10
de julho de 2012 | N° 17126
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O amor é maior do que o
esquecimento
Sua
mulher esperava no café. Era manhãzinha, 7h30min, véspera de escola e de
expediente.
O
escritor José Cardoso Pires subiu para buscar o caderno de anotações na gaveta
da cômoda. Seu caderninho vermelho, talismã de inspirações e personagens súbitos,
essencial como os óculos de leitura.
Quando
ele foi retornar, já no elevador, sofreu um derrame. Uma dor de cabeça insuportável
e rápida. Sentou um pouco no chão, para acalmar os nervos.
Recomposto
do choque, ao empurrar a porta da rua, ele viu que algo de estranho e sério
aconteceu: não lembrava quem era e o que precisava fazer. Foi acometido de uma
amnésia total.
Ele
estava esvaziado de referências, jogado a uma infância adulta.
Em pânico,
seguiu reto pela multidão, encarando o tamanho dos prédios. Usando os
cotovelos, defendeu-se da correnteza humana com pressa.
Não
tinha mais nenhuma recordação viva.
Um
pequeno derrame apagou a memória, o mapa de seus desejos, a ordem dos
compromissos.
Procurando
se enganar e disfarçar o horror, andava resoluto, decidido, para frente. Percorreu
três quarteirões, porém sentiu vontade de pensar um pouco e organizar as ideias.
Entrou
no café lotado, onde sua esposa lhe aguardava no balcão para beber um ristretto,
hábito do casal antes de mergulhar no trabalho.
Mas
ele não lembrava que tinha esposa, família, destino profissional.
O
que impressiona é que a primeira pessoa que ele procurou depois do esquecimento
foi a própria mulher. Recusou outras 50 que estavam presentes no lugar.
Foi
falar com a sua mulher. Sorteou seu rosto entre todos. Elegeu seus olhos
castanhos diante de dezenas de candidatos do momento.
Não
hesitou em atravessar o salão para cumprimentá-la, repetindo o encontro
fundador do casamento de 40 anos. Assim como no baile da faculdade, superou a
timidez medrosa e pediu uma dança.
Repetiu
aquilo que não sabia.
Ainda
que não conservasse nenhuma réstia de passado, aproximou-se da mulher e
perguntou:
– Onde
estou? Pode me ajudar...
Ela
riu, achando que seu marido armava uma brincadeira, perdoou a piada estalando
um beijo em sua boca. Ele se assustou com o gesto.
– Que
isso?
– O
que foi, amor?
– Amor?
Sim,
amor, ele entenderia depois quando recuperasse a saúde.
Amava
obsessivamente sua Marina, a ponto de se apaixonar de novo e sempre.
Talvez
fosse se apaixonar cada vez que a enxergasse. Com alma ou sem alma, com memória
ou sem memória.
Seu
corpo era um cavalo obediente à dona.
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