terça-feira, 23 de julho de 2013


23 de julho de 2013 | N° 17500
DAVID COIMBRA

A sabedoria de Gentil

Foi Gentil Cardoso quem colocou esse simpático quadrúpede das savanas africanas, a zebra, no âmbito do futebol. Ele treinava um time pequeno do Rio, e um repórter perguntou-lhe se tinha esperanças de ganhar o título. A resposta de Gentil:

– É mais fácil dar zebra no jogo do bicho do que o meu time ser campeão. Pronto. A zebra virou sinônimo de azarão.

Era grande frasista, Gentil, e também grande técnico. Introduziu no país o sistema WM, a base do 4-3-3, que é a base de todos os sistemas inteligentes do futebol mundial.

Nunca um técnico inventou um sistema de jogo muito melhor do que o 4-3-3, todas as táticas coerentes são variantes da formação com dois laterais, dois zagueiros, um centromédio à frente deles, mais meias e atacantes que vão e voltam.

Você pode plantar um volante pela direita e outro pela esquerda, pode abatumar o meio-campo com três ou até quatro meias, não interessa: alguém terá de ocupar os espaços longitudinais de cada lado do campo, alguém terá que entrar na área, tudo, ao fim e ao cabo, acaba sendo a grande mesma coisa: a disposição mais lógica de um time em campo é o 4-3-3.

Mas, deixando de lado as divagações táticas e voltando ao Gentil Cardoso, há um episódio emblemático da sabedoria dele como técnico. Ele trabalhava acho que no Botafogo, que o Botafogo se presta a esses folclores. Estava orientando um coletivo, e um dos jogadores, sempre que tocava na bola, mandava um passe alto para o companheiro. Então Gentil gritou:

– Ei, filhinho, do que é feita a bola? – De couro, seu Gentil. – E de onde vem o couro? – Da vaca, seu Gentil.

– E o que é que come a vaca? – Come grama, seu Gentil.

– Então, meu filho, joga a bola na grama, que é da grama que ela gosta.

A história é de uma simplicidade hilária, mas também é verdadeira. Um bom time de futebol joga com a bola no chão, rente à grama. A bola alta dificulta o domínio de quem recebe o passe e, mesmo que o passe seja correto, atrasa o movimento de ataque. Eis o maior mérito do Barcelona, do antigo Flamengo de Zico e das maiores seleções que o Brasil já montou: o passe curto, e por isso mais preciso; rasteiro, e por isso mais dócil. É a partir do passe curto e rasteiro que um time evolui de maneira escorreita da defesa para o ataque.

No Grêmio, Elano e Zé Roberto têm a cultura e qualidade para o passe curto e rasteiro; no Inter, quem faz esse papel é D’Alessandro. É ele quem torna o jogo lógico no meio de campo. O problema dos dois times está mais atrás. No Grêmio, a defesa é toda muito jovem, e a juventude é o tempo da precipitação. No Inter, os volantes ainda não se afinaram na saída de jogo, ainda não se sentem seguros para sair da posição, nem sabem quando sair da posição.

E o que dificulta muito mais o trabalho: em ambos, Grêmio e Inter, existe pouca aproximação e pouco deslocamento. É com aproximação e deslocamento que o passe sai rasteiro e curto. O jogador está próximo; logo, o passe pode ser curto. Quem passa se desloca; logo, o time avança. Assim, um time chega com segurança ao ataque, e aí, no ataque, aparece a qualidade do jogador de frente. Mas se deslocar e se aproximar é cansativo, é desgastante, mesmo que se tenha em mente outra máxima de Gentil:

– Quem se desloca, recebe; quem pede, tem preferência.


É assim que funciona. É básico. É simples. Mas não é fácil fazer o simples. Gentil Cardoso já sabia disso.

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