20
de outubro de 2012 | N° 17228
CLÁUDIA
LAITANO
Descarrilhados
Bonito,
olhos claros, barba e cabelos aparados, Rafael exibe aquele tipo de desleixo
estudado que costuma fazer sucesso com as mulheres.
A
manta descuidadamente atirada sobre os ombros e a luva azul sem dedos poderiam
desfilar em qualquer passarela do mundo como um fino exemplar do visual “esmolambado
chic” – estilo preferido por aqueles que fazem questão de se diferenciar da
ostentação “neo rica” elevando andrajos à categoria de objeto de consumo. (Há ainda
em Rafael algo de Jesus Cristo de musical da Broadway. Como se o olhar firme
para a câmera anunciasse não apenas uma alma complexa, mas um pregador
eloquente prestes a declamar um Sermão da Montanha inteiro. Em inglês.)
Por
tudo isso – e porque as redes sociais consomem e disseminam com voracidade assuntos
com potencial para serem inflados descontroladamente – o mendigo de Curitiba
foi o personagem mais comentado da semana.
Por
contraditório que pareça, o mesmo fascínio misturado a repulsa, a mesma compaixão
combinada a uma implícita condenação moral que ajudaram a transformar o mendigo
com rosto de modelo em uma espécie de atração bizarra – como uma mulher barbada
do circo ou o homem elefante – talvez ajudem a entender por que são cada vez
mais comuns no Brasil os covardes ataques a moradores de rua.
A
dificuldade de reconhecer o que permanece trivialmente humano – com tudo o que
os humanos têm de torpe e sublime – naquelas pessoas que, por um motivo ou vários,
descarrilharam daquele que nos parece o único modo sensato e seguro de levar a
vida, pode conduzir tanto à invisibilidade (o que explicaria o espanto diante
de um mendigo que sequestra nosso olhar) quanto à violência (a negação absoluta
do simples direito de viver de um jeito diferente do nosso).
Nos
surpreendemos porque mendigos podem ser bonitos e desejáveis (como Rafael), ter
os mesmos gostos do que nós (como dona Isabel, a fã de Avenida Brasil
entrevistada com sensibilidade pela repórter Larissa Roso) ou viver uma grande
história de amor (como a professora que se apaixonou e teve um filho com um
morador de rua em Porto Alegre, tema de um impactante depoimento concedido aos
jornalistas Alexandre de Santi e Cristine Kist na revista Marie Claire deste mês).
No
extremo mais insensato e desumano desse estranhamento, situa-se a incapacidade
de reconhecer que quem mora na rua sente dor, chora, dá gargalhadas, tem filhos
e pais. E, assim como todos nós, tem direito de tentar tocar a vida do jeito
que pode e consegue.
Os
gestos de violência, muitas vezes movidos por ritos de afirmação de masculinidade
tão cruéis quanto estúpidos, assumem o caráter de um videogame hiper-realista
em que as vítimas apenas se parecem com seres humanos, mas são tratadas como se
tivessem uma natureza diversa, sem qualquer valor ou significado.
A
vida na rua pode ser cruel – e é. Mas assim como a beleza e a bondade podem
dormir ao relento, a crueldade e a perversidade podem ter endereço fixo,
documentos e bons antecedentes.
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