WALCYR
CARRASCO
12/07/2013
21h10
O fascismo politicamente
correto
De
que adianta manter as crianças numa redoma, se o mundo está cheio de lobos
maus?
Vivo
numa democracia. Como escritor, é difícil ter certeza disso. Acho que todo
artista em algum momento teve a mesma sensação. Pessoas comuns também. A
proibição em torno do que deve ser ou não falado é de lascar. As crianças são
usadas como pretexto para proibições que nada têm de democráticas. Existe o
veto claro, por meio de leis batalhadas pelas ONGs que se dizem
bem-intencionadas.
Mas
também o realizado por grupos, professores e até pais de alunos que,
eventualmente, criam situações constrangedoras para os mestres. Houve um caso,
há anos, em que uma professora adotou, num colégio, um livro em que dois
adolescentes tinham uma relação sexual – a primeira e mais romântica de suas
vidas.
Um
pai exaltado reclamou. A saída encontrada pela direção foi arrancar a página da
cena em que se realizava o ato, de todos os livros já comprados. Mas
Shakeaspeare não mostra, em seu inesquecível Romeu e Julieta, dois adolescentes
passando uma noite juntos? Escrevo livros infantojuvenis. Nunca me aventurei a
falar de sexo por um simples motivo: a maioria dos pré-adolescentes sabe bem
mais do que eu poderia escrever!
Professores
cedem à pressão. Escolhem livros que não ofereçam riscos de reclamação. Da
mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe colocar as crianças
em situações constrangedoras. Aqui no Brasil, seria impossível filmar O
exorcista, já que a menina possuída pelo demônio vive situações de violência.
Outro dia, estive num debate em que, como sempre, a televisão foi duramente
atacada.
–
Como vocês podem mostrar situações de violência? E as crianças?
Resolvi
falar das histórias de fadas:
–
Joãozinho e Maria são abandonados pelos pais numa floresta. Atraídos pela bruxa
má, Maria se torna escrava doméstica e Joãozinho é preso em cárcere privado,
para engordar. Será, então, devorado pela bruxa. Engana a canibal e mostra um
ossinho de frango no lugar do dedo, para fingir que continua magro. Finalmente,
ela resolve assá-lo. Com a ajuda de Maria, Joãozinho empurra a bruxa para
dentro do forno. Apoderam-se de suas riquezas e voltam para os pais, que os
recebem felizes.
Quando
terminei, houve um silêncio. Ninguém pensara nesse e noutros contos de fadas,
muito mais fortes que qualquer novela de televisão. Concluí:
–
Mas o conto é instrutivo. Ajuda a criança a lidar, simbolicamente, com
sentimentos de rejeição familiares. A saber que há um mundo difícil a enfrentar
lá fora. Do ponto de vista do inconsciente, é rico em possibilidades.
As
ONGs e os defensores do politicamente correto se apoiam em questões que julgam
ser objetivas. Dividem o mundo entre bom e mau. Confundem o que é complexo com
o nocivo. Mesmo a Cinderela, tão querida do público infantil, não pode passar
por uma interesseira, que se casa baseada no status do príncipe? Hummm... mas a
questão é que esse é um conto de formação, que novamente lida com a rejeição e
a existência de qualidades intrínsecas ao ser humano, aquelas que sobressaem
mesmo quando negadas.
O
inconsciente não funciona como uma receita de bolo, em que determinados
ingredientes levam aos mesmos resultados. É um sistema complexo e simbólico.
Vivenciar a realidade por meio da ficção é uma preparação para a vida adulta e
para este mundo, que não anda nada fácil.
As
restrições já deixaram o campo da teoria. Além de livros inscritos num “índex
educacional”, há escolas que aboliram o Dia das Mães e dos Pais. Argumentam
que, com as novas famílias, divórcios, recomposições, deve ser comemorado o Dia
da Família. Não é errado de um ponto de vista teórico. Poderia ser incorporado
no calendário, assim como o Natal – que, para mim, sempre foi o dia da família,
mas enfim... Defendo o Dia das Mães e dos Pais. É uma maneira de festejar um
vínculo emocional, de reforçar os laços de amor, de dizer novamente: “Eu te
amo”.
Estruturar
o mundo por meio do politicamente correto é criar proibições que afetam as
obras artísticas. Mais que isso, as relações com as crianças. De que adianta
criá-las numa redoma, se o mundo lá fora está cheio de lobos maus e um dia será
preciso enfrentar alguns deles?
Antes
eu achava que o “politicamente correto”era apenas uma grande bobagem. É mais
sério: tornou-se um exercício de controle, travestido de boas intenções. Sob a
capa de democrático, revive anseio por um mundo autoritário e, por que não
dizer, fascista.
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