15
de julho de 2012 | N° 17131
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
A dor do ganso e o meu
prazer
Sei
do tanto que sofre o ganso para que os franceses preparem o patê de foie gras.
Foie gras significa “fígado gordo”. Mas muito gordo: o fígado do ganso, que
normalmente pesa 100 gramas, precisa ficar com um quilo. Dez vezes mais.
Então,
os franceses obrigam o ganso a comer mesmo quando ele não tem fome, como fazem
certas mães. Às vezes, enfiam-lhe comida goela abaixo por um cano. Cruel. Mas,
quando me delicio com patê de foie gras, prefiro pensar que aquele ganso que me
proporciona tal deleite na verdade se tratava de um glutão. Ele adorava comer, feito
um Faustão, e os franceses apenas lhe cumpriram os desejos mais recônditos.
Discorro
sobre o patê porque, de todas as iguarias francesas, essa é a minha preferida.
Em cada 14 de julho, no aniversário da Queda da Bastilha, data nacional da
França e da Revolução que criou o conceito de nação e que trocou a fidelidade
ao rei pelo amor à pátria, em cada 14 de julho, como o deste sábado, brindo aos
gauleses com um tinto capitoso e um inefável patê que até pode não ser de foie
gras, se sentir pena do ganso falecido, mas será sempre patê.
Sofisticadas
como o foie gras: as francesas Marion Cotillard, Alizée e Charlotte di Calypso,
Aurélie Claudel e Léa Seydoux, Bérénice Marlohe e Melanie Laurent
Um
símbolo
O
patê é um símbolo do que a França tem de melhor, por ser, ao mesmo tempo,
simples e requintado. Eis o grande mérito dos franceses em todos os tempos:
eles não confundem sofisticação com luxo. O luxo é o excesso, é o exagero. A
sofisticação, ao contrário, é comedida e suave. Veja a beleza de algumas
mulheres francesas nesta página. Veja a cantorinha Alizée em sua fresca
juventude, veja a atriz Bérénice Marlohe, uma mulher que leva dois acentos no
nome e que alcançou com garbo a maturidade dos seus 33 anos. Veja-as todas: são
delicadas e refinadas como... como... o patê.
Decapitadores
O
patê foi criado por um cozinheiro francês exatamente na década da Revolução,
por volta de 1780. Como era um prato nobre, os revolucionários não devem tê-lo
experimentado. Até porque os revolucionários eram um tanto mau-humorados.
Robespierre, o “incorruptível”, vivia com prisão de ventre, ao ponto de ser
apelidado de “o incorruptível verde-mar”, devido ao tom da sua pele. Marat,
enquanto o patê estava sendo concebido na cozinha de um palácio, refugiava-se
da polícia embrenhando-se nos famosos esgotos de Paris, onde contraiu uma
incurável doença de pele.
Marat
era torturado por coceiras incessantes. Para se aliviar, passava o dia dentro
de uma banheira cheia d’água temperada com essências medicinais. Nessa
banheira, uma mulher o assassinou enfiando-lhe uma lâmina de 15 centímetros na
carótida. Já Camille Desmoulins era aflitivamente gago. Por algum motivo, sua
gagueira só passava quando ele discursava, inflamando o populacho. Seu primeiro
discurso foi, justamente, em 14 de julho.
Por
que eram tão ferozes os revolucionários? Por que decapitaram o rei e a rainha?
Porque jamais provaram das amenidades do patê. Uma saudação a eles, na data
máxima da França.
O
assalto
Kléber
estava decidido: mataria o primeiro que o atrapalhasse. Já havia liquidado
três, mais um não faria diferença. Assaltaria o mercadinho de qualquer forma,
ninguém o impediria. Sabia que o gringo guardava uma pequena fortuna embaixo do
balcão, já o vira enfiando dinheiro ali. Passara alguns dias observando o lugar
e agora era a hora. Engoliu duas doses de cana para ganhar coragem, e foi.
Enquanto
atravessava a rua, sentiu na mão o frio do aço da pistola que escondia no bolso
da jaqueta. Era uma tarde gelada de inverno, quem se aventurava a sair pela rua
andava encolhido, mas o calor da determinação espalhava-se por seu corpo e o
tornava feroz, e fazia dele fera.
Entrou
no mercado e deslizou até o fundo, onde ficava a mercearia. Pediu uma meia lua
de queijo da colônia e uma perna de salame que pendia do teto. Com o canto do
olho, vigiava o movimento dos fregueses. Havia duas mulheres no caixa. Parou
diante dos vinhos para esperar que saíssem. Escolheu um tinto da Serra.
Dirigiu-se vagarosamente para o caixa. As mulheres se foram. Só restavam ele, o
gringo na mercearia e a menina do caixa. A ideia era dominar a funcionária,
chamar o gringo até o caixa, pegar o dinheiro, prendê-los no banheiro e sumir
dali. Se a menina gritasse, levava bala; se o gringo reagisse, levava bala.
Chegou
ao caixa respirando fundo, as mercadorias nos braços. E então deparou com
aquilo: as maçãs do rosto da funcionária. Ela estava corada, e o rubor de suas
faces lhe destacava o verde dos olhos. Era uma loirinha muito branca, muito
jovem, devia ter uns 17 anos, talvez fosse filha do gringo. O coração de Kléber
deu um salto de emoção ao avistá-la. Ela olhou para ele, sorriu o sorriso mais
cândido, mais inocente, mais puro da cidade e brincou:
–
Vinho, queijo e salame... O que mais alguém poderia querer para um dia frio
como hoje?
Kléber
sorriu de volta.
–
Uma boa companhia – ronronou, já amolentado pela paixão. – Era isso que eu
queria, para dividir comigo esse vinho, esse salame e esse queijo, num dia frio
como hoje.
Ela
ficou ainda mais vermelha. Olhou para baixo, envergonhada. Kléber pagou a conta
e saiu, não sem antes dar uma olhada para trás. Decidiu que se tornaria cliente
daquele mercadinho. Um bom cliente, sim, senhor.
O
QUE LER
Teria
muito a escrever sobre Will Durant, e escreverei. Durant, se não é o meu
historiador preferido, é um dos. Sua obra monumental ele compôs, toda, em
parceria com a mulher, Ariel. Formavam mais do que um casal: faziam uma dupla.
Trabalhavam juntos, viviam juntos, partilhavam as ideias e os dias.
Dessa
união foram gerados dois filhos e dezenas de livros. Um deles, A História da
Filosofia, discorre sobre os filósofos e seus sistemas de pensamento em um estilo
que prova que a simplicidade pode ser requintada. Transformou-se em best-seller
nos Estados Unidos exatamente por levar a filosofia para o leitor não iniciado.
A
Janine Mogendorff, editora da L&PM, contou-me uma bela e triste história
sobre o casal Durant. A seguinte: um dia, já velhinho e doente, Will foi
hospitalizado. Enquanto estava em tratamento, Ariel morreu. Os filhos, temendo
que ele piorasse com a notícia, preferiram não lhe contar nada. Mas esqueceram
que havia TV no quarto, e foi pela TV que Durant ficou sabendo da morte da sua
querida esposa.
No
dia seguinte, morreu também. Permaneceram unidos até o fim.
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