17
de julho de 2012 | N° 17133
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Quando o garçom não nos
enxerga
O
garçom não nos percebia. Não virava o rosto em nossa direção. Levantava o braço
e abaixava, fingia coçar a cabeça, levantava de novo e abaixava, procurava
piolhos imaginários.
Diante
das recorrentes macaquices de minha parte, os filhos armaram debochada hola.
A
coreografia não surtiu efeito, apenas aumentou a vergonha.
Ele
circulava perto e, de repente, girava o tronco para o lado inverso. Um
Garrincha de gravata-borboleta dando janelinhas e lençóis nas pernas das mesas.
No
momento de nos ver, voltava para cozinha.
– Diacho
– eu lamentava. – Impossível marcá-lo de cima.
O
sujeito conduzia a bandeja com a cabeça erguida ao teto, ao infinito, ao
horizonte. Um dom para a lua capaz de irritar até poeta. Acho que estava mesmo
indiferente, não distraído. É complicado diferenciar a distração da indiferença.
Ele
não servia. Pela demora, fazia tele-entrega.
Meu ímpeto
era pegar o celular e telefonar ao restaurante:
– Pode
atender a mesa 15, por gentileza.
O
serviço daquele muquifo se enquadrava no mais relapso da vida. Minha paranoia já
queria reter os dez por cento.
A
impressão é que todos que chegavam depois da gente tinham sido servidos e
devoravam as bandejas com prazer e mexiam os garfos com estardalhaço no fundo
do prato.
E só
nós, ilhados, fantasmas, família do Sexto Sentido.
Nem
tínhamos recebido ainda o cardápio. Depois da fila para sentar, agora havia a
fila do menu. E depois a fila do refrigerante e suco. E depois a fila da comida.
Quando
o homenzinho nos enxergou, ele veio com calma de santo. Fixou seu olhar em meus
olhos como se eu estivesse recém me sentando e fosse novo ali.
Avancei
o queixo para reclamar e acabar com a palhaçada, mas ele se antecipou com um
vozeirão afinadíssimo:
– Não
aguento mais esse lugar, estou louco para sair. Entreguei demissão ontem, e o
proprietário recusou.
Sua
resposta me desarmou. Ele mantinha uma Elza Soares dentro dele.
–Vocês
não têm ideia do que enfrento – completou.
Permanecemos
boquiabertos, sem reação. Num golpe de telepatia, ele tomou a minha fala,
roubou minha cena do roteiro. Sua lamúria anulou a crítica. Eu fiquei
totalmente paralisado, gaguejei suspiros.
Com
medo de que ele chorasse, perguntei como poderia ajudá-lo.
O
que ele aprontou foi melhor do que pedir desculpa, ele inverteu os papéis,
mudou de lado, pulou a portinhola do balcão.
Juntou-se
a nós, colocou a farda de nosso time e reclamou de seu serviço a ponto de
neutralizar o ataque. Um pouquinho mais estaria comendo conosco. Um pouquinho
mais seria adotado pela família.
Como
a gente não localizou ninguém mais para reclamar, decidimos esperar o tempo que
fosse. Uma vez no inferno, não há sentido em ter pressa.
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