corresse riscos. Eu escutava essa história e pensava: ok, é uma senhora sábia e a filha dela nunca vai ficar doente – mas eu não queria ser se essa filha vetada pra vida.

Era, eu também, uma menina, portanto meu pensamento não vinha acompanhado dessa eloquência toda, mas era assim que eu sentia. Sem pé na terra, pé na grama, pé na areia, que infância era aquela, que graça haveria em ser um bibelô cujo vestido jamais ficaria imundo, cuja trança jamais se desmancharia? Acreditavam todos que a intenção da senhora era amorosa e protetora (e era), mas eu achava que faltava mais um adjetivo, sem saber direito qual – ainda não conhecia a palavra paranoica.

Não sei que consequências teve isso na vida das duas protagonistas. Hoje aquela filhinha de três anos deve ter saudáveis 45, por aí, e a senhora sábia deve ter mais de 70. Todos sobreviveram, inclusive essa história que nunca me saiu da cabeça, e que de vez em quando retorna, como agora.

Associei essa lembrança do passado a uma frase dita pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner em entrevista recente. Disse ele: “Porto Alegre fez o muro da Mauá tentando evitar a máxima tragédia, o dia em que houvesse a maior enchente da história. Por causa desse muro, você não vê o Guaíba. A gente não pode querer evitar a máxima tragédia. O mais importante é a tragédia do dia a dia”.

Não brinque com terra, não brinque com fogo, não mergulhe, não arrisque, não salte, não se apaixone. Evite as máximas tragédias, recomenda o grilo falante acomodado em um dos nossos ombros, com cara de quem teve poucas alegrias na vida. É um cauteloso profissional, daqueles que constroem muros contra imprevistos que se prenunciam desestabilizadores. Mas temos dois ombros, não apenas um. À medida que o tempo passa, tenho escutado mais o que o outro grilo assopra no lado oposto do meu pescoço. É um danado, tem algumas cicatrizes no rosto, mas vive sorrindo e o brilho do seu olho é uma provocação. Diz ele: trágico, guria, trágico mesmo, é o medo.

A menina que fui já intuía que perigoso era ficar de sapatos o tempo todo. É preciso correr o risco de umas perebas, de uns arranhões, de algumas inflamações. A máxima tragédia pode vir nunca. Com as mínimas a gente se vira.



28 de dezembro de 2016 | N° 18726
FÁBIO PRIKLADNICKI

PREVISÕES E DESEJOS

Quem está torcendo para 2016 acabar logo – e terminará logo ali no fim de semana, ufa! – ainda não se deu por conta que 2017 será um 2016, parte 2. Sei que é nossa tarefa, quero dizer, tarefa de todo mundo ser otimista, mas muita coisa deverá, inclusive, piorar. Por favor, não culpe o mensageiro. Exemplifico. Pense que será o primeiro ano de Donald Trump na presidência da maior potência do mundo e tente imaginar os efeitos colaterais de cada decisão que ele tomar, da mudança climática à política econômica.

Na toada de Trump, 2017 poderá ser o ano de (mais) ascensão da extrema direita. Marine Le Pen está cotada para vencer as eleições na França. Em 2018, sem querer adiantar muito as coisas, poderá ser a vez do Brasil. Sei lá, espero que não. O crescimento da extrema direita é um problema para pessoas de esquerda e também para pessoas moderadas de direita. É um jogo de perde-perde. Mas momentos de crise costumam ser propícios para a emergência desse tipo de fenômeno. Já vimos isso na história.

O mundo deverá continuar em crescimento econômico lento, pois nenhuma mudança significativa foi realizada. Teremos, acredito eu, um aprofundamento do fosso social. E, com isso, mais violência. No Brasil, provavelmente seguiremos com altas expectativas e baixas realidades, em compasso de espera pelas eleições, seja lá quando elas forem realizadas. Como bons torcedores (afinal, somos o país do futebol), cruzaremos os dedos aguardando a sonhada estabilidade.

Mas será que não sobrou aí nenhuma previsão assim mais ou menos positiva? Aqui com meus botões, torço pelas pequenas grandes coisas da nossa província. Que os grupos de teatro retirados do Condomínio Cênico do Hospital Psiquiátrico São Pedro encontrem novas casas. Que o mesmo aconteça com os coletivos do projeto Usina das Artes, caso percam seus espaços com uma possível reforma da Usina do Gasômetro. Que o público tenha novamente o Teatro de Câmara Túlio Piva à sua disposição.

Tem mais: que sobrevivam os grandes eventos culturais, as orquestras, as livrarias e os cinemas. Que tenhamos, enfim, arte e pensamento, pois nos permitem vislumbrar soluções para os impasses da atualidade. E é nos momentos de crise que mais precisamos disso. Se a realidade não oferecer momentos de respiro, que possamos sonhar como os artistas. Quem sabe eles nos inspiram para transformar os desejos em ações.


