sábado, 15 de setembro de 2012



16 de setembro de 2012 | N° 17194
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

O que ensina a propaganda eleitoral

Outro dia estava em uma cidade do Interior e ouvi um candidato à Câmara proclamar no rádio:

– Eu sou honesto! Eu cumpro o que prometo!

Estremeci. Não que duvide do candidato, a quem nem conheço. Mas me coloquei no lugar dele. Desagradável ter de alardear suas próprias qualidades. Que valor existe em você reconhecer seus méritos?

De que adianta você se achar ótimo no que faz, se considerar bom pai, bom filho e bom amigo, olhar para o espelho e se julgar bonitão, e ter certeza de que a sua opinião é correta em todos os assuntos, de que adianta tudo isso, se os outros não concordam? Você estará muito satisfeito consigo mesmo, é verdade, mas os demais seres humanos, entre eles, dirão que você não passa de um fátuo ridículo.

Teria dificuldades com o autoelogio, se fosse candidato. Porque, afinal, posso não ser tão honesto quanto o candidato do Interior, mas tenho de sê-lo ao menos comigo mesmo. Então, até poderia acalentar uma crença razoável de que possuo essa ou aquela qualidade, mas... e os outros? Os outros podem estar rindo à socapa, sim, senhor. Não daria certo. Não seria eleito.

De qualquer forma, o que é fascinante numa campanha eleitoral é que ela funciona. Os candidatos apregoam seus próprios predicados e as pessoas... acreditam! Votam neles. O que mostra a boa vontade do homem do povo. E a eficiência da propaganda no cérebro humano. Diga algo, e a tendência das pessoas é acreditar. Quer ver? Como foi bom ler esse texto. Como foi bom, como foi, como foi... Ou será que estou sendo fátuo ridículo? Não, eu não seria bom candidato.

o que ler

Já li algumas biografias de Freud. Uma das mais completas é Freud – uma vida para o nosso tempo, de Peter Gay. Separei um trecho com propósito pessoal. Tem muito a ver com o livro que vou lançar nos próximos dias pela L&PM, Uma História do Mundo. Leia:

“Inicialmente, a criança teme a autoridade, e se comporta bem apenas na medida em que calcula a retribuição punitiva que pode esperar do pai. Mas, depois de interiorizar os critérios adultos de comportamento, as ameaças externas não são mais necessárias; o superego da criança vai mantê-la na linha.

A luta entre amor e ódio, portanto, se encontra na fundação do superego, tal como na da própria civilização. Esse desenvolvimento psicológico do indivíduo se reproduz com frequência na história de uma sociedade. Culturas inteiras podem se tornar carregadas de culpa. Os antigos israelitas deram-se profetas para denunciar sua pecaminosidade e desenvolveram, a partir de seu sentimento coletivo de transgressão contra Deus, sua religião excessivamente estrita e seus rigorosos mandamentos”.

San Pietro in Vincoli

Freud cofiava a barba e fumava seus charutos em Viena, não longe de Roma, a 1.100 quilômetros de distância. Mais ou menos o espaço em linha reta que separa as águas cinzentas do Guaíba das enegrecidas do Tietê. Ainda assim, ele só foi conhecer a Cidade Eterna depois de adulto, embora quisesse muito. “Meu anseio por Roma é profundamente neurótico”, confessou certa feita a seu amigo Fliess. “Está ligado ao meu entusiasmo dos tempos de escola pelo herói semita Aníbal”.

Quando finalmente conheceu Roma, Freud não se decepcionou. Ao contrário, fascinou-se. E, de todos os milhares de lugares belos e históricos da cidade, houve um que o encantou em especial. Por curiosidade, um lugar meio sem graça, entre tantas maravilhas: a igreja de San Pietro in Vincoli. É que, nessa igreja nada imponente e de beleza não mais do que comum, encontra-se a estátua de Moisés, de Michelangelo, obra que Freud considerava “atordoante e magnífica”.

Sempre que ia a Roma, Freud passava em San Pietro para ver a estátua. Permanecia horas examinando-a. Escreveu um livro sobre ela. Quando seu amigo Ernest Jones viajou pela primeira vez a Roma, mandou-lhe uma carta: “Invejo-o por ver Roma tão logo e tão cedo na vida. Leve minha mais profunda devoção a Moisés e escreva-me sobre ele”.

Eu, ao conhecer Roma, corri para ver a estátua. E também saí de San Pietro impressionado. Aquele Moisés de mármore está prestes a levantar-se e a bradar impropérios contra os homens de pouca fé.

Agora, li que o ministro italiano da Economia, Mario Grilli, colocou à venda 350 imóveis históricos do país na tentativa de reduzir o déficit público. É a História em liquidação. Se você tiver vinte e poucos milhões de euros, pode adquirir um castelo construído pelo papa no século 13, por exemplo.

Mas, pelo que vi, a igreja de San Pietro ainda não entrou na lista dos bens em promoção. Se entrar, proponho uma vaquinha entre os admiradores de Freud para comprá-la. Tenho certeza de que os terapeutas de Porto Alegre vão se entusiasmar com a ideia e destinar à memória do Pai da Psicanálise um pouco do tanto que ganham graças a ele.

A dor de Michelangelo

San Pietro in Vincoli significa “São Pedro Acorrentado”. É que, supostamente, as cadeias que prenderam São Pedro em Roma estão nessa igreja.

Supostamente.

Seja como for, o tesouro da igreja não são as correntes, mas a estátua de Moisés. Michelangelo disse que nunca sofreu tanto por causa de uma obra. Pelo seguinte: o papa Julio II queria que San Pietro lhe servisse de mausoléu, e contratou Michelangelo para enfeitá-la com 40 esculturas. O artista mudou-se para Carrara a fim de escolher o mármore para as encomendas.

Era uma parte importante do trabalho. Michelangelo dizia que cada pedra tinha uma escultura embutida. “Eu só tiro o excesso de mármore”, garantia, modesto. Só que, depois de um ano, o papa decidiu levar adiante outro projeto: a Basílica de São Pedro e a Capela Sistina. Convenceu Michelangelo a pintar o teto da Capela, ao que ele reagiu, irritado: “Eu sou escultor, não pintor”. Como o papa insistiu, ele, que não era pintor, foi lá e compôs a pintura mais magnífica da história da arte em todos os tempos.

O Moisés restou esquecido. Michelangelo só o completou depois de 30 anos. Quando terminou o trabalho, espantou-se ele mesmo com a vivacidade da estátua, bateu no joelho dela com o martelo e ordenou:

– Parla!

O Moisés não falou. Ainda. A lenda diz que a martelada arrancou uma lasca do joelho do patriarca. Mentira. Olhei bem para a estátua e vi que seus joelhos são tão perfeitos quanto os de Angelina Jolie. Belos joelhos de mármore de Carrara.

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