DANUZA LEÃO
Ter um passado é fundamental
Quem está apaixonado se
transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais
Uma paixão é a melhor coisa do
mundo -para quem a está vivendo. Mas para as testemunhas desse sentimento
inigualável, tema de inspiração dos poetas, o assunto é discutível.
Por mais que se torça para que as
pessoas de quem gostamos se apaixonem e sejam muito felizes, quando isso
acontece, a tendência é guardar uma certa distância; com o tempo, essa
distância vai ficando cada vez maior, pois quem está apaixonado se transforma
em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais.
Aquela amiga divertida que tinha
opiniões engraçadas sobre as coisas e contava histórias escabrosas do passado
-dos outros e dela própria- cessa de existir.
Como vai poder falar sobre o fim
de semana que passou em Salvador quando, depois de umas oito caipirinhas, foi
dar um mergulho, perdeu o sutiã no mar e teve que voltar para a praia mal
conseguindo esconder os seios? Todo mundo viu, claro, e até ela achou muito
divertido, mas sinceramente: uma mulher pode contar isso diante de um homem
profundamente apaixonado? Claro que não.
Como também não pode falar sobre
coisas mais calmas, digamos assim: que adorava seu ex-marido, que sofreu muito
quando se separou, que andou tendo uns namoros que não deram certo e resolveu
nunca mais gostar de ninguém, até que o encontrou etc. e tal. É lindo, mas um
homem apaixonado pode ouvir isso numa boa? Difícil.
É da troca de experiências
passadas que nascem as amizades, e como nada disso vai poder mais ser falado,
os amigos começam a se afastar -os dela e os dele.
Passar horas com duas pessoas se
olhando olho no olho, mão na mão, sem poder mencionar noites divertidas e
loucas vividas em outros tempos, quando saíam da pista de dança às 5h da manhã
e ainda iam a um botequim comer um sanduíche de mortadela e beber cerveja, fica
difícil.
Amigos de apaixonados têm que
tomar o maior cuidado com o que dizem, para não cometer aquelas indiscrições
horrendas -e ninguém quer ficar mudo, quer? Eu, não.
As coisas acontecem naturalmente:
os amigos se afastam, eles se afastam dos amigos e se tornam pessoas sem
passado -e uma pessoa sem passado não é ninguém; aliás, não é nada. Ninguém
pode abrir mão do seu, e olha que cada um de nós tem pelo menos uma coisa -ou
várias- que preferia que não tivesse acontecido ou que pelo menos ninguém
jamais soubesse.
Tem mais: uma mulher apaixonada
costuma não ter opinião sobre nada: dependendo do parceiro, deixa de fumar,
passa a não comer carne vermelha, a só gostar de música clássica -ou pagode ou
rock-, a acordar às 3h da manhã para ver a seleção jogar, mesmo odiando futebol
-e ainda fazer um café no intervalo do jogo-, e só vota no candidato que seja o
mesmo do seu amado. Estar apaixonado e conservar alguma personalidade é
praticamente impossível.
Ah, a paixão. É muito boa
enquanto dura, mas impede que se viva qualquer outra coisa, a não ser ela
mesma.
Um dia -que me perdoem os que
estão apaixonados- cansa. Cansa, não: exaure.
Mas acho que estou falando de
coisas de um passado muito, mas muito remoto. Há quanto tempo você não ouve
alguém declarar, com todas as letras, que está perdidamente apaixonado?
Eu, há séculos.
PS - Duas semaninhas de férias,
estou de volta no dia 12 de agosto, até.
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