CONTARDO
CALLIGARIS
A saca de sal
Antes
de viver juntos, seria bom consumir uma saca de sal. Para o quê? Para se conhecer
melhor?
COMEÇOU
COM um e-mail bizarro me avisando que o restauro da Fontana del Sale (a fonte
do sal, em Novi Ligure, Itália) estava terminado (bizarro porque o restauro foi
terminado um ano atrás). Imediatamente, a mensagem evocou em mim um momento
esquecido.
Novi
Ligure (leia-se "lígure") é uma cidade de menos de 30 mil habitantes;
apesar de seu nome, ela não está na Liguria, mas no Piemonte. Num domingo de
inverno do fim dos anos 70, eu atravessava a Piazza Mariano delle Piane, em
Novi, com minha avó Elena.
Sei
que era domingo porque ela tinha pedido que parássemos (íamos de Rapallo a
Casale Monferrato, visitar amigos) para que ela escutasse a missa. E sei que
era inverno porque ela estava com um sobretudo longo de cachemira um tanto
surrada, mas especialmente mórbida, com um colarinho do mesmo astracã cinza de
seu chapéu "clochê".
Também
ela tinha enfiado a mão, numa luva escura, debaixo do meu braço, mais pelo
calor e pela intimidade do gesto do que por necessidade de apoio ao caminhar.
Eu estava
lhe contando que acabava de me juntar com uma mulher, na cidade onde eu morava,
que era Paris. Ela parou diante da Fontana del Sale, que está no meio da Piazza.
"Fonte
do sal" não é um apelido. No passado, o sal era crucial para preservar os
alimentos (pense no bacalhau), era vendido em sacas, e era precioso. Em 1814,
os noveses defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses. Para
celebrar o esforço, foi construída a fonte, no meio da qual surge uma figura,
que aperta contra o peito uma saca, que se parece com uma daquelas almofadas
que as crianças querem sempre consigo e sem as quais elas não conseguem dormir (uma
foto da fonte: http://migre.me/aKii8).
Minha
avó, olhando para a estátua, disse: "Prima di vivere insieme, bisogna
consumare un sacco de sale" -antes de viver juntos, é preciso consumir uma
saca de sal. Minha avó era religiosa, mas sábia demais para se opor ao fato de
eu me juntar sem me casar. Sua preocupação era com a precipitação.
Eu,
nascido em tempos de geladeira, não sabia quanto tempo duraria uma saca de sal.
Mas o recado era claro: antes de se juntar, um longo namoro é oportuno.
Há uma
constatação que eu faço com frequência: não sei quem começou, se fomos nós ou
se foram a literatura e o cinema, mas, em geral, no início das relações, a
gente idealiza tanto o parceiro quanto o novo envolvimento afetivo ou sexual (as
dificuldades da etapa seguinte ficam para a comédia, se não para a farsa). Consequência:
o exórdio das relações aparece como um momento glorioso, cujo espírito se
perderá, inelutavelmente, ao longo do tempo, consumido pela trivialidade do dia
a dia e da convivência.
Uma
leitora, Ester Costa, comenta: "Eu acho que, na verdade, começa mal e vai
piorando. É ruim e errado desde o começo, e a gente sabe, mas, por decreto
decide que vai continuar. Ninguém esconde do outro o que é, a gente é que não
quer enxergar". Ou seja, "o germe da destruição" das relações
está no seu começo, "o ovo da serpente está aí".
Outra
leitora, Mariana Seixas, vai na mesma direção; ela acha que, quando encontramos
alguém "com quem no futuro dividiremos uma vida e quatro paredes, (...), não
conhecemos bem a pessoa", e o futuro nos apresentará "uma pessoa
diferente daquela dos primeiros meses de namoro".
Em
outras palavras, a degradação das relações está num defeito de fábrica, numa
pressa ou num descuido do encontro inicial, em que, paradoxalmente, falamos
demais e não nos mostramos o suficiente.
Minhas
leitoras têm razão. O momento do encontro é enganoso, por um viés de otimismo: valorizamos
tanto o grande amor definitivo que acabamos enxergando sua miragem no
horizonte, mesmo quando não há por quê. Você lê os três primeiros números
sorteados da Mega-Sena, são os que você jogou, o coração já dispara -embora até
lá você não tenha ganho absolutamente nada, nem a consolação de uma quadra.
Seria
bom, em suma, segundo minhas leitoras, que os futuros consortes se conhecessem
melhor.
Em
tese, eu concordaria. Mas, naquele domingo dos anos 70, eu completei a frase de
minha avó perguntando-lhe, justamente, se o tempo da saca de sal era para o
casal se conhecer melhor. Ela fez o gesto de quem descarta uma estupidez e
disse: "Ma vá un po', non per conoscersi; per abituarsi", deixa de
bobagens, é preciso de tempo não para se conhecer, mas para se acostumar.
ccalligari@uol.com.br
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