ANTONIO
PRATA
Eu não nasci de óculos
Queria
uma armação que não dissesse nada sobre mim; mas, por outro, queria colocar
gelo e limão no visual
ESTILO
NÃO é um troço que você escolha da noite pro dia. Não há um momento X no
despertar da mocidade em que seus pais lhe convoquem, acompanhados pelo rabino,
o padre ou o pastor, mais um colegiado de anciãos, e perguntem: "Então,
cria minha, chegou a hora: serás punk? Yuppie? Almofadinha? Pit boy? Mano?
Intelectual com a barba por fazer? Ou crente de terninho bege?"
Estilo
é o resultado de milhares de microdecisões tomadas (ou não tomadas) ao longo de
muitos anos, escolhas que vão aos poucos definindo desde a postura dos nossos
ombros até a cor das nossas meias. Por isso, como descobri na semana passada,
após duas horas penando numa ótica, é tão difícil comprar uma armação de óculos:
pois ali você tem que decidir, no ato -ou ao menos, vá lá, revelar a si mesmo-,
quem você é.
Comecei
pelos mais discretos. Armações finas, prateadas ou pretas, com fio de nylon na
parte de baixo das lentes. Pareciam ok. Afinal, eu não queria uns óculos com
proposta, queria? Não. Não queria óculos que fizessem com que, digamos, um
frentista perguntasse pro outro "de quem é o troco, Lima?", e ouvisse
como resposta, "do artista, ali", ou "do John Lennon, ali",
ou "do cara que pegou os óculos do avô, ali". Realmente, os mais
discretos me caíam bem. No entanto, pareciam tão sem graça...
Por
curiosidade, experimentei um daqueles oclões de acetato preto. Gostei do que
vi, mas, ao mesmo tempo, me senti uma fraude. Aquelas armações vendiam um homem
mais moderno do que eu. Mais antenado. Imaginei-me indo à padaria, uma equipe
de TV me aborda: "O que você achou do último filme do Sokurov?". Sokurov?
Não, amigo, eu só tava indo comprar pão.
Do
acetato preto, migrei para a armação de tartaruga: uma proposta vistosa, também,
embora um tantinho mais conservadora. Novamente, me senti em dívida. Óculos de
tartaruga são para quem já leu pelo menos metade da obra de Proust, para quem
tem a Cultura na memória 1 do rádio do carro. Se estivesse com uns óculos
daqueles e tocasse Red Hot Chilli Peppers, eu teria que fechar os vidros. Não,
não.
O
problema, descobri então, perdido entre plásticos vermelhos e arames beges, é que
duas forças lutavam por minha hegemonia: de um lado, queria óculos que não
dissessem nada sobre mim, que fossem simples como um copo-d'água. De outro,
queria, sim, colocar um gelo e limão em meu aspecto. Por que não?
Eu
venho de um nicho, de um grupo, como qualquer pessoa. Qual o problema de
afirmar, nas curvas, na espessura, na cor e no material dos meus óculos, a visão
de mundo que eu, consciente ou inconscientemente, endosso? Sei lá, mas depois
de duas horas olhando-me no espelho, acabei ficando com uma das primeiras armações,
finas e discretas.
O
que não deixa de ser, também, uma declaração de princípios. "De quem é o
troco?", pergunta o frentista. "Daquele cara ali que, por covardia,
por timidez, por orgulho, até, quem sabe, não quer dizer nada com seus óculos."
"Boa observação, Lima. Cê devia largar o posto e fazer uma pós em semiótica,
sabia?" "Tô ligado. Aqui o troco, chefia. Quer que dê uma olhada no óleo?"
antonioprata.folha@uol.com.br
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