terça-feira, 18 de setembro de 2012



18 de setembro de 2012 | N° 17196
DAVID COIMBRA

As fotos do Homem de Vermelho

O Kadão publicou fotos do Homem de Vermelho no Almanaque Gaúcho de ontem.

O Homem de Vermelho.

Eis aí um personagem que estampa com nitidez como o Brasil mudou, e em que direção foi a mudança.

O Homem de Vermelho, como o nome diz, vestia-se todo de vermelho, sapato vermelho, calça vermelha, camisa vermelha. Sobre a cabeça, usava um quepe também vermelho e, em letras brancas e faiscantes, levava impressa nas costas a palavra terrível: “COBRADOR”. A função do Homem de Vermelho era envergonhar o devedor inadimplente do comércio.

Quando o Homem de Vermelho batia à porta de uma casa, toda a vizinhança sabia que ali se homiziava alguém que devia e não pagava. Um escândalo. O maior medo de quem cevava uma conta em uma loja era ser acossado pelo Homem de Vermelho.

Esse recurso, obviamente, é abusivo. Afronta os direitos do consumidor, do cidadão e tudo mais. Certo. Mas não seria por isso que, hoje, o Homem de Vermelho perderia o emprego. Seria porque ninguém lhe daria bola.

Pela singela razão de que hoje ninguém sentiria vergonha de dever e não pagar. Imagine, perplexo leitor, que hoje há escritórios de advocacia especializados nisso: em ajudar o devedor a não pagar. O cara assina um contrato e, depois, questiona-o na Justiça. Eu assinei, mas não posso pagar. Por que o assinou? Meu avô, que já morreu, acharia errado. Mas meu avô sentia medo do Homem de Vermelho. Sentia vergonha, o que é uma coisa muito antiga.

Houve uma ruptura moral no Brasil. Aconteceu no momento em que o brasileiro passou a ter mais consciência dos seus direitos, como o legítimo direito de o devedor não ser constrangido publicamente pelo credor com ações reprováveis como as do Homem de Vermelho. É evidente que isso é uma coisa boa. É ótimo que as pessoas saibam de seus direitos e lutem por eles.

Mas, no inconsciente coletivo do Brasil, essa evolução produziu uma distorção: o brasileiro passou a acreditar que pode tudo e não deve nada. Ele é amassado pelos poderosos. Logo, sua reação aos poderosos é justificada. Quando ele afronta o pai, o professor, o Estado, o patrão ou o credor, ele é o certo, porque ele está afrontando o poder. Não interessa a afronta. Pode ser uma ofensa, um roubo ou uma agressão qualquer. Importa é afrontar.

A autoridade, qualquer autoridade, foi desmoralizada no Brasil. Para o brasileiro, toda autoridade é opressora e está a serviço dos grandes contra os pequenos. Foi essa a ruptura, e ela se deu mais ou menos nos anos 70 – as fotos publicadas pelo Kadão são do final de 1960.

O futebol brasileiro acompanhou essa tendência. Quando a Lei do Passe foi abolida, apregoou-se que ali se estava abolindo a escravidão do jogador brasileiro. Era a Lei Áurea da bola. Hoje, o jogador brasileiro conta com todos os direitos garantidos pela CLT. Ele pode processar o clube por atraso de salários ou não pagamento de impostos trabalhistas, como qualquer proletário.

Mas é claro que ninguém aceitaria que um clube “encostasse” o jogador na previdência em caso de lesão grave, como ocorre com qualquer proletário. Enquanto vige o contrato, o clube tem de pagar o jogador, mesmo que ele não jogue – muito justo. Mas o jogador, se não quer cumprir o contrato, se quer ir para outro clube, vai, e aí ele pode usar variados meios de pressão, entre eles alegar que está “desmotivado” para jogar bem.

Nenhum jogador sente vergonha de dizer que está desmotivado, por mais centenas de milhares de reais que ganhe. Nenhum. Assim como ninguém mais sente vergonha de dever e não pagar. Natural. São os novos tempos do Brasil.

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