08
de julho de 2012 | N° 17124
VERISSIMO
Obsessão
A
culpa não é minha, delegado. É do nariz dela. Ela tem um nariz arrebitado, mas
isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe
quando ela fala, delegado. Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a uma
mulher que, quando fala, a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É
preciso prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu.
O
nariz mexe milímetros, delegado. Para quem não está vidrado, não há movimento
algum. Às vezes, só se nota de determinada posição, quando a mulher está de
perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo.
No caso dela, também se via de frente. Uma vez ela reclamou:
–
Você sempre olha para a minha boca quando eu falo.
Não
era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra
ela que era o nariz. Eu sou louco, delegado? Ela ia dizer que era mentira, que
seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer
mais.
Mas
a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é dela e não é minha. A culpa é da
inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é
que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor,
acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil
ganha bronze, delegado, bronze?
Que
se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na
ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar
um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição
condensada ou o CD? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era
outras.
A
multiplicidade humana, é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são
17 de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o 18º. Como eu
podia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia
ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo?
Eu,
um homem sensível? Porque ela não era uma, delegado. Tinha outra, outras, por
dentro. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já
estávamos juntos um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Sílvio
Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte
passável, mas é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba:
– Eu
não sabia que você era artista.
E eu
também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da nossa briga
final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente
nasce com várias possibilidades e, quando uma predomina, as outras ficam lá
dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo, ressentidas.
E,
vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que
cada um tem por dentro, os 17 outros de cada um, e aprendendo a viver com eles.
A gente se adapta. Um dos meus 17 pode não combinar com um dos 17 dela, então a
gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma
acomodação.
Eu
estava disposto a conviver com ela e suas 17 outras, a desculpar tudo,
delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala. Mas aí surgiu a 18ª
ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões.
Ela
estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou
para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa,
ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse
“rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois do “b”, eu disse que
não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e
aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião
voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta tudo,
não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente.
Arrogância
intelectual, não.
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