28 de dezembro de 2016 | N° 18726 
DAVID COIMBRA

A vizinha nua


Eu tinha uma vizinha pelada. Já devo ter contado isso, mas, sendo evento de tamanha importância, faz-se necessário repetir. Afinal, ter uma vizinha pelada é o sonho de todos os homens. Mas não é só por isso que lembro dessa história. É porque um evento lateral dela é central para VOCÊ, amado leitor.

Bem. Vamos lá. A minha pelada, se é que posso chamá-la assim, era uma pelada clássica: fazia strip-tease em frente ao espelho, com a janela aberta.

Não foi minha única pelada. Uma vizinha do meu amigo Amilton Cavalo cultivava o aprazível hábito de lavar roupa só de calcinha, no tanque da área de serviço. A área de serviço dava para o poço de luz do prédio e a janela do quarto do Amilton se abria para esse poço de luz. O Amilton nos chamava, e nós ficávamos olhando pelas frestas da veneziana, em grande agitação.

Tínhamos, todos, cerca de 12 anos de idade, numa época em que não existia internet e as “revistas de sacanagem” eram raridades que vinham da Suécia, o país do sexo livre. A vizinha era loirinha e baixinha e bonitinha. Devia ter uns 18 ou 19 anos. Um dia, alguém, acho até que o Amilton, nos disse, com grande gravidade:

– Fiquei sabendo que ela não é mais virgem. Arregalamos os olhos: – Não! – Tô dizendo...

Ela se tornou uma imperatriz do sexo, para nós. Quando passava, sempre acompanhada dos caras mais velhos, nós fazíamos silêncio reverente.

Para nós, saber que uma mulher fazia sexo era algo perturbador. Um dia, um guri disse que minha mãe não era mais virgem e dei um pau nele. Desrespeito. Todo mundo sabe que todas as mães são virgens.

Na época, achávamos que havia malícia naquilo de a loira lavar roupa só de calcinha. Hoje acho que havia só calor.

Mas essa era a vizinha do Amilton. A minha vizinha, essa sim, exsudava sensualidade.

Era uma morena da cor do melaço, longilínea, mas de altura mediana. Devia ter entre 25 e 35 anos. Eu morava no terceiro andar; ela, no segundo, no edifício ao lado. Da janela do meu quarto, avistava a janela do quarto dela.

Uma noite, estava concentrado, escrevendo a história lateral da qual falarei em seguida, e, entre um parágrafo e outro, parei um pouco para pensar, olhei pela janela e a vi. Ainda estava vestida, mas não muito. Dançava em frente ao espelho, ondulava como uma serpente encantada pela flauta de um hindu. Cheguei a tomar um susto. Estiquei o pescoço. Abri mais os olhos. Quando ela tirou a camisa e deixou os seios sólidos saltarem para o ar livre, blop, blop, também saltei. 

Com medo de que me visse observando-a, tentei me esconder atrás do computador. Meu gesto foi tão brusco, que derrubou a taça de tinto que bebia enquanto escrevia a tal história lateral. Não me preocupei com o vinho que molhara os papéis e a mesa e o chão. Deixei para lá e me concentrei na vizinha – Camões diria que um valor mais alto se alevantava.

Ela continuava dançando. Dançou e dançou e alisou-se e contorceu-se, até se pôr nua como um bicho livre na natureza.

E então, assim que a última peça de roupa, a mínima calcinha, foi rojada no parquê frio, ela ficou ereta e ofegante, com os braços ao longo do corpo. Em seguida, caminhou para a janela e a fechou. O show havia terminado.

No dia seguinte... Bem, o que aconteceu no dia seguinte, inclusive a história lateral, contarei no dia seguinte. Amanhã.



28 de dezembro de 2016 | N° 18726 
EDITORIAIS

SEM FEITIÇARIAS

O governo Temer vai virar o ano com baixíssima popularidade e péssima credibilidade política, mas com alguns avanços visíveis na área econômica. A aprovação da PEC do teto dos gastos públicos e o encaminhamento das reformas trabalhista e da Previdência, juntamente com correções pontuais como o plano de reestruturação da Petrobras, indicam providências sensatas e bem-intencionadas no enfrentamento da crise econômica.

Como disse o próprio presidente nesta semana, durante cerimônia de saudação de fim de ano às Forças Armadas, no país “não há mais espaços para feitiçarias como imprimir dinheiro, maquiar contas e controlar os preços”. Não há mesmo. Com o impeachment e a Operação Lava-Jato, os brasileiros levaram um choque de realidade e passaram a controlar melhor a administração pública. Se os governantes não observarem boas práticas administrativas e não enfrentarem com coragem os entraves da economia, o país continuará enredado na burocracia, no paternalismo e nas maquinações políticas que retardam o seu desenvolvimento.

