segunda-feira, 10 de setembro de 2012



10 de setembro de 2012 | N° 17188
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

Restaurações

O último caso da internet é a desastrada intenção de restaurar um Ecce Homo (logo apelidado de “Ecce Mono”) pintado numa igreja de Borja, Espanha. O resultado, circulando nas redes sociais, mostra um Cristo simiesco, com pouco de humano. Insistentemente, as mesmas redes repetem a idade da autora da pequena catástrofe, Cecilia Gimenez: 80 anos. Os turistas fazem fila para admirarem a obra. O meme alastrou-se pelo mundo.

O assunto presta-se a múltiplas ponderações.

Em primeiro lugar, a associação do fato à idade de Cecília pretende levar o assunto para uma explicação simplória: todo velho é um mentecapto. Esquecem-se, porém, que foi na idade avançada que grandes artistas deram as mais inestimáveis contribuições à cultura. Para ficarmos apenas na Espanha, terra de Cecilia: Picasso, El Greco, Goya, Cervantes, Lope de Vega. Morreram velhíssimos, produzindo até o fim.

Em segundo lugar, a crítica ao puro amadorismo. O amadorismo é bom para passar o tempo, desde que a pessoa não cause mal a ninguém – eis aí as marinhas pintadas por Churchill na aposentadoria, as telas de Anthony Quinn, os desenhos de D. Pedro II.

As pinturas rupestres, todos sabem, são os infalíveis capítulos iniciais de todos os livros sobre a história da arte. A pergunta: eram amadores os pintores das cavernas? Como se percebe, há perguntas embaraçosas que ficarão sem respostas. Mas essa ainda não é a questão.

A questão é quando as obras amadoras pretendem substituir-se ao que consideramos como arte, e mais: quando recebem o beneplácito das pessoas.

Cecilia Gimenez fez tudo às claras. Ela foi expressamente autorizada a fazer a “restauração”. O pároco viu, os coroinhas viram, os fiéis viram, o povo viu. Ninguém, entretanto, a impediu de seguir pintando. Alguns, até, elogiavam seu o trabalho. Isto é: tal como em crimes complexos, ela não agiu sozinha.

Era toda uma comunidade que pintava com Cecilia, que a ajudava a segurar os pincéis, que misturava as cores. O “Ecce Mono” é, pois, uma criação coletiva. E se há culpa, essa é de todos.

Mais do que um assunto que interessa ao âmbito da artes plásticas ou à internet, é um fenômeno que envolve um conceito de arte que, no caso, vem abençoado por sua coletividade.

Terminar com uma interrogação não é a melhor praxe, mas não seria interessante uma reflexão mais demorada sobre o tema?

Nenhum comentário: