15
de julho de 2012 | N° 17131
VERISSIMO
O monstro
Há
mais sexo na Bíblia do que nos livros de Nabokov
Num
dos eventos da Festa Literária Internacional de Paraty, cuja10ª edição se
encerrou no domingo passado, vários autores disseram na Rádio Batuta, do
Instituto Moreira Salles, quais eram seus personagens literários inesquecíveis.
Eu e
o Zuenir Ventura fomos os últimos a depor. O personagem escolhido pelo Zuenir
foi a baleia Moby Dick, o meu foi outro monstro: Humbert Humbert, o narrador do
livro Lolita, de Vladimir Nabokov.
Lolita
é, para dizer pouco, um livro ambíguo, e a ambiguidade começa no nome duplo do
seu narrador. O livro ficou famoso pela razão errada, o fato de ser a história
da sedução de uma garota de 12 anos por um homem de mais de 40, mas seus
méritos literários ultrapassam o escândalo.
É um
livro erótico, lido e interpretado como um livro erótico – tanto que durante muito
tempo só foi acessível em certos países em edições pirateadas de uma editora
francesa especializada em literatura erótica – mas que contém pouco sexo
explicito. Seu narrador é ao mesmo tempo uma figura monstruosa e fascinante, um
homem obcecado que submete uma menina à sua obsessão e um dos personagens mais
divertidos da literatura moderna.
Humbert
Humbert é quase uma autoparódia do intelectual europeu empanturrado de cultura
obsoleta sendo simultaneamente repelido pela vulgaridade da América e perdidamente
apaixonado por ela, na figura metafórica de Lolita.
Até
hoje os críticos discutem quem afinal corrompe quem, no livro. Lolita e a
cultura superficial mas irresistível da jovem América corrompem o europeu ou a
alta cultura europeia, mesmo priápica e decadente, corrompe a inocente América?
Dada a ambiguidade do livro, talvez aconteçam as duas coisas.
Lolita
está para a obra de Nabokov um pouco como o Cântico dos Cânticos está para a
Bíblia. Os dois textos exigem alguma ginástica argumentativa dos seus
explicadores. Já ouvi o grande poema lúbrico de Salomão ser descrito como uma
declaração cifrada de amor a Deus, e até fundamentalistas, para quem tudo na
Bíblia é verdade literal, fazerem uma exceção e admitirem metáfora, no caso.
Lolita também seria uma anomalia na obras de Nabokov, que pouco usou o sexo nos
seus outros livros. Há, mesmo, mais sexo no resto da Bíblia do que nos outros
livros do Nabokov.
Os
explicadores de Nabokov, com a mesma intensidade dos fundamentalistas, combatem
a ideia de que Lolita seja pornográfico.
As
andanças de Humbert Humbert e Lolita pelas estradas e motéis da América são
vistas por alguns críticos como uma viagem do próprio Nabokov pela língua
inglesa, ou – melhor – a língua americana. Lolita foi o seu primeiro romance
escrito em inglês e ele aproveitou para inventar neologismos e brinca, com
óbvio prazer, com termos e peculiaridades da sua língua adotada.
Nabokov
nunca diria, como Flaubert disse de Madame Bovary, “Humbert Humbert sou eu”,
mas não há dúvida de que ele também se divertiu com o personagem – esquecido, é
claro, o destino da pobre Lolita nas mãos do monstro.
O
autor teve mais sorte do que seu personagem Humbert Humbert, que escreve sua
história na prisão, esperando a morte. Foram os direitos autorais do livro e a
notoriedade que ele conquistou com a obra que permitiram a Nabokov voltar a
morar na Europa e viver só da literatura. Metaforicamente, Lolita lhe devolveu
a juventude.
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