23
de julho de 2013 | N° 17500
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Dois engradados de lembranças
Trinta
e sete anos resultaram em vinte e quatro caixas.
Meu
amigo Daniel Scola empacotou sua vida para casar. Mudou-se para casa nova com a
namorada Gaby.
Tudo
o que viveu entrou em vinte e quatro caixas, tudo o que economizou, tudo o que
recebeu e ganhou, tudo o que não soube jogar fora, tudo o que é.
– Eu
sou vinte e quatro caixas! –, ele me repetia.
Scola
estava feliz, porém ainda inconsciente da própria felicidade, ainda com o riso
atrasado.
Experimentou
a solidão de descer todos os livros, CDs, objetos para o frete.
Não
deixou ninguém ajudá-lo a embrulhar suas coisas. Era um ritual de passagem. Foi
se despedindo do passado, das lembranças do colégio, dos amores antigos, das
tristezas, das medalhas, dos boletins.
Suspirou,
bocejou, gargalhou como se fosse louco, absolutamente desacompanhado.
Viajava
longe sem sair do lugar. Lembrar é viajar com a roupa do corpo. Os braços
doeram, as costas doeram, as pernas doeram pelos sucessivos deslocamentos
imaginários. Estar em vários tempos dentro de si cansa.
Mas
não abdicou de realizar o translado sem ninguém. Ninguém mesmo. Nem parentes
nem amigos. O corpo precisava acompanhar a exaustão da mente.
Urgia
superar o passado antes de se virar para frente. Quem se casa depende de um
momento sozinho com seus fantasmas.
Organizou
seus pertences com a obsessão de um bibliotecário, marcando o conteúdo com
hidrocor, isolando o papelão com fita.
– Sou
vinte e quatro caixas – ele buscava se convencer.
Assim
como concluímos, quando jovens, que a festa tinha sido boa pelo número de
cervejas que bebíamos, Scola não parava de se gabar das vinte e quatro caixas.
– Minha
vida consumiu dois engradados de lembranças, não foi mal, hein?
Quando
ele colocou as bagagens reunidas na sala, disse que agora pediria ajuda para
Gaby. – Cansou?, perguntei.
– Não,
é que, quando ela me ajudar a abrir as caixas, ela entrará para sempre em minha
memória, na minha infância, na minha adolescência, vai se infiltrar definitivamente
em minha história. Vou mostrar as fotos, explicar o que são meus objetos de
estimação, perguntar onde podemos colocar. Não serei mais solteiro para
recordar.
Daniel
Scola descobriu que se mudar é guardar sozinho para abrir a dois.
E,
no final, arrebentar as caixas e desistir de separar as vivências. Nunca mais
saber o que é dele ou dela.
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