sábado, 14 de julho de 2012



14 de julho de 2012 | N° 17130
CLÁUDIA LAITANO

A pomba

Jornais e telejornais do Brasil inteiro mostraram esta semana a imagem de uma pomba branca pousada sobre o caixão do cardeal dom Eugênio Salles. A ave foi levada para a cerimônia por um assessor da Cruz Vermelha do Rio, que pretendia fazer uma homenagem ao cardeal pelo seu histórico empenho pelas causas humanitárias.

Depois da execução do Hino Nacional, a pomba foi solta, mas em vez de seguir rumo ao céu pousou delicadamente sobre o caixão, ali permanecendo durante boa parte da cerimônia – tempo mais do que suficiente para que as câmeras se fartassem com a cena.

A pomba é um dos mais simbólicos membros do reino animal, acumulando as funções de ícone da paz e da fraternidade, da compreensão entre os povos, da pureza, da fidelidade e, para os cristãos, do Espírito Santo. Aparece no Velho e no Novo Testamento e ganhou uma versão gráfica definitiva graças a Pablo Picasso.

Como não é toda hora que um símbolo é flagrado em pleno exercício de suas funções simbólicas, é compreensível que as câmeras tenham se deleitado com a atuação espontânea da pombinha, que se comportou como se tivesse sido coreografada para a cena.

Exatamente porque a pomba pode significar tantas coisas, ou nada, é curioso pensar que uma imagem vista por milhões de pessoas possa ter assumido significados tão diversos: de epifania mística ao simples repouso de uma ave em um lugar confortável, passando por todas as impressões que se situam entre os dois extremos – inclusive a intuição profissional dos fotógrafos e cinegrafistas presentes, que perceberam na hora que a imagem prestava-se a múltiplas interpretações.

Somos todos, querendo ou não, definidos pelos símbolos que escolhemos cultuar – tanto quanto por aqueles que não nos dizem nada. O torcedor de futebol treme diante de um logotipo, de um hino, de uma cor. Um leitor apaixonado seria capaz de atravessar o mundo para olhar através de uma vitrina de vidro a relíquia de um manuscrito original. Guerras são travadas para defender uma imagem ou um livro associado a uma crença.

Futebol, arte, família, religião, tudo que o homem escolhe revestir de valores sagrados pode ser traduzido em objetos, símbolos gráficos, relíquias. Desastres acontecem quando, de alguma forma, o objeto sagrado de um grupo é imposto a outro como verdade universal – ou, ao contrário, proibido ou desrespeitado.

Existem vários símbolos de comunhão – religiosa, ideológica ou de nacionalidade – mas nenhum da intolerância. Mesmo quando religiões ou ideologias admitem, na prática, a violência ou o desrespeito aos direitos alheios, seus símbolos, originalmente, pretendiam espelhar valores elevados e transcendentes. É por isso que os símbolos, em si, valem menos do que aquilo que se faz em nome deles.

No caso da pombinha sobre o caixão, não houve exatamente uma imposição, mas talvez um exagero semântico. A imagem teve seu sentido tão expandido pela combinação rara de símbolo e circunstância que acabou causando algum estranhamento naqueles que não identificam qualquer transcendência possível em uma pomba – não importando sua extensa folha corrida como ícone multiuso.

Esperar que aves compartilhem o fascínio dos homens pelos símbolos talvez seja exigir um pouco demais de ambos.

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