21 de julho de 2012 | N° 17137
CLÁUDIA LAITANO
Cem
anos e mais
Pessoas comuns, gente que nunca vai ocupar a atenção de um
biógrafo ou mesmo escrever um livro de memórias, contam para si mesmas e para
os outros uma história que segue uma lógica narrativa – costurando episódios às
suas causas e consequências e incluindo reviravoltas e pausas dramáticas no
enredo, como qualquer ficção ou texto biográfico.
Essas “autoficções” costumam ser uma combinação nem sempre
muito organizada de fatos biográficos, recordações de família, memórias de
grande amores e realizações – em um balanço mais ou menos equilibrado de
sonhos, frustrações, conquistas e arrependimentos.
Ao contrário dos livros, porém, nossas memórias de vida
mudam o tempo todo. Personagens são eliminados sumariamente ou resgatados do
limbo das notas de rodapé conforme o protagonista lança sobre eles um olhar
mais ou menos condescendente ao longo da vida. O pai carrasco da juventude pode
virar um sábio algum tempo depois – mesmo que tenha morrido muitos anos antes e
não tenha feito nada para recuperar sua imagem desde então.
A paixão avassaladora pode perder importância diante de um
amor sereno – ou vice-versa – e até o sofrimento excruciante pode ser
reinterpretado tempos depois como o motor de um movimento que traria sua cota
inesperada de contentamento. O único volume de memórias realmente definitivo
provavelmente foi aquele escrito por Brás Cubas – começando do fim e de lá
organizando tudo o que veio antes, sem medo de ser criticado ou
mal-interpretado pelos leitores do lado de cá da existência.
Outra forma possível de recontar a própria vida é tentar
traçar a rota das pessoas que, de forma mais evidente, ajudaram a moldar aquilo
que mais tarde nos tornaríamos. Não apenas as pessoas mais próximas, como pais,
amigos íntimos ou grandes amores, mas todas aquelas que, em algum momento, nos
chamaram a atenção para algo que não tínhamos percebido antes ou apontaram um
caminho que ainda nem sabíamos que era exatamente aquele que estávamos
procurando.
Quando eu estava saindo da faculdade, há exatamente 20 anos,
conheci um jornalista aposentado que mal saía de casa. Recebia os muitos amigos
sentado numa poltrona instalada no meio da sala, sempre com um livro no colo e
uma história para contar. Recebia também gente que ele não conhecia, estudantes
como eu, com a generosidade e a inesgotável paciência de quem estava em paz com
o futuro – mesmo quando ele já começava a parecer cada vez mais curto.
Narrava com graça e riqueza de observação histórias do tempo
em que editava as páginas de cultura do jornal e escrevia crônicas semanais.
Lembrava as viagens que fez, as pessoas que conheceu e as obsessões
intelectuais que cultivou ao longo da vida. Acreditava que o mundo estava cheio
de histórias para serem descobertas – e parecia ter um estoque inesgotável
delas para sugerir a quem se interessasse em contar.
Quando nos conhecemos, não imaginava que um dia eu também
editaria páginas de cultura e escreveria crônicas, mas foi o que acabou
acontecendo – por coincidência, influência ou simplesmente porque já era o que
eu queria, mesmo que ainda não soubesse.
Neste sábado, completam-se 100 anos do nascimento de Carlos
Reverbel, esse jornalista sábio e generoso que amigos e leitores lembram com
tanto carinho, respeito e saudade. O que aprendi na convivência com ele
permanece vivo e em transformação – e essa é a beleza das vidas que se misturam
e se prolongam para além de uma ou de outra: a possibilidade de levarmos
adiante o que dos outros fica em nós.
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