Como o combate à corrupção vem ocorrendo num ritmo inédito na história do país – nunca tantos poderosos vão passar a virada de ano na cadeia –, a reativação da economia passa a ser prioridade, especialmente por causa dos 12 milhões de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho. Ninguém ignora que, ao enfatizar suas próprias realizações, o governo tenta dar visibilidade a sua agenda positiva para deixar em segundo plano as notícias ruins, notadamente as investigações sobre integrantes do primeiro escalão e da base parlamentar. Mas, independentemente de segundas intenções, o importante é que as medidas adotadas ajudem o país a superar logo esta crise que parece não ter fim.

A BRIGA DO IPTU

Não serve a ninguém esta batalha infantojuvenil protagonizada pelo prefeito atual e pelo futuro prefeito de Porto Alegre em torno do desconto no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) da cidade. A disputa de beleza e a tentativa de empurrar o ônus do desgaste político para o rival acabam confundindo o contribuinte e gerando prejuízos para o município, que está ameaçado de mais gastos para a impressão de novos boletos e até mesmo de ações judiciais por parte dos cidadãos que se sentirem lesados. Por que os senhores José Fortunati e Nelson Marchezan simplesmente não se reúnem, dialogam e buscam um acordo que efetivamente favoreça os cidadãos?

Um dos aspectos preocupantes no caso é que, mais uma vez, o ônus das dificuldades financeiras das prefeituras acaba ficando com os contribuintes, que vêm há algum tempo arcando com a conta da queda na qualidade ou mesmo descontinuidade de serviços públicos. A situação não é exclusiva de Porto Alegre, pois muitos prefeitos estão transmitindo o cargo para o sucessor em situação financeira ainda pior.

A disputa política em torno dos recursos do IPTU registrada nessa passagem de uma administração para outra na Capital, portanto, serve de alerta sobre o quanto os gestores municipais precisam prevenir as crises, procurando ajustar permanentemente as despesas às receitas efetivas. Tributos de qualquer natureza não pertencem a um ou outro gestor, mas ao poder público. O contribuinte precisa contar sempre com o máximo de transparência nas contas públicas e não é justo que seja envolvido numa disputa movida por interesses políticos

terça-feira, 27 de dezembro de 2016



27 de dezembro de 2016 | N° 18725 
CARPINEJAR

Dê um desconto ao amigo que vive um momento difícil

Não estrague a amizade porque o seu amigo anda chato. É uma fase. Pode ser falta de dinheiro, problemas familiares, um amor doente que ele fracassa em desatar.

Mas cuidado para não tornar definitivo o que é provisório. Ele está chato, não é chato. Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões.

Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim. Uma indiscrição, uma grosseria e uma aspereza não significam que tudo foi em vão. Pondere, todo amigo tem o direito de errar e explodir, de incomodar e se desculpar.

Não converta a falta de sintonia passageira em distanciamento permanente. Desfazemos grandes lealdades por bobagens. Transformamos desentendimentos, resultantes de uma crise pessoal, em divergências irreversíveis da relação.

Com uma propensão imediatista, enxergamos somente o período turbulento e desagradável, e esquecemos de reconhecer o companheirismo anterior. Falta-nos paciência para encarar as lamúrias e contextualizar os ataques. No lugar de respirar um pouco e oferecer um desconto, tratamos de responder as agressões com violência.

Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância. Às vezes ele não quer ser ajudado, às vezes não há como socorrer aflições, às vezes ele não desfruta de condições para escutar seus conselhos, às vezes ele ofende jurando que vem sendo apenas sincero.

Deixe estar. Não fique perto, abra espaço para que ele reflita e se acalme, não se apoie na raiva que aumenta o desconforto e intensifica as retaliações. Evite desligar o telefone na cara, controle-se para não cobrar a devolução dos presentes e afetos, silencie antes de estabelecer ultimatos, contenha-se para não misturar medos antigos com os novos e realizar chantagens emocionais, recue no bate-boca, fuja da conta da culpa e, concordando ou discordando, diga que vai pensar e que retornará depois. Por enquanto, feche as janelas e conserve a porta aberta.

Entenda que as melhores companhias nem sempre são boas companhias. A simbiose que existe numa amizade, de um espelhar o outro, de um ser o outro, é perigosa. Quando alguém pretende se destruir, leva junto quem vive próximo. Os confidentes são os primeiros a sofrer maus-tratos.

Amizade é também prever o momento de se retirar para voltar com mais força e amor redobrado.