FERREIRA
GULLAR
Uma experiência
radical
Ela
desenvolveu a ideia dos "Bichos" numa série muito criativa, que
ultrapassou os limites da proposta inicial
No
momento em que o Itaú Cultural oferece ao público de São Paulo uma
retrospectiva da obra de Lygia Clark, aproveito para dizer algumas coisas que,
talvez, ajudem a apreender certos aspectos de sua experiência estética.
Como
se sabe, essa experiência começa na década de 1950, quando surge no Brasil o
interesse pela arte concreta, que tinha como seu principal difusor o crítico
Mário Pedrosa.
Seu
apartamento, em Ipanema, tornou-se o ponto de encontro de uma nova geração de
artistas, entre os quais Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik, a que
se juntaram em seguida Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Aluísio Carvão,
Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Em São Paulo, o líder era Waldemar
Cordeiro.
Entre
os dois grupos surgiram algumas diferenças, em função mesmo do modo de ver essa
tendência artística seja por Pedrosa, seja por Cordeiro. A verdade é que, como
consequência disso, os concretistas do Rio desenvolveram sua experiência numa
direção menos ortodoxa, da qual resultou o movimento neoconcreto.
O
traço distintivo do neoconcretismo era, sobretudo, a participação do espectador
na obra de arte, ou seja, ele não apenas a olhava como também podia manuseá-la.
Isso veio do livro-poema que, por ser livro, era manuseável. Mas Lygia só
adotou esse procedimento porque ele a ajudava a superar o impasse a que havia
chegado em sua pintura.
A
questão é complexa, mas vou tentar formulá-la da maneira mais simples possível.
De fato, a coisa começa com a opção feita por Mondrian,
Malevitch
e outros pintores pela pintura não figurativa construtiva. Em Malevitch, a
questão se coloca claramente quando ele pinta um quadrado negro sobre um fundo
branco. Eliminava a figura? Não, a relação figura-fundo continuava.
Ele
tenta superá-la ao pintar um quadrado branco sobre um fundo branco, mas nem
assim eliminava o problema. A solução que encontrou foi sair do quadro e passar
a construir no espaço real; são as "construções suprematistas".
Mas
que tem isso a ver com Lygia Clark? É que, como Malevitch, ela também se
defrontou com a necessidade de superar a relação figura-fundo em sua pintura.
Chegou a isso por outros caminhos, mas é que esse problema está na essência
mesma da nova linguagem construtiva da pintura.
Lygia
havia, antes, enfrentado a contradição entre o espaço pictórico e o espaço
real. Foi quando ela integrou a moldura no espaço pictórico.
A
partir de então, construía seus quadros, não mais em tela, mas em placas de
madeira, para nele introduzir o que chamou de "linha orgânica" (o que
antes era o espaço vazio entre a tela e a moldura).
Não
obstante, a contradição entre figura e fundo se mantinha. Tentou superá-la com
ajuda de Josef Albers, valendo-se de suas construções ambivalentes, em que o
fundo ora é figura, ora é fundo, e vice-versa.
Deu
um passo adiante quando abandonou o quadro de madeira para fazê-lo em metal, o
que lhe permitiu construir os "casulos" (pequenos
"quadros", onde a dobra do metal cria um espaço interior). Mas ainda
era um quadro: tinha a parte de trás, voltada para a parede.
Nos
"Bichos", isso já não existe. Eles não têm avesso, base ou forma
única estável, porque são manuseáveis. Foi por essa razão que, naquela época,
escrevi que o "bicho" era "uma imobilidade aberta a uma
mobilidade aberta a uma imobilidade aberta".
Ela
desenvolveu a ideia dos "Bichos" numa série muito criativa, que
ultrapassou os limites da proposta inicial. Foi o início de uma aventura que, a
cada momento, surpreendia a ela mesma, levando-a à participação não apenas
manual, mas agora corporal. Ela caminhava assim para um tipo de expressão que
desconhecia limites, mas estranhamente coerente.
Agora,
em lugar a obra manuseável, inventa invólucros que vestem o espectador (não
mais espectador e, sim, partícipe) ou túneis de tecido plástico por onde ele
penetra. Enfim, ela quer provocar sensações outras, sensoriais e psíquicas,
que, em vez de visar o prazer estético, visa a cura, a revelação profunda do
sujeito, a reestruturação do "self".
Não
por acaso, ela mesma dizia que já não fazia arte. Mas nada tinha a ver com a
antiarte de Duchamp.
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