21 de julho de 2013 | N°
17498
VERISSIMO - As aventuras da
família Brasil
Sobre o humanismo
Há quem diga que o único
humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que
temos por um bom bife, e é sincero. Já o humanismo, na sua forma não
antropofágica, é mais difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista?
A própria palavra humanismo tem
interpretações e conotações diferentes. No dicionário, ela é descrita como uma
doutrina segundo a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores
morais. O que não ajuda muito.
Melhor, ou mais simples, seria
dizer que para um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as
coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem nas
dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do mundo devem
obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é não reconhecer nenhum
determinante metafísico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas
circunstâncias.
Mas estas interpretações não
cobrem todos os significados de “humanismo”. A própria história do humanismo é
discutível. Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média
retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as pinturas e
esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros glorificaram o corpo humano
redescoberto como a glória da Grécia antiga, berço da democracia e da
filosofia, também voltou à luz do dia depois da noite medieval.
Mas a arte da Renascença foi toda
feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes eram os
santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se encontraria um
humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes. E antes de se exaltar a
Grécia antiga como um ideal de virtudes cívicas e civilização, é bom não
esquecer que aquela era uma sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.
O humanismo autêntico seria então
um subproduto do Iluminismo do século 18, e sua origem estaria no pensamento
iconoclasta de alguns magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes,
aquela turma. Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o
terror que se seguiu a revolução francesa, e se a idade da razão não gerou um
monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo pode-se dizer de Marx e dos
outros filósofos dedicados a mudar o mundo e a História em vez de apenas
entendê-los, e cuja generosa proposta de igualdade e fraternidade universal
desaguou no totalitarismo e no terror stalinista.
O escritor e satirista Karl
Kraus, talvez o mais vienense de todos os vienenses, escreveu certa vez que na
Áustria, nos estertores do império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio
do fim do mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século 20
era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburg coincidiu com duas
novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na História: o fascismo
e a psicanálise. Dizem que a história do mundo teria sido outra se Hitler
tivesse se tratado com seu contemporâneo e conterrâneo Freud, mas infelizmente
o encontro nunca se deu.
Freud era um humanista, mas assim
como suas teorias sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter
o pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o inconsciente
humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele dizia era que o ser humano
não devia sua existência e seu destino à interferência divina, mas era regido
por forças imateriais, quase que por uma metafísica interna, que desconhecia
tanto quanto desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de
todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os mistérios do seu
ego, eram a medida de todas as coisas.
O que significa ser um humanista
hoje? Ao contrário dos canibais, que sabem do que gostam, não temos muita
certeza que a humanidade nos apeteça, depois de tudo que ela aprontou.
Continuamos preferindo a lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou
pensamento mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem
o contrário.
A divisão entre ricos e pobres
aumenta, uma superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo planeta
há anos, a intransigência e o fanatismo religioso conflagram regiões inteiras -
tudo prova que o humanismo está longe das sedes do poder e dos princípios da
maioria. E muito longe de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um
outro tempo.
A solução talvez seja o humanismo
se reconciliar com a metafísica e pedir ajuda à providência divina, para não
desaparecer.
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