19
de julho de 2012 | N° 17135
LETICIA WIERZCHOWSKI
Sobre Gabo
Gabriel
García Márquez já não voltará a escrever. Numa conferência literária em
Cartagena das Indias, Jayme, irmão mais novo do escritor, contou à imprensa que
García Márquez está bem de saúde, mas, aos 85 anos, perdeu a memória.
Cem
Anos de Solidão marcou a minha adolescência e plantou em mim uma semente. Ainda
lembro de uma invernal tarde de sábado, e eu, tendo retornado da biblioteca e
buscado refúgio num sofá perto da janela, viajava para muito longe daquela
nossa casa guiada pela narrativa de García Márquez.
Lá
estava eu em Macondo, com Úrsula Buendía e sua fábrica de pirulitos – os
galinhos e peixes açucarados que, duas vezes por dia, se espalhavam pela
cidade, levando com eles a peste da insônia. As mil possibilidades criativas
aninhadas em cada pequeno parágrafo, o modo como García Márquez dobrava e
desdobrava a realidade ao seu gosto, fascinaram-me sem volta. Aquilo era o
realismo mágico – mas, aos 14 anos, eu não sabia disso nem precisava saber...
O
que contava era a viagem, era o autor levando o seu leitor para uma aventura
por um mundo novo, um mundo de palavras construído no viés da realidade, uma
terra de criaturas extraordinárias, humanas e fantásticas em igual medida. Acho
que fiquei grudada naquele sofá até o dia seguinte, quando terminei de ler a
saga dos Buendía. Acho que choveu muito naquele final de semana, acho que fazia
frio... A memória da vida real apagou-se de mim, ficando apenas o livro de
García Márquez tal e qual eu o li pela primeira vez.
E
agora Gabo tem demência senil. Assim como o seu famoso patriarca em Cem Anos de
Solidão, José Arcadio Buendía, García Márquez vem esquecendo nomes, fatos e
lembranças. Não sei se usa do mesmo artifício que o seu varão, que marcou todas
as coisas com o seu nome: bigorna, cadeira, copo, relógio, para assim manter a
desmemória afastada de Macondo.
De
tanto estudar as possibilidades do esquecimento, José Arcadio compreendeu que
chegaria um dia em que, mesmo reconhecendo os nomes de cada coisa, eles
haveriam de esquecer a sua utilidade. E então escreveu em cada coisa uma
espécie de bula, tentando capturar a realidade na rede das palavras: esta é a
vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs (...).
O
inverso disso foi feito por García Márquez enquanto ele escreveu seus livros.
Gabo criou as suas próprias, intrincadas e inesquecíveis realidades. As vacas
de García Márquez podiam voar ou declamar poemas de Baudelaire, mas tudo o que
faziam, inclusive dar leite, faziam-no de modo incrível.
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