21 de julho de 2012 | N° 17137
NILSON SOUZA
Direito de esquecer
Sempre aceitei que a realidade é mais fantástica do que a
ficção, mas não pude evitar a perplexidade ao saber que o imenso Gabriel García
Márquez sofre da “doença do esquecimento”, que ele mesmo mesmo celebrizou no
seu inesquecível Cem Anos de Solidão. Depois de hospedar um casal de índios
contaminados, a população de Macondo foi atingida por uma espécie de epidemia
de insônia, cujo efeito colateral era apagar a memória das pessoas.
Sumiam, primeiro, as lembranças da infância. Depois, o
indivíduo esquecia o nome e o sentido das coisas. Na fase final da doença,
perdia a consciência da própria existência. Os macondenses recorreram a mil
artifícios para driblar a desmemória, inclusive pregando bilhetinhos nos
objetos e nos animais como muitos de nós fazemos hoje na porta da geladeira,
mas só se livraram do mal quando os ciganos – sempre eles – apareceram com uma
poção milagrosa, que devolveu a luz aos cérebros esvaziados.
Pena que a ficção não socorra a realidade. Gabriel García
Márquez está “olvidadizo”, confessou recentemente seu irmão Jaime. Mais do que
esquecidiço, o grande escritor entrou num quadro de demência senil,
potencializada – segundo o noticiário – pela quimioterapia do câncer linfático
que o acometeu em 1999.
Parece uma cruel ironia dos deuses da literatura: o homem
que imaginou mundos e os habitou com personagens fantásticos, criados a partir
de fatos reais registrados numa memória prodigiosa, não consegue lembrar nem
mesmo o nome dos amigos mais próximos.
Não escreverá mais, advertiu seu irmão. Quanto a isso, não
há problema. Ele escreveu coisas tão maravilhosas que seria até um egoísmo de
seus leitores exigir mais. Seu crédito é infinito. Se tivesse escrito apenas
Cem Anos de Solidão, já teria feito o suficiente para ser lembrado para sempre
como o maior escritor sul-americano.
Mas sua extraordinária bibliografia inclui outras
obras-primas, como Amor nos Tempos do Cólera, Ninguém Escreve ao Coronel, O
General em seu Labirinto e Doze Contos Peregrinos. Ele realmente “viveu para
contar”, como sugere a primeira parte da sua autobiografia, que ficará
incompleta.
E contou como ninguém. Com a precisão do jornalista e a
imaginação do ficcionista, construiu histórias tão incríveis quanto
encantadoras e emblemáticas. Seus livros, como a poção mágica do cigano
Melquíades, curaram muitas insônias e iluminaram a vida de milhões de leitores.
Tudo o que se pode desejar, diante do atual quadro, é que o senhor Gabo tenha
um esquecimento feliz. Ele tem todo o direito de esquecer.
Nós, seus agradecidos leitores, jamais o esqueceremos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário