28
de julho de 2013 | N° 17505
SANTA
MARIA, 27/01/2013
O sorriso que o fogo não
destruiu
Seis
meses depois da madrugada que mudou a sua vida, Kelen Giovana Leite Ferreira, 20
anos, aprende dia a dia a converter a dor em superação. Depois de quase 80 dias
internada, com 18% do corpo queimado no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria,
a universitária teve parte da perna direita amputada, ensaia novos passos com
uma prótese e ganhou outra chance para recomeçar a vida.
Ao
chegar à clínica onde experimentaria sua primeira prótese, na tarde de sexta-feira,
em Porto Alegre, a universitária Kelen Giovana Leite Ferreira, 20 anos, foi
recepcionada na porta pelo diretor técnico, Jairo Blumenthal:
– Espero
que seja a última vez que tu entre aqui com o pé esquerdo – brincou o
protesista.
A
descontração disfarçava a solenidade do momento aguardado há seis meses. Com a
perna direita amputada abaixo do joelho por causa dos ferimentos provocados
pelo incêndio da boate Kiss, a estudante de terapia ocupacional da Universidade
Federal de Santa Maria se preparava para voltar a caminhar pela primeira vez
desde o fatídico 27 de janeiro de 2013.
Cento
e oitenta dias depois de ter 18% do corpo queimado, de 78 dias hospitalizada,
dos quais 15 dias em coma, a sobrevivente trilhava mais um passo no caminho da
superação. Ainda não seria a prótese definitiva, que pediu aos médicos, com
flexibilidade para poder usar salto alto. Mas poderia dispensar a cadeira de
rodas e o andador e se sustentar sobre as pernas.
– A última
vez que eu caminhei foi trocando de maca no hospital – lembrou, fazendo referência
ao dia da tragédia, quando foi levada ao Hospital de Caridade de Santa Maria,
após o incêndio que abreviou o destino de 242 pessoas.
De
todas as marcas impressas no corpo de Kelen, o sorriso constante é a que mais
chama a atenção. Depois de sobreviver ao horror, só pensa em aproveitar a
chance que ganhou.
– Eu
tinha dois caminhos: ficar na cama chorando a vida inteira ou recomeçar a minha
vida. Estou tentando aprender com tudo o que estou passando. Quero recomeçar – resume
ela, que voltou a morar com os pais em Alegrete depois de deixar o hospital, em
15 de abril.
O
recomeço se expressa em gestos elementares, como reaprender a caminhar, agora
sobre uma haste mecânica. No primeiro teste, na sexta-feira, saiu confiante.
– Acho
que mereço uma cervejinha – comemorou, ao vencer a primeira caminhada com a prótese.
Ela
sabe que nem pode beber. Com o aparelho respiratório fragilizado, tem restrições
alimentares. Calcula que só vai poder tomar um gole de cerveja lá por outubro. Também
precisa evitar cafeína e comidas gordurosas. Nada disso parece incomodar. Enquanto
se reapropria do próprio corpo, começa a ver a vida de uma maneira diferente,
agradecendo a cada dia.
O
otimismo ajuda a olhar para o futuro, mas não elimina o trauma. Levou meses até
conseguir apagar a luz para dormir. Sempre que escurecia, voltava a enxergar as
imagens da fumaça, ouvir os gritos no caldeirão em que a Kiss se transformou. Tomou
antidepressivos e tentava esconder as sequelas. Até que decidiu assumir sua
nova condição. Expor as marcas também é exibir a prova de seus trunfos:
– Quando
chegar o verão, vou usar blusa cavada. Todos vão ver que eu sou uma
sobrevivente. Eu me orgulho disso.
Indecisão
sobre ir ou não à Kiss durou até a última hora
Um
dos momentos difíceis foi superar o arrependimento da decisão que tomou naquele
dia. Horas antes da festa, Kelen ainda estava em dúvida se iria na boate Kiss. Suas
amigas insistiram para que fosse enquanto tomavam mate no calçadão de Santa
Maria, no fim da tarde, mas Kelen estava dividida. Naquele sábado, 26 de
janeiro, tinha pago R$ 300 pelo passe do Carnaval, que seria dali a duas
semanas, no mesmo lugar. Pensava em economizar, mas ao mesmo tempo adorava sair
e dançar a noite inteira, como já era tradição.
Ao
pegar o ônibus para casa, no bairro Camobi, fez um trato consigo mesma. Se o
carro dos tios com quem morava em Santa Maria estivesse na frente de casa, ia
aproveitar a carona deles para voltar e encontrar as amigas. Se os tios já tivessem
saído, ficaria em casa. Achava perigoso andar sozinha de noite.
Ao
se aproximar, não enxergou o Fiesta dos tios, que já tinham saído. Kelen pensou
que seria mais seguro ficar em casa. Mas... e a vontade? Ligou para uma prima:
– Tu
acha perigoso se eu for de ônibus para encontrar com as gurias?
A
prima disse que não, dando o impulso que faltava. Kelen arrumou uma bolsa com
um vestido preto justinho, sandália nova de salto 15, brincos dourados,
maquiagem e perfume. Na casa da amiga Laureane Salapata, telefonou para a mãe,
que mora em Alegrete.
– Mãe,
tô nas gurias, a gente vai sair de novo.
– De
novo? – repreendeu a dona de casa Marlene Ferreira, 66 anos, que sabia que a caçula
entre quatro filhos havia adentrado a madrugada em uma “junção com amigos”.
– Ai,
mãe, é sábado, e tô quase em férias – argumentou a jovem, que saía quase todos
os dias com a Turma dos POP, os inseparáveis colegas da faculdade de Terapia
Ocupacional da UFSM.
Por
volta da 0h30min do dia 27 de janeiro, Kelen partiu com as colegas Laureane e
Juliana Santos rumo à Kiss, na companhia de outros jovens. Andaram três quadras
até a boate. Ao chegarem lá, a fila se aproximava da esquina. Ansiosas para
entrar, furaram a fila e se dirigiram logo para os bares, onde encontraram
outras duas amigas que trabalhavam na boate.
Pouco
antes do incêndio, iniciado às 3h17min, Laureane e Juliana foram ao banheiro – de
onde não retornariam. Kelen, que não estava bebendo naquele dia, decidiu
aguardar ao lado do bar. De repente, enquanto a banda tocava a música Amor de
Chocolate, do Naldo, uma gritaria começou. Kelen pensou que fosse uma briga. Viu
centenas de pessoas correrem histéricas. Só depois descobriria que, naquele
momento, enquanto a banda cantava o refrão “Alto, em cima! Alto, em cima!”, o
sinalizador acionado pelo vocalista com os braços erguidos atingiria o teto,
disparando o incêndio responsável pela maior tragédia da história gaúcha.
Sem
ver sinais de fogo, Kelen olhava a correria esperando que a confusão terminasse
logo. Só quando a luz já havia se apagado atinou que deveria correr. Avançou
uns metros para a frente, no meio da multidão.
Confusa,
mudou de ideia no caminho e deu meia volta, decidida a voltar para procurar
pelas amigas. Foi quando sentiu um puxão no braço.
– Tu
não vai – impediu um anônimo.
Empurrada
para frente, seguiu em direção à porta. A essa altura, a fumaça e o calor já dominavam
o ambiente. Desesperadas, as pessoas se engalfinhavam para tentar alcançar a saída.
No meio do tumulto, Kelen caiu ajoelhada. Temendo pelo pior, puxou o vestido até
o nariz, para conseguir respirar, juntou as mãos e começou a rezar:
– Deus,
me ajuda, não quero morrer.
Para
não pisotear as pessoas na cruzada até a saída, decidiu tirar a sandália. Antes
de descalçar o segundo pé, foi puxada pelas costas e levada no colo por um
homem – que depois descobriria ser o empresário Gustavo Riet.
