WALCYR
CARRASCO
02/07/2013
16h50 - Atualizado em 02/07/2013 16h51
Fé e fofoca
A
fofoca é a base da tese da “cura gay”: maléfica, preconceituosa, com o poder de
destruir vidas
Um
dos meus livros prediletos é Os miseráveis, de Victor Hugo, do século XIX.
Creio que um dos trabalhos mais apaixonantes da minha vida foi traduzi-lo e
adaptá-lo para jovens. Uma das passagens mais marcantes, descrita em detalhes
no original, fala do poder da fofoca. Fantine é mãe solteira e deixou sua
filha, a menina Cosette, aos cuidados de um casal, a certa distância da cidade
onde se fixou.
Trabalha
como operária e envia quase tudo o que ganha para o sustento da menina. Só que
não sabe ler e escrever. Recorre a um profissional para redigir suas cartas e
ouvir as respostas. As colegas de trabalho desconfiam.
Para
quem tantas cartas, afinal? Convencem o homem que as escreve não a revelar seu
conteúdo – ele é discreto –, mas a fornecer o endereço para onde são enviadas.
Uma
delas, então, viaja às próprias custas para apurar a história. Volta com a
satisfação de “saber de tudo”. Conta o que sabe para todas. Estigmatizada numa
época em que ser mãe solteira era uma desonra, Fantine briga com as outras. É
demitida por moralismo. Acaba nas ruas como prostituta. Quem leu o livro, viu
algum dos filmes ou versões teatrais inspirados na obra sabe que ela vende os
dentes e cabelos para depois morrer tragicamente. Onde começou toda a sua
via-crúcis? Na curiosidade sobre a vida alheia.
Acredito
que a fofoca é maléfica. É fundamentada no preconceito. Tem o poder de destruir
vidas. Em sua primeira peça de teatro, em 1934, a escritora americana Lilian
Hellman (1905-1984) aborda o tema. A peça, The children’s hour, foi sucesso na
Broadway e ganhou versão cinematográfica com as estrelas da época, Audrey
Hepburn e Shirley MacLaine. Aqui no Brasil, o filme ganhou o título de Infâmia.
(Procurem, vale a pena ver.)
Narra
a história de duas mulheres, sócias fundadoras de uma escola infantil nos
Estados Unidos. Uma aluna as acusa de ter uma relação homossexual. Não têm, de
fato. Mas a avó da garota espalha a fofoca na comunidade. Perdem os alunos,
quebram financeiramente e, finalmente, uma delas se suicida. Histórias como
essa são frequentes.
No
mundo artístico, encontro jovens que deixaram a cidade distante onde viviam,
porque não suportavam mais os falatórios. Certa vez, em visita à pequena Bernardino
de Campos, interior de São Paulo, onde nasci, conversei com um rapaz de cabelos
pintados de verde, num estilo meio punk, cuja família se mudara para lá. Fazia
faculdade, mas queria voltar a São Paulo, onde trabalhava como motorista. Eu me
espantei:
–
Prefere o trânsito de São Paulo a terminar um curso universitário, ter uma
carreira?
–
Aqui, meu cabelo virou até notícia na rádio – respondeu ele. Por que falo sobre
tudo isso?
Sim,
sei que a proposta de “cura gay”, do deputado Marco Feliciano, já foi muito
comentada. Seria chover no molhado dizer quanto isso nos ridiculariza
internacionalmente, já que a Organização Mundial da Saúde não classifica a
homoafetividade como doença e, portanto, não se trata de algo a curar. Mas
quero olhar a questão por outro ângulo.
Todo
esse movimento liderado por Feliciano, entre os evangélicos, e pela deputada
Myrian Rios, como católica carismática, entre outros, não pode ser confundido
com fé. É uma enorme curiosidade pela vida alheia. Como fofoca transformada em
questão política. Convivo com esse tipo de comportamento não é de hoje.
Tenho
uma tia que frequenta a igreja Assembleia de Deus. Nunca corta os cabelos,
devido a uma interpretação do Velho Testamento, em que eles são descritos como
“véu da mulher” – embora nada proíba Feliciano de depilar as sobrancelhas.
Adolescente, eu morava em Marília, interior de São Paulo. Uma jovem evangélica
da Assembleia deixou de ser virgem. A fofoca se espalhou no templo. A moça foi
expulsa publicamente da igreja. Não é o primeiro preceito cristão acolher os
pecadores?
Normatizar
a vida dos fiéis é exercer poder sobre eles. Esse poder é exercido pela fofoca
entre os membros da comunidade religiosa, que passam a controlar o
comportamento uns dos outros. Trazer esse tema, da igreja, para a política, é
um acinte para a sociedade. Quanto mais se fala em “cura gay”, mais cresce o
preconceito. E o preconceito estimula a fofoca, o controle sobre o
comportamento alheio. É um risco para quem acredita nas liberdades individuais.
Inevitavelmente surgirão novas vítimas, como a Fantine de Victor Hugo.
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