19
de julho de 2012 | N° 17135
L. F.
VERISSIMO
A morte não terá domínio
Li
que Samuel Becket dizia que quem morria passava para outro tempo. Não queria
dizer outro mundo, com um presumível outro clima. Referia-se ao tempo do verbo.
Entre todas as mudanças provocadas pela morte havia essa: o morto passava
irremediavelmente ao pretérito. Era bom pensar assim.
A
morte acontecia no mundo antisséptico das palavras e das regras gramaticais,
nada a ver com a decomposição da carne. O “é” transformava-se em “era” e “foi”,
e pronto. A migração do morto, em vez de ser da vida para o nada, era só entre
categorias verbais.
A
vida vista como uma narrativa literária nos protege do horror incompreensível
da morte. Podemos nos imaginar como protagonistas de uma trama, que mesmo
quando não é clara indica alguma coerência, em algum lugar.
O próprio
Becket só escreveu sobre isso: a busca de uma trama, qualquer trama, por trás
do aparente absurdo da experiência humana. E um enredo, ou um sentido que faça
sentido, só pode ser buscado na narrativa literária, no encadear de palavras
que leva a uma revelação, mesmo que esta não explique nada, muito menos a morte.
E se
falar, falar, falar sem cessar, como fazem os personagens do Becket, na esperança
de que aflore algum sentido, não der resultado, pelo menos está-se fazendo
barulho e mantendo a morte afastada. A literatura tem essa função, a de uma
fogueira no meio da escuridão da qual a morte nos espreita. Ou de uma matraca
contra o silêncio final. Vale tudo, mesmo a garrulice incoerente de um
personagem do Becket, contra a escuridão e o silêncio.
Num poema
que fez sobre seu pai moribundo, Dylan Thomas o insta a reagir ferozmente
contra o esvaecer da luz – “Rage, rage against the dying of the light” – e a não
se entregar à morte sem uma briga. Não sei se o Becket encontrou o consolo que
procurava pelos seus mortos na ideia de que tinham apenas mudado de tempo de
verbo, mas imagino que, como Dylan Thomas na sua poesia inconformada, tenha
recorrido à literatura como um meio de negar à morte o seu triunfo.
Ninguém
morre. Há apenas uma revisão na narrativa da sua vida para atualizar o tempo
dos verbos. Outra vez Dylan Thomas: “And death shall have no dominion”, e a
morte não terá domínio.
Diz-se
que quem morreu “já era”, o que é o mesmo que dizia o Becket, com mais
sensibilidade. Mas Becket queria dizer mais. Os personagens de narrativas literárias
mudam do tempo presente para o tempo passado, mas continuam no mundo, mesmo que
no mundo restrito dos livros e das estantes. Salvo, talvez, os cupins e as traças,
nada ameaça a sua perenidade. “São” eternamente.
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