Saiu
consciente, pensando que o pior tinha passado. Minutos depois, um conhecido que
cruzava de carro a conduziu até o hospital de Caridade. No caminho, Kelen
conseguiu pedir que telefonassem para os tios avisando sobre seu paradeiro. Lembra
de tudo até ser entubada e ver o mundo apagar. Só acordaria no dia 11 de
fevereiro, na UTI do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre.
Entre
viver e morrer, era maior o risco de morte, disse o médico
Em 31
de janeiro, a família de Kelen foi chamada no Hospital de Clínicas. Os médicos
avisaram que o caso havia piorado. Os familiares precisavam se preparar. Com os
rins entrando em falência, os batimentos cardíacos em ritmo decrescente,
dificilmente sobreviveria.
– Então
ela não tem chance? – atemorizou-se o pai, o militar aposentado José Mauri
Ferreira, 65 anos.
– Chance
todo paciente tem, mas é mínima. Ela tem mais chance de vir a óbito do que de
sobreviver – sentenciou o médico.
Diante
dos limites da medicina, o pai recorreu à fé. Fez uma promessa a Deus, que iria
a Goiás, no Santuário do Pai Eterno, se conseguisse salvar a filha. Dois dias
depois, Kelen começou a reagir. Mas não sairia incólume. Com problemas de
circulação, o pé sucumbia. Para salvá-la, seria preciso amputar parte da sua
perna direita. E o drama não se encerrou após a cirurgia de remoção, em 5 de
fevereiro. As queimaduras que deixaram seus braços em carne viva eram tão
severas que também ameaçavam as mãos. Foram necessários três enxertos de pele,
com tecido retirado das coxas da paciente, para cobrir os ferimentos.
Quando
Kelen acordou, no dia 11, demorou para entender o que estava acontecendo. Pensava
que ainda estava em Santa Maria. Perguntava por suas amigas. Só em março
receberia a notícia que três das melhores amigas haviam morrido na tragédia. Preocupados
com a sua recuperação, os familiares tentavam postergar a sucessão de dores. Queriam
que ela assimilasse primeiro as ausências no próprio corpo.
Kelen
não lembra bem o dia em que descobriu as marcas da tragédia em si mesma. Recorda-se
das lágrimas, daquela sensação de que nunca mais conseguiria aquilo tudo que
havia planejado. E tinha muita raiva de si mesma por ter decidido ir à boate,
apesar da hesitação.
– Por
que eu fui? – se censurava.
Com
o passar dos dias, a raiva começou a ceder lugar a novos sentimentos. Ao
receber a visita da tia Dilvaine Ferreira, 48 anos, foi Kelen quem puxou o
assunto.
– Tia,
tu viu que tiraram minha perna?
– Sim,
vi. Mas não é o mais importante, né?
– É.
O importante é que tô viva – respondeu.
A
partir do momento em que começou a ter acesso às notícias e a entender a dimensão
da tragédia, a sensação de gratidão por ser uma sobrevivente só aumentava. E aí
começou a fazer planos. De voltar rápido para a faculdade, se formar, poder
ajudar outras pessoas que, como ela, passam por reabilitação. No dia da alta,
pintou ela mesma as unhas de vermelho. Estava feliz. Dias depois, ao retornar a
Santa Maria, foi recebida com festa por mais de 70 pessoas.
Desde
que teve alta, realiza fisioterapia diariamente, no Hospital de Guarnição de
Alegrete, e em Santa Maria, para recuperar os movimentos. O próximo passo
sonhado é o retorno para a faculdade. Kelen já acompanha as aulas por e-mail,
torcendo para se confirmar a previsão de voltar para o campus em setembro. Com
a adaptação da prótese, também está ansiosa para voltar a dançar, de preferência
embalada por uma boa música sertaneja.
– Vou
continuar saindo. Mas agora vou levar extintor e máscara – brinca, enquanto
abre o sorriso que um professor certa vez disse ser “de propaganda de Monange” e
que a tragédia não conseguiu chamuscar.
LETÍCIA
DUARTE
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