FERREIRA
GULLAR
Beleza ainda põe
mesa'
Como
a vida, a arte também não basta: tem que mudar para nos suscitar novas
sensações e descobertas
Arte
sempre teve a ver com beleza, mesmo quando, aparentemente, mostra o feio, o
horrível, o abjeto.
Não
é fácil explicar o que acabo de afirmar. Para dizer a verdade, não sei ainda
como explicá-lo, mas sei que o que disse é certo: a arte sempre teve (e tem) a
ver com a beleza, porque, do contrário, não nos daria prazer. E não venham
agora me dizer que arte não é para dar prazer. E seria para que, então? Para
nos fazer sofrer é que não é, porque sofrimento já há demais na vida e ninguém
gosta de sofrer, a não ser os masoquistas, que são doentes.
Inventei
uma frase que o pessoal aí adotou e repete: "A arte existe porque a vida
não basta". E é verdade. Não pretendo com isso dizer que a vida é só
chatice e sofrimento. Não, a vida tem muita coisa boa e bela, mas, por mais que
tenha, não nos basta. É que nós, seres humanos, sempre queremos mais. Mais
alegria, mais felicidade, mais beleza.
Ao
longo dos milênios, a arte mudou muito. Claro que, como a vida, a arte também
não basta: tem que mudar para nos suscitar novas sensações, novas descobertas,
novas alegrias. Por isso, ela muda. E vem mudando desde que surgiu nas paredes
das cavernas, sem se saber que aquilo era arte. Sim, porque arte é apenas o
nome que se dá a essa necessidade de inventar a vida.
Também
por isso o conceito de beleza muda, como se vê através da história, até chegar
à época moderna, quando sofre uma mudança radical, como nunca houvera antes.
E
essa mudança radical fez supor que arte não tem nada a ver com beleza e, pior,
que beleza é coisa ultrapassada. De fato, se você comparar uma pintura de
Caravaggio com a "Guernica" de Pablo Picasso, a impressão que terá é
a de que o feio tomou o lugar do belo. Terá essa impressão, sim, mas não é
verdade.
Vou
ver se explico. Caso esteja certo, o que aconteceu foi que, por razões que
desconheço (talvez o refinamento da experiência estética), o artista plástico
descobriu --pelo apuro mesmo da linguagem pictórica e gráfica-- que, não apenas
a figura, criada pelas linhas e cores, tem expressão, mas as próprias linhas e
cores, independentemente do que figuram, são expressões em si mesmas.
Essa
descoberta conduziria, inevitavelmente, a uma subversão da linguagem figurativa
da pintura, uma vez que os elementos que a compõem ganharam progressiva
autonomia, passando a ser expressões em si mesmos, como linha, como cor,
independentemente do que representassem.
Essa
descoberta veio enriquecer a experiência dos artistas e dos amantes da arte,
que passaram a se deslumbrar, extasiados, já com quadros prontos, mas com os
estudos para realizá-los, já que, nestes, as figuras inacabadas tinham a
expressividade que, na obra acabada, sumia.
Foi
aberto, assim, outro caminho para a arte abstrata, não figurativa, chegando-se
em alguns casos a desenhos que eram meros traços nada representando e pinturas
que eram apenas manchas. Isso não significa, porém, que essas expressões sejam
carentes de beleza: há, sim, ali, uma outra beleza que, em alguns casos --como
no da citada "Guernica"-- ainda é figurativa, uma feiura (das
figuras) que na verdade faz ressaltar a autonomia das linhas, a sua expressão,
a sua beleza.
A
exploração da expressividade da forma inacabada deu origem também a uma das
tendências estéticas que marcaram a pintura do século 20, como o tachismo.
Outra
consequência desse tipo de expressão foi uma maior presença do fator acaso na
realização do quadro, de que é exemplo a pintura do norte-americano Jackson
Pollock, feita de respingos de tinta lançados sobre a tela aleatoriamente.
O
acaso é, sem dúvida, um fator presente na realização de qualquer obra de arte
mas, a partir da Renascença, quando os pintores buscaram a execução cada vez
mais perfeita, esse fator foi sendo quase anulado. Na época moderna, chegou-se
ao extremo oposto mas, num caso como noutro, o que se buscava era a beleza.
Isso
é diferente de certo tipo de manifestação artística contemporânea, em que não
há qualquer preocupação com o apuro da linguagem utilizada. Em alguns casos,
pelo contrário, o autor parece buscar o primarismo e o mau gosto, como a nos
dizer que arte e beleza são coisas velhas, ultrapassadas